Há um capítulo magistral de Dançando nas Ruas (Dancin’ In The Street) em que Barbara Ehrenreich fala sobre as raízes arcaicas do êxtase coletivo (a palavra “arcaicas”, no caso, refere-se não a algo de velho e mofado, já caído em desuso e aposentado da História, mas sim a algo que está na raiz do nosso tempo presente, ainda alimentando com seiva algo vivo e pulsante. Arcaico – é também uma das lições fundamentais de gurus psicodélicos como Terence McKenna e Alan Watts – é aquilo que tem enraizamento em um passado muito distante, mas cuja raiz ainda hoje nutre uma árvore viva e nossa contemporânea, com sua eclosão vivificante de folhas, frutos, sementes.
O tempo arcaico segue agindo no tempo contemporâneo como um rio que flui lá do passado mais remoto e penetra com suas águas torrenciais no território do presente: é um passado que conflui com o agora, conectando-nos ao que passou, vinculados ao que foi ao invés de alienados de qualquer tradição e pertença. Ao conectar com as bacantes e sátiros sempiternos, que atravessaram os tempos em celebração da existência, sentimo-nos Unidos e solidários aos que hoje descansam seus ossos debaixo desta terra. Terra esta onde labutamos e dançamos em aliança diversa, ao invés de trancados na estreiteza de um fluxo nonsense de momentos efêmeros e desconexos, presos na gaiola de um eu solitário e que se ilude com a separatividade. O êxtase congrega, a tristeza isola.
“No antigo mundo ocidental, muitas deidades serviam como objeto de adoração extática: na Grécia, Ártemis e Deméter; em Roma, as deidades importadas: Ísis (do Egito), Cibele, a Grande Mãe ou Magna Mater (da Ásia Menor), e Mitas (da Pérsia). Mas havia um deus grego para o qual a adoração extática não era uma opção, mas uma obrigação… Esse deus, fonte de êxtase e terror, era Dioniso, ou, como era conhecido entre os romanos, Baco. Sua jurisdição mundana cobria os vinhedos, mas a responsabilidade mais espiritual era presidir a orgeia (literalmente, ritos realizados na floresta à noite, termo do qual derivamos a palavra orgia), quando os devotos dançavam até chegar a um estado de transe.
Ainda mais do que as outras deidades, Dioniso era um deus acessível e democrático, cujo thiasos, ou elo sagrado, estava aberto tanto aos humildes como aos poderosos. Nietzsche interpretava esses ritos da seguinte maneira: ‘O escravo emerge como homem livre, todos os muros rígidos e hostis erigidos entre os homens pela necessidade ou pelo despotismo são despedaçados.’
Foi Nietzsche quem reconheceu as raízes dionisíacas do drama grego antigo, ao ver a inspiração louca e extática por trás da majestosa arte dos gregos – que, metaforicamente, ousavam levar a cabo não apenas a imortal simetria do vaso, mas as loucas figuras dançantes pintadas em sua superfície. O que o deus demandava, segundo Nietzsche, era nada menos que a alma humana, liberada pelo ritual extático do ‘horror da existência individual’ e transformada na ‘unidade mística’ do ritmo proporcionado pela dança.” (EHRENREICH, p. 48)
Longe de ser apenas de interesse para helenistas ou estudiosos de religiões antigas, a celebração comunal, vinculada no mundo greco-romano aos cultos a Dioniso e Baco, prossegue ativa em tempos contemporâneos. O livro de Barbara Ehrenreich é uma das melhores visões panorâmicas da busca pelo êxtase coletivo através da história e tem entre seus méritos uma postura simpática aos fenômenos estudados. Ela não condena, com fúria puritana, os rituais dionisíacos, o vodu haitiano, a capoeira ou o samba afrobrasileiro, os festivais de rock da Geração Hippie etc., mas busca compreender com empatia uma necessidade humana, que existe desde tempos imemoriais, de celebração coletiva e de vitória sobre o terrível confinamento na solidão de um eu isolado.
Dançando Nas Ruas, pois, parece-me um livro magistral, de alto potencial libertário, que une-se aos esforços Emma Goldman, pensadora política anarquista célebre por dizer: “Não é minha revolução se eu não puder dançar”.
Além disso, Barbara Ehrenreich realizou uma obra de interesse filosófico, ou mesmo teológico, afirmando que a experiência de re-encontro com o arcaico, de re-ligação com a fonte, é descrita por muitos que a vivenciam como uma revolução em nossa percepção temporal, uma percepção imediata ou insight súbito da eternidade do aqui-agora. Na companhia de gurus como Terence McKenna, Barbara nos convoca a um revival do que há melhor na psiconáutica arcaica.
O livro contribui imensamente para o estudo e a compreensão do misticismo, podendo iluminar e elucidar a leitura de obras cruciais como a de William James, AsVariedades da Experiência Religiosa, e Heinrich Zimmer, Filosofias da Índia, que talvez sejam as mais impressionantes reuniões de testemunhos sobre a experiência mística. Para uma visão mais contemporânea, que vincula a unio mystica ao consumo de substâncias enteógenas, vale sondar as reflexões de Aldous Huxley em Moksha e de Alan Watts por sua obra afora.
Quando transcendemos a prisão do eu, a jaula do isolamento, a percepção falha que nos leva a crer na possibilidade de nossa existência independente e separada do cosmos que a circunda e inclui, aí então podemos abraçar um aqui-agora que têm densidade temporal. Que tem peso de eternidade. “Eternal Now”, como dizia Watts. Aí percebemos – ainda que para ter este insight às vezes necessitemos de muito estudo do budismo, de muita prática da meditação e doyôga, de algumas gotas de um bom ácido lisérgico ou DMT… – que a interconexão é a verdade do real.
“Wonder”, uma obra de Alex Grey
Não somente somos todos interconexos, ligados a toda a teia da vida; além disso, isto não se esgota no presente imediato. O rio do passado vem regar-nos o presente e vivificar nossa construção comum de um presente futurível (para lembrar um neologismo esperto inventado por Gilberto gênio Gil).
Somos efêmeros contemporâneos da eternidade onde estamos incluídos. A Energia no Universo, garantem os cientistas, pode se transformar mas jamais ser nadificada; os átomos e o vazio, desde Epicuro, são tidos por indestrutíveis! Esta percepção é aquilo que bacantes e mênades buscam – e às vezes acham – em seus rituais musicais, dançantes, psicodélicos: buscam habitar um tempo de êxtase coletivo, de joy na vivência da interconexão. É uma utopia que propõe a re-união e a comum celebração, um hedonismo sábio que propõe que não cortemos todas conexões com o rio do “foi-se e acabou-se”, para então prender-nos em um imediatismo niilista que nos deixaria apenas vagando ao léu, como náufragos agarrados a um pedaço de madeira que flutua no mar após a embarcação ir a pique.
Arcaicas – antigas mas ainda ativas! – são as variadas “técnicas do êxtase”. Esta, aliás, era uma das expressões prediletas que Mircea Eliade usava como ferramenta conceitual crucial para a compreensão e caracterização dos misticismos, do mais variado colorido, reunidos às vezes sob o nome de “xamanismo” e outras vezes sob a alcunha de “paganismo” ou termo semelhante.
No tal do xamanismo, com enorme frequência, as técnicas do êxtase – o caminho que é preciso realizarmos junto até que sejamos uma coletividade capaz de celebração extática e auto-transcendência – são inseparáveis da dança e da música.
Este é um dos argumentos centrais do livro genial de Ehrenreich: êxtase tem tudo a ver com dança, com música, com expansão da consciência, com transcender o eu e abraçar o coletivo. Um ímpeto primaveril que atravessa a História, da tragédia grega de 25 séculos atrás até os festivais hippie à la Monterey e Woodstock. Mostrando que os laços sociais vinculados à busca humana, trans-histórica e trans-cultural, de êxtase coletivo são umbilicalmente vinculados com música, dança e alteração da percepção intelectual-sensível através do consumo de substâncias (naturais ou sintéticas) ditas estupefacientes. Apesar de toda repressão, de todo o sangue derramado por Inquisições, de toda a perseguição autoritária, de todo o proibicionismo bronco dos carolas, Pan, Baco, Deméter, Dioniso, Shiva e toda a trupe dos deuses dançantes e orixás bailantes seguem vivendo e atuando nos corações e mentes de seus carnais celebrantes.
Aquilo que Ehrenreich chama de collective joy, ou que Durkheim chamava de efervescência coletiva, é aquilo que sente-se no meio da torcida em um estádio de futebol quando explode um gol; mas também o que toma conta da vivência da platéia de um show do Jimi Hendrix Experience ou de Janis Joplin e o Big Brother Co. em pleno “Verão do Amor”. É aquela vivência que nos faz transcender a jaula do ego, rumo à inenarrável e estarrecedora experiência de estar acompanhados sob as estrelas, queimando sob o Sol, “todos juntos reunidos numa pessoa só” (como canta Arnaldo Baptista em canção d’Os Mutantes).
Os viventes precários que somos, que tentam somar e solidarizar-se, porém tanto separam-se e segregam-se, podem estar boquiabertos ou apáticos diante dos mistérios do mundo e de nossos vínculos secretos, com ele mundo e uns com os outros; a dança, a música e os estupefacientes são caminhos, uma espécie de multicolorido e polifônico tao, que servem para delinear como as culturas possibilitam a busca de fazer-acontecer o êxtase comunal. São técnicas para a realização das utopias, e não sua mera espera passiva. São técnicas do êxtase que hoje tem o auxílio da eletricidade, do ciberespaço, dos mega-amplificadores, das salas de cinema digital, de todo o aparato tecnológico-científico ainda tão desperdiçado com a estupidez bélica hi-tech. Invistamos, pois, nas arcaicas técnicas do êxtase!
“A dança grupal é a grande niveladora e conector das comunidades humanas, unindo todos os que participam no tipo de communitas que Turner encontrou nos rituais nativos do século XX. (…) Submeter-se corporalmente à música por meio da dança é ser incorporado por uma comunidade de uma maneira muito mais profunda do que o mito compartilhado ou os costumes comuns podem atingir. Nos movimentos sincronizados com o ritmo da música ou de vozes que cantam, as rivalidades mesquinhas e as diferenças de facções que podem dividir um grupo são transmutadas em uma inofensiva competição de quem é o dançarino mais hábil… “a dança”, como coloca um neurocientista, é a “biotecnologia da formação do grupo.”
Desse modo, grupos – e os indivíduos que os constituem – capazes de se manter juntos por meio da dança teriam possuído uma vantagem evolucionária em relação aos grupos ligados por laços menos fortes. (…) Nenhuma outra espécie jamais conseguiu fazer isso. Pássaros têm suas músicas características; vagalumes podem sincronizar a luz que emitem; chimpanzés às vezes podem bater os pés juntos e balançar os braços fazendo algo que os etologistas descrevem como um “carnaval”. Mas, se quaisquer outros animais conseguiram músicas e se mover em sincronia com ela, mantiveram esse talento bem escondido dos humanos.” (EHRENREICH, 2006, p. 37, trad. Julián Fuks)
A dança e a música, apesar de reduzidas, nas idéias estreitas de muitos de nossos contemporâneos, a meras mercadorias ou a reles entretenimentos, são algo que conecta-nos, hoje, à arcaica e ancestral peculiaridade humana, no seio da natureza, que é o fato de estarmos em busca de collective joy, êxtase comunal ou coletivo. Este é um fio que atravessa a história da espécie e que é inapagável, inextipável, incapaz de ser assassinado por quaisquer repressões autoritárias. É uma força resiliente, que sobrevive a todos os tiranos, e que têm como um de seus símbolos mais memoráveis, na história da arte, a batalha épico-trágica das Bacantes com o tirano de Tebas, Penteu, na peça de Eurípides.
As Bacantes, mais do que apenas uma obra-prima da dramaturgia universal, pode ser debatida como documento histórico, etnográfico, transmutado em obra-de-arte pelo engenho daquele que foi, com Ésquilo e Sófocles, um dos autores de dramas que sobreviveu a 25 séculos de transmissão histórica, da Grécia de IV a.C. até o Bixiga paulistano deste 2017 depois do Nazareno. Algo há aí, na resiliência de As Bacantes, na sua capacidade de manter-se com um monte a dizer e ensinar aos nossos próprios tempos, que explica como José Celso Martinez Côrrea pôde reativar a potência da peça nestes anos de 2016 e 2017, com os resultados acachapantes e geniais que já nos acostumamos a esperar do Teatro Oficina, Uzyna Uzona.
O Teatro Oficina é uma pérola refulgente neste pântano esmerdeado de nossa lambança nacional. É resistência e celebração – arte reXistente – que ativa um cyber-terreiro, uma arena-dionisíaca, um microcosmo-da-utopia, onde o Brasil mostra ao mundo o que tem de melhor: a exuberância irreverente de um povo que ginga em busca de um êxtase coletivo, traçando seu próprio caminho, no ritmado enraizado que lhe infundiram séculos de miscigenação e convívio entre gente de culturas do mais pluridiverso colorido.
Nas peças do Oficina, aparece sempre – mesmo quando trata-se de adaptações de autores gringos como Antonin Artaud (Para Dar Um Fim No Juízo De Deus) ou Schiller (Os Bandidos) – dá as caras um Brasil que está sempre recaindo em antagonismos, em querelas, em ríspidas lutas e mortíferas guerras.
As bacantes brazucas nunca podem celebrar em paz, pois são, a despeito de suas vontades, empurradas para uma arena de combate (ah, tiranos! elas só queriam beber vinho, dançar, celebrar! Por que cabeças teriam que rolar?!?); as mênades, proto-hippies da paz e do amor, dançantes e cantantes, re-ativadoras da força sempiterna do conatus, chocam-se contra os poderes do autoritarismo puritano e seus braços armados. A resiliência, a capacidade de sobrevivência da peça de Eurípides – vivíssima no Brasil de 2017! – está também na persistência. no nosso processo histórico, da batalha que o aquele fight – Bacantes versus Penteu – simboliza.
A utopia que vem conectada ao trampo do Oficina ou à antropofagia de Oswald de Andrade, empreendimentos de sintonia íntima, tem a ver com um renascimento do dionisismo, ou seja, de uma cultura onde a celebração coletiva, a alegria dos vínculos estabelecidos sobre as ruínas da egolatria, seja mais potente do que a cultura, imposta de cima pra baixo com a voz grossa e bruta do Patriarcado repressor, que manda sempre postergar todos os gozos, desistir de campanhas inovadoras ou revolucionárias, conformar-se com a monocromia de uma vida cinza, de tédio e monotonia, de servil obediência aos que mandam mortificar a carne e sacrificar o presente, em nome de um tíquete de entrada prum futuro paradisíaco no além-túmulo…
As bacantes – mulheres que saem dos trilhos da cotidianidade, deixando suas posições obedientes na hierarquia de comando masculinista, machista, autoritária… – e vão para a floresta, não só para fugir por um pouco da dureza do dia-a-dia, mas para celebrar a existência e a liberdade, para buscar a força em uma imersão num coletivo que, com forças reunidas, pode muitos, mas muuito mais, do que qualquer indivíduo solitário, por mais fortão e musculoso que seja. A ética e a estética homéricas, que celebram em Aquiles ou Ulisses um heroísmo muito marcado pelas fúrias bélicas, têm nas bacantes, nas celebrantes dionisíacas, nas mênades dançantes e de cabelos esvoaçantes, a celebração da paz, não da guerra; da harmonia e da sincronia, não do antagonismo; do êxtase, não do massacre.
“Friedrich Nietzsche, o clássico indivíduo solitário e atormentado do século XIX, talvez tenha entendido a terapêutica do êxtase melhor do que qualquer outro. Em um tempo de celebração universal do ‘eu’, ousou falar sobre o ‘horror da existência individual’ e vislumbrou o alívio nos antigos rituais dionisíacos que só conhecia por meio de leituras – rituais em que, ele imaginava, ‘cada indivíduo não apenas se reconcilia com o outro, mas une-se a ele – como se o véu de Maya tivesse sido rasgado e só restassem retalhos flutuando ante a visão de uma Unidade mística. (…) Cada um sente a si como a um deus e caminha a passos largos com o mesmo júbilo e o mesmo êxtase dos deuses que viu em seus sonhos.” (EHRENREICH, op cit, pg. 184)
Zé Celso e sua trupe são no país aquelas forças que com mais exuberância servem como porta-vozes destas idéias, entremescla de Nietzsche com Oswald de Andrade, de Artaud com Brecht, e apesar do impiedoso tempo que nos arrasta à velhice e ao inevitável túmulo esta figuraça quintessencial de nossa cultura parece continuar em eterno verão – para citar o título de excelente reportagem e entrevista do El País:
Um dos grandes mestres do teatro brasileiro está prestes a completar 80 anos. Lúcido, sorridente, atuante. Muitos se perguntam qual é o segredo de José Celso Martinez Corrêa (Araraquara, 1937), o Zé Celso, para preservar tamanha energia e criatividade depois de 58 anos à frente do icônico Teatro Oficina – símbolo de resistência artística (e política) cravado no Bixiga, em São Paulo. Mas a verdade é que desse “xamã do teatro”, como ele gosta de se definir, não há segredos para se arrancar. Na entrevista concedida ao El País com os pés ao alto, em meio a uma nuvem de erva queimada, o dramaturgo vestido de um branco alvo como os fios de seus cabelos mostra que não tem assuntos proibidos, respondendo a esta altura da vida com voz suave tudo o que lhe é indagado. Isso, sim: sem fim, nem começo e pelos caminhos que lhe parecem.
A um desses caminhos ele volta sempre: a encenação de Bacantes, o clássico grego de Eurípedes montado pela primeira vez no Oficina em 1995 (em versão brasileira do diretor, no gênero “tragicomédia orgia”), que reestreou no Sesc Pompeia e logo passou ao Bixiga em outubro de 2016. A peça, de quase seis horas e com 52 atuadores em cena, reconstitui o ritual de origem do teatro na Grécia em 25 cantos e cinco episódios e tem música composta por Zé Celso (que também assina autoria e direção).
Encenada como ópera de Carnaval para cantar o nascimento, morte e renascimento de Dionísio, o deus do teatro, do vinho e das festas, ela tem lotado a casa tanto com habitués, como com novos assistentes – atraídos pela nudez libertária do elenco e às vezes também do público, pela genialidade do diretor, pela história ou por tudo ao mesmo tempo. A ideia é que os espectadores se integrem ao bacanal, e alguns deles terminam despidos pelos atores. Na primeira versão, isso aconteceu com Caetano Veloso. Por causa do sucesso orgiástico de Bacantes, Zé Celso ganhou ainda mais força e voz, voltando à carga em seus temas preferidos: teatro, política e xamanismo – que para ele são um só.
Para Zé Celso, duas coisas podem salvar o país da crise política em que começou a mergulhar em 2014: o xamanismo, claro, e a arte. O que ele procura é juntar as duas coisas, rumo à “revolução cultural” que o ex-presidente uruguaio Pepe Mujica prega como a única saída para esses tempos obscuros.” (MORAES, Camila. O Eterno Verão de Zé Celso. El País.)
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II. VIVACIDADE DA ANTROPOFAGIA OSWALDIANA
“Todas as nossas reformas, todas as nossas reações costumam ser feitas dentro do bonde da civilização importada. Precisamos saltar do bonde, precisamos queimar o bonde.“ OSWALD DE ANDRADE, “Contra Os Emboabas” (via Bia Azevedo, p. 68)
Se digo que 2016 não foi de todo um ano catastrófico neste país golpeado e achincalhado por suas escrotas elites canalhocratas, mas teve sim seus esplendores e glórias, é pois a nossa arte e nossos artistas mais relevantes e geniais não nos decepcionaram. Em 16 de Abril de 2016, na véspera da votação do impeachment de Dilma Rousseff na Câmara dos Deputados, então presidida por Eduardo Cunha, estivemos na peça do Teatro Oficina, Para Dar Um Fim No Juízo De Deus.
Saí do teatro de alma lavada e com os ímpetos dionisíacos re-turbinados, orgulhoso dos artistas desta terra e certo de que a política, enfim, não é tudo – que um lamaçal ético sem fim, na Esplanada dos Ministérios, não impede a refulgência de uma contracultura que não se cala, que manifesta-se com exuberância, que abraça a resistência com todo a verve, todo o ímpeto, toda interconexão de uma trupe de mênades e sátiros. E, além disso, saí do teatro com a impressão de ter vivenciado uma imersão não só no universo de Artaud, mas, é claro, no de Oswald de Andrade, constantemente evocado por Zé Celso e sua trupe. Desde os anos 1960, quando encenou O Rei da Vela, o Oficina tem sido talvez o mais resiliente e fiel coletivo que honra o legado da utopia antropofágica oswaldiana.
Também em 2016, caiu no mercado um livro – Antropofagia: Palimpsesto Selvagem, de Beatriz Azevedo – que foi de imediato saudado por Eduardo Viveiros de Castro como “destinado a se tornar referência obrigatória para todo estudioso da obra deste que é, sem a menor sombra de dúvida, um dos maiores pensadores do século XX”. Viveiros de Castro pode até soar hiperbólico em seu elogio a Oswald como figura crucial no panorama do conhecimento global no século que se acabou, mas isto mostra o quanto este pensamento, longe de ser paroquial ou nacionalista, pode ser também uma espécie de produto de exportação autenticamente original gestado e gerado no solo fecundo da cultura brasileira. Queimando o bode da submissão e da subserviência às civilizações importadas e imperialistas.
Quem enxergou isso muito bem, como lembra Bia Azevedo, foi o Roger Bastide, sociólogo francês, que lecionou na USP e publicou em 1950 o livro clássico Brasil: Terra de Contrastes: “Oswald devora as teorias estrangeiras como a cidade devora os imigrantes, transformando-os em carne e sangue brasileiros.” (BASTIDE, apud Azevedo, p. 70) O antropófago Oswald “comeu” toda a diversidade das culturas estrangeiras, mas na hora do vamos ver foi lá e criou algo de novíssimo, algo de revolucionário. “O antropólogo Eduardo Viveiros de Castro afirma que ‘a Antropofagia Oswaldiana é a reflexão metacultural mais original produzida na América Latina até hoje. Era e é uma teoria realmente revolucionária.” (VIVEIROS DE CASTRO, apud Azevedo, p. 24)
A antropofagia é descrita como utopia no título de um dos livros de Oswald que a Ed. Globo recolocou no mercado e que traz textos clássicos como A Crise Da Filosofia Messiânica. Filosoficamente, Oswald tinha muitas similaridades e alianças com o pensamento de Nietzsche, e pode-se dizer que a antropofagia dialoga com o “dionisismo” como este aparece na obra do autor de Assim Falava Zaratustra. Oswald também é um crítico mordaz da civilização ocidental racionalista e repressora, que dá todas as honras a Apolo, a Sócrates, a Descartes, soltando os cachorros de sua feroz repressão contra Dioniso, contra Baco, contra mênades e bacantes, contra feiticeiras e heréticos… Oswald defende o caminho da “valorização do lúdico e da arte”, aproxima-se das teses de Huizinga em Homo Ludens no que diz respeito à presença em todas as culturas, de quaisquer latitudes e longitudes, da “constante lúdica”:
“O inexplicável para críticos, sociólogos e historiadores, muitas vezes decorre deles ignorarem um sentimento que acompanha o homem em todas as idades e que chamamos de constante lúdica. O homem é o animal que vive entre dois grandes brinquedos – o Amor onde ganha, a Morte onde perde. Por isso, inventou as artes plásticas, a poesia, a dança, a música, o teatro, o circo e, enfim, o cinema.” – OSWALD DE ANDRADE, “A Crise da Filosofia Messiânica” (Globo, 2001, p. 144)
por Eduardo Carli de Moraes, Goiânia, Fevereiro de 2017 A ser continuado….
SIGA VIAGEM:
CONFLUÊNCIAS – Festival de Artes Integradas. 2ª Edição: Evoé Café Com Livros, Domingo, 26/02, a partir das 17 horas. Com poesia encenada e pocket show com Luiza Camilo, show percussão-e-coral com o quinteto Cocada Preta, exposição de artes visuais da Lua Plaza, performance poética de Morgana Poiesis, além de discotagem e feirão de livros. Página do evento @ Facebook Brasil.
A editora Globo acaba de relançar – depois de revista e atualizada pela autora – a mais importante biografia de um dos maiores nomes da cultura brasileira moderna. Oswald de Andrade: biografia é obra de Maria Augusta Fonseca, que vem se dedicando há décadas à vida e à obra do grande modernista. Um dos maiores nomes da cultura brasileira, e não somente da literatura, porque Oswald de Andrade foi um daqueles raros homens certos no lugar certo na hora certa: nas palavras de Antonio Candido, “sua personalidade excepcionalmente poderosa atulhava o meio com a simples presença.” Esse meio era o da provinciana vida cultural brasileira do começo do século XX, que Oswald de Andrade ajudaria a ir ao encontro do mundo moderno.
Em aula gravada em 04 de Julho de 2020, o Prof. Eduardo Carli de Moraes, do IFG (Instituto Federal de Goiás), explora os mais de 2.600 anos de história do Materialismo na filosofia através das vidas e obras de alguns de seus mais brilhantes pensadores: Demócrito, Epicuro, Lucrécio, Holbach, Helvétius, Marx, Engels, Althusser, Rosa Luxemburgo, além do próprio Vigotski. Saiba mais sobre a física atomista e a ética hedonista que marcou este modo filosófico de conceber o mundo e reflita conosco sobre a ataraxia (serenidade), a philia (amizade), a parresia (a coragem da verdade), o carpe diem (colha o dia), entre outros temas muito apreciados pelos pensadores materialistas. A aula também inclui a leitura e discussão de autores contemporâneos, que mantêm acesa a chama do materialismo no séc. XXI: Michel Onfray, André-Comte Sponville, Stephen Greenblatt, Roman Krznaric, Michel Serres, Jostein Gaarder, Fernando Santoro, José Américo Pessanha etc. Também inclui um debate que contou com a participação dxs professorxs Priscilla Nascimento, Gisele Toassa, Wagner Schmit, e também de estudantes e estudiosos que acompanham nosso curso. Obrigado a todos que nos acompanham, que estudam, interagem e colaboram conosco na construção coletiva deste curso. Acompanhe a bibliografia do curso nas notas de rodapé deste arquivo: encurtador.com.br/agxB8.
MENTE-SE A MILÊNIOS – Uma reportagem do Hypeness, que revela 8 mentiras que marcaram a História, afirma: “ainda que possa parecer que as fake news tenha sido inventadas nos últimos anos, e por mais que a internet tenha corroborado e intensificado tal fenômeno, a verdade é que notícias falsas movem a história desde os primórdios da humanidade. No Brasil e no mundo, boatos foram forjados e espalhados a fim de alterar o resultado de eleições, justificar graves golpes de estado, derrubar reputações públicas ou efetivar manutenções de grandes poderes. A roda por trás de importantes capítulos da história foi muitas vezes a mentira, noticiada nos jornais e na boca do povo feito fossem verdades, e deixando a fidelidade dos fatos e o rigor ético no chão.”
No Brasil, uma História da Mentira teria que abarcar mais de 520 anos – e certamente tomaria mais de uma dúzia de tomos com 1.000 páginas cada. Algum humorista por aí já deve ter inventado uma frase lapidar que revele toda extensão do território do Engano neste país onde se mente pra cacete. O que hoje chamamos pelo estrangeirismo viral fake news teve um de seus episódios mais notáveis na própria narrativa construída para falar sobre o “Descobrimento” destas terras repletas de pau-brasil. A Hypeness diz ainda:
“O descobrimento do Brasil é um ninho de fake news, a começar pelo próprio título: tratou-se muito mais de uma invasão do que de uma descoberta, considerando os milhões de nativos que já viviam aqui, e a ideia de que o país ‘começa’ em 1500 é uma ilustração perfeita do descaso que temos pela nossa própria história – o que passamos a chamar de Brasil, afinal, é logicamente muito mais antigo do que isso.”
Não é preciso ter lido a obra clássica de Todorov sobre A Conquista da América,ou ter aprendido as lições de Marilena Chauí em outra obra-prima, Brasil: Mito Fundador e Sociedade Autoritária, para saber, nas vísceras, de um conhecimento basilar, que estamos numa Terra onde o imperialismo gringo e as elites nacionais – muitas vezes mancomunadas – espalham mentiras mortíferas faz séculos.
Mais recentemente, a partir da ruptura severa do tecido democrático ocasionado pelo golpeachment desferido contra a presidenta re-eleita Dilma Rousseff em 2016, os brasileiros tiveram uma nova dose de mentiras em série. Distribuídas às massas, via ZapZap, com a ascensão do Bolsonarismo vimos a Mentira empoderada – aja capital empresarial para financiar tanta lorota! Os Bolsominions entram para a História nos capítulos “lata de lixo”, aqueles experimentos errôneos e catastróficos que devem servir como cautionary tales das gerações por vir. O Bolsonarismo é um dos movimentos políticos de extrema-direita mais mentirosos de todo o caminhar pregresso da Humanidade que conhecemos por História.
As eleições presidenciais de 2018 estão fadadas a se tornar um paradigma contemporâneo da eficácia perversa da mentira organizada. A denominação “Mito”, com a qual muitos daqueles que integram a Seita Bolsominion referem-se ao seu líder miliciânico (para eles messiânico), é ilusório: Jair Bolsonaro não chega aos pés de um mito, esta construção simbólica humana, tecida em belas narrativas que conquistam nosso interesse e se marcam na nossa memória, sendo transmitida de geração em geração como um tesouro a atravessar os naufrágios. Seu Jair não passa de um reles mitomaníaco. E 2020 explicita que estamos falando de mentiras mortíferas e que o responsável por elas, por seus crimes contra os brasileiros mas também contra toda a Humanidade, precisa ir com urgência para o banco dos réus por delitos de genocídio.
Seria ofender os avestruzes dizer que Jair Bolsonaro se parece com um deles. Avestruzes são aves formidáveis, utilizadas às vezes de maneira pejorativa como se fossem cegas voluntárias, que enfiam a cabeça debaixo da terra como se não quisessem enxergar o mundo à sua volta, tirando assim umas “férias da realidade”. Jair Bolsonaro não tira férias da realidade, ele está permanentemente alojado fora dela. Ele gira numa órbita insana onde o conceito de Verdade não opera como deveria – ele confunde sua crença lunática em uma realidade paralela (onde a terra é plana, Olavo é sábio e os “homens-de-bem” alegram-se torturando petistas e exterminando cubanos). Crença seria cômica, digna de um palhaço Bozo, se não fosse trágica, aparentada que é à psicologia que presidia o III Reich Hitlerista.
A Ditadura Nazista, afinal de contas, lá pelos idos de 1933, também se ergueu sobre as asas de mentiras mortíferas. Os nazis organizaram um partido de extrema-direita que adorava perseguir judeus e comunistas, e contra ambos foram alardeadas mentiras grotescas que frequentemente vinham somadas ao “comando” de perseguir e exterminar os desviantes, os transviados, os vagabundos matáveis destes judeus sujos e comunistas horrorosos. Assim destravou-se a repressão brutal contra aquelas pessoas que por participação em atividades políticas comunistas, socialistas, anarquistas, neo-espartaquistas, contestadoras do status quo de múltiplas variedades, eram xingados de “bolcheviques culturais”.
Na história das fake news, é preciso lembrar sempre de como o III Reich instrumentalizou um panfleto anti-semita fake chamado Os Protocolos dos Sábios de Sião, e que diante do Incêndio do Reichstag de 1933 apressou-se a providenciar, como bode expiatório, o velho “bode” do comunismo… Bolsonaro, como bem argumentou Iná de Camargo Costa, está de fato “requentando a marmita nazista” (e Aroeira tem razão!).
Comunistas foram presos em massa, incluindo todos os parlamentares do partido, fazendo com que os nazistas se tornassem a absoluta maioria no parlamento, e permitindo a Hitler ampliar e consolidar seu poder. A famigerada Lei de Concessão de Plenos Poderes foi aprovada – concentrando todo o poder nas mãos do Führer – Marinus van der Lubbe foi executado, mas até hoje nenhuma conspiração foi remotamente comprovada. Em verdade, boa parte dos historiadores reconhece ter se tratado de uma “operação de bandeira falsa” – quando um governo conduz uma operação de modo a parecer ter sido realizada pelo inimigo. Os nazistas teriam incendiado o Reichstag alemão a fim de justamente criar o ambiente perfeito para a perseguição à oposição comunista e instaurar seu regime.
HYPENESS
Eugênio Bucci, em seu excelente artigo News Não São Fake, E Fake News Não São News, provoca: “Não custa lembrar que a mentira é tão antiga quanto a fala. A mentira da imprensa é tão antiga quanto a imprensa. Também em livros, a mentira dolosa é tão velha quanto a invenção de Gutenberg. O livro chamado Os Protocolos dos Sábios de Sião talvez seja o exemplo mais conhecido. De origem obscura – provavelmente foi forjado nos bastidores do czarismo, na Rússia, já em seus estertores -, a obra desencadeou ondas de antissemitismo pela Europa e difundiu preconceitos que levariam a perseguições genocidas, como se viu no Holocausto.” (BUCCI, p. 41)
O Bolsonarismo requenta esta marmita Nazista durante a pandemia de coronavírus: faz alarde de ser um governo anti-comunista, profere ofensas sem fim contra Cuba, Venezuela e China (países tacados pelo “pensamento” presidencial, estreito e tapado, no mesmo balaio-de-gatos dos “países comunistas”), mas no fundo é profundamente fake sua propaganda “nacionalista”. O slogan Brasil Acima de Tudo é a síntese da mentira Bolsonarista: tornar-se uma Colônia dos EUA, re-instaurar por aqui uma Ditadura Militar fantoche, que responde aos ditames da White House e não às demandas e necessidades da população brasileira, é o sonho da familícia Bolsonaro – eles idolatram Trump, usam bonézinhos Make America Great Again, e o próprio Seu Jair agiu frequentemente como a macaca de auditório de seu bilionário corrupto predileto, Donald Trump. Esta identificação afetuosa que parecia mover Seu Jair na direção de Donald tem decerto a ver com os vícios que ambos compartilham, a começar pelo vírus da supremacia branca, que ambos carregam como hospedeiros infectados a disseminar a peste.
O que a crise de saúde coletiva agora em curso, com o novo coronavírus, revelou mais explicitamente sobre o Bolsonarismo foi a extensão praticamente “incurável” da mitomania mortífera que move esta gente que, segundo o diagnóstico da psicanalista Maria Rita Kehl, é psicopatia. Em palavras mais rudes, Jair Bolsonaro está doente de psicose – e seus crimes de irresponsabilidade em série revelam os desvelos de um serial killer. Este está fazendo às claras o que outros psicopatas fazem às escuras, tentando esconder os rastros de suas vítimas. Jair, às claras, enche o Ministério da Saúde com militares, após a queda dos Ministro Mandetta e Teich, e explicita que estará colocando sob controle do Estado a divulgação de informações sobre a pandemia no Brasil. O nobre Jair reivindica seu “direito presidencial” de mentir e omitir sobre a realidade da covid19 no Brasil.
A isso se soma um horror suplementar: o Bolsonarismo delirante e relinchante acredita piamente que está envolvido em uma “guerra cultural”, e alia-se a Olavo de Carvalho formando uma espécie de Exército de Brancaleone, só que desta vez com muitas limusines e jetskins envolvidas na mobilidade dos “soldados do Bozo”. Nesta guerra cultural, eles querem aniquilar qualquer traço, qualquer rastro, exterminar da Terra e enviar ao Nada eterno tudo o que tenha sido dito, feito, criado ou disseminado por entidades tais como: Paulo Freire; Che Guevara; Fidel Castro; Luiz Inácio Lula da Silva; Gramsci; Angela Davis; etc. São todos declarados inimigos do Estado, e é preciso convocar um Rambo truculentaço feito Abraham Weintraub para entrar no MEC com um lança-chamas e reduzir a cinzas tudo o que tenha a ver com a Pedagogia do Oprimido, a História do MST, ou o Lulo-petismo…
O que os artistas satíricos brasileiros, dentre eles os talentosos Aroeira, Vitor Teixeira, André Dahmer, Laerte, Latuff, Ribs, Quinho etc. -, vem denunciando são estas similaridades sinistras entre Nazismo e Bolsonarismo. Nada mais sintomático disto do que o episódio lamentável envolvendo Abraham Vai Tarde, também conhecido como Abrãao Aí-vem-trauma, quando ele decidiu abandonar o MEC e fugir para Miami – com ajuda de Bolsonaro e burlando um decreto do governo dos EUA que proíbe a entrada de brasileiros naquele país. Antes de abandonar o Ministério da Educação, Weintraub desceu uma canetada extinguindo políticas de inclusão social (demasiado “petistas”…) que garantiam direitos de participação na pós-graduação às populações historicamente negligenciadas e espoliadas (povos quilombolas e afrodescendentes, aldeias indígenas, comunidades ribeirinhas, populações faveladas etc.).
Provalmente o Olavete Rambônico pense que isto seria o equivalente, em seu filme de ação interno, àquela cena em que o vilão se sente acuado, rodeado por inimigos e pelos tiros que tentam alvejá-lo, e aí decide “cair atirando” – “se morrer, pelo menos mato uns 3 e levo os filhos-da-puta pro túmulo comigo.” Só uma mentalidade Chuck Norris de destruição homúncula perversa para explicar tal medida. Ele, que tanto mandou a Esquerda ir pra Cuba, que tanto zoou a estudantada por só fazer balbúrdia, que tanto ofendeu professores e servidores públicos por seguirem fazendo surubas regadas a maconha plantada nos câmpus em rituais diabólicos de esquerdopatas orgiásticos (com dinheiro público, vejam se pode!), agora foi pra Miami. Verdade, Ministro, Miami tem bem mais a ver com você… Vaze e nos deixe em paz – atendendo enfim à demanda de pressão cívica que maravilhosamente tomou o Brasil em Maio e Junho de 2019 no fenômeno de massas “educadas” (educadores e educandos, em posições inter-cambiáveis, juntos na vivência da resistência e da parturição de uma realidade alternativa) que foi o Tsunami da Educação.
A “guerra cultural” deles manifesta-se, na prática, como um combate entre as mentiras maléficas organizadas em Sistema – chamarei isto de A Seita dos Mentirosos – e aqueles que ainda valorizam em suas vidas o conhecimento, a ciência, a lucidez, a fidelidade ao real – e chamaria isto de A Fraternidade dos Despertos. Antes que me acusem de maniqueísmo, já me apresso a dizer que não se trata de guerra entre o Bem e o Mal em um sentido binário: aqui, afirma-se, ao contrário, que o próprio binarismo é maléfico, a começar pelo delírio que acomete A Seita dos Mentirosos de racharem o mundo entre Nós vs Eles, Amigos contra Inimigos.
O Bolsonarismo é uma ideologia política toda calcada na rigidez de um binarismo insustentável: ao basear seu único combustível no ódio, vai afundando na necropolítica do “governo pelo ódio” tão bem revelado pelo jornal Le Monde Diplomatique em edição histórica. E o ódio mente. Proliferam mentiras mortíferas em uma conjuntura onde o Outro não é visto como alguém-com-quem-posso-atar-um-diálogo (e quem sabe uma aliança, quem sabe uma amizade!). O ódio faz desejar o mal do outro, a sua aniquilação, o seu sofrimento: o ódio do supremacista branco faz com que ele desenvolva uma psicose perversa que o leva a gozar com o “espetáculo” de negros enforcados em árvores pela Ku Klux Klan.
Já passou da hora de percebermos que fake news estão enraizadas nas políticas do ódio, que tem menos a ver com jornalismo do que com propaganda fascista, e que só uma cidadania desperta e ativa, mobilizada contra os desmandos da Seita dos Mentirosos, poderá tornar eficaz a Fraternidade dos Despertos para que esta possa seguir seu trabalho de seguir interminavelmente despertando a outros seres humanos hoje cativos. Bolsonaristas, que constrõem sua união sectária com o cimento do ódio, não conseguem suportar, na Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire ou nas práticas agroecológicas e culturais do MST, que o “cimento humano” seja outro: amor, respeito à diversidade, acolhimento do estranho, disposição ao diálogo. O Bolsonarismo é avesso ao diálogo e esmagador das diferenças: como a Ditadura Nazista, a ideologia Bolsonarista manifesta este desejo de Império do Homogêneo, quer impor o ser humano macho e “modelo ariano” como o supra-sumo, o ideal, o sumo bem da Mankind… Isso é doentio, adoecedor.
Falando desde o viés da Filosofia, do “lugar de fala” do professor de filosofia atuando em instituição federal, devo dizer que a frustração cotidiana que sinto é imensa diante da força ultrajante da Seita dos Mentirosos, uma força que só pode se dever a uma credulidade a que foram condicionados. O desprezo pelo pensamento autônomo, pelo exercício soberano, pelo sapere aude, não é incentivado por seitas interessadas na coesão pela mentira. A Fraternidade dos Despertos quer abrir mentes que a Seita dos Mentirosos fechou no quadrado de seus dogmas estreitos. Queremos cidadania desperta e rebelde, eles querem apáticos zumbis. Queremos cidadãos que ousam transformar-se e transformar ao mundo, e não ovelhas que se resignam placidamente e caminham para o abatedouro só porque um líder assim o ordenou. Onde eles querem obediência cega, queremos lucidez irreverente. Onde eles querem o monótono coro da “família tradicional brasileiro”, queremos todo o colorido e a cacofonia de amores mais livres e libertos, fora da jaula de tuas normas heterosexistas. Em entrevista recente, Rubens Casara falou sobre isso em bons termos:
“O fanatismo impede qualquer reflexão. Isso porque para o fanático só existem “certezas”. E a existência de dúvidas é fundamental ao desenvolvimento do pensamento e da crítica. Mesmo no campo religioso, a dúvida é fundamental à construção da ideia de fé, enquanto as certezas levam aos fundamentalismos que negam a alteridade. Pode-se dizer que as certezas são inimigas da ciência e do conhecimento. A ideologia, em sua concepção negativa, nubla a percepção da realidade, o que facilita o surgimento de fanatismos.”
O que ainda resta por compreender a fundo é a “Psicologia de Massas do Neo-Fascismo na Era das Mídias Digitais”, uma espécie de trabalho de renovação de Wilhelm Reich que ainda está vastamente por fazer. Este escrito pretende contribuir para este canteiro de obras coletivo: compreender, para transformar, esta máquina de produzir mentiras mortíferas e de cimentar pelo ódio. Para isto, é preciso compreender a psiquê em suas dinâmicas emocionais não como manifestação imediata de um caráter fixo e rígido, mas sim como uma espécie de barco navegando em vastas águas, por vezes turbulentas, em que sua potência-de-existir (conatus) é expandida ou retraída ao sabor dos encontros, dos contatos com outros. Nossa novidade histórica está na quantidade de encontros e contatos que temos uns com os outros através de dispositivos computacionais digitais, e não mais presencialmente. Para além disso, temos “contatos” com imagens de outros em profusão através de filmes, videogames, fonogramas etc. Para Bucci,
“Pessoas mal-intencionadas ainda faturam com a mentira travestida de jornalismo porque as regras dessa nova indústria digital permitem isso. Quanto maior o número de cliques, mais o autor arrecada. A mentira é fácil de produzir – é barata – e desperta o furor das audiências. Despertando emoções intensas nos internautas, mobiliza-os para propagar o malfeito. (…) As redes sociais acrescentaram à paisagem um pacote inédito de perversidades. As notícias hoje circulam segundo os ditames do entretenimento, orientadas por fontes pulsionais, sem as mediações da razão. Aí, as fraudulentas levam vantagem. (…) O que agrava é o problema é o isolamento do indivíduo dentro das bolhas. Na era das redes sociais, o sujeito se encontra encapsulado em multidões que o espelham e o reafirmam. São multidões de iguais, especulares, multidões de mesmos. Vêm daí as tais ‘bolhas’ das redes sociais, cujo traço definidor é a impermeabilidade ao dissenso. ” (BUCCI, op cit, p. 45)
Sejamos, pois, permeáveis ao dissenso, abertos ao diálogo, mas não menos combativos contra as forças do obscurantismo que hoje infectam o espaço público com suas fétidas mentiras mortíferas. Hannah Arendt, a filósofa que cunhou o conceito de “banalidade do mal”, sabia bem que a política e mentira estão em tenebrosas transações há milênios – sendo a pia fraus da República de Platão um dos melhores exemplos da antiguidade greco-romana. Queremos viver em uma sociedade onde tenham voz e vez, para participação efetiva na co-criação da realidade societal, todos os que foram até aqui silenciados, não levados em conta, chutados para escanteio. Queremos a liberdade de opinião e de imprensa, para que A Fraternidade dos Despertos e a Seita dos Mentirosos possam sim “digladiar” a olhos vistos. Na esfera pública transtornada e tirada de órbita pela proliferação de celulares conectados à Internet 24h por dia, ainda é preciso afirmar em coro com Arendt: “A liberdade de opinião é uma farsa se a informação sobre os fatos não estiver garantida e se não forem os próprios fatos o objeto do debate.”
Em 2016, a Universidade de Oxford elegeu como a Palavra do Ano, destinada a entrar no prestigioso Dicionário Oxford, o neologismo “pós-verdade” (em inglês: post-truth). Foi um evento sócio-linguístico amplamente noticiado (vejam as matérias do G1 e do Nexo) e que colocou de vez no epicentro do debate público a questão das notícias falsas e das ressonâncias sócio-políticas da disseminação massiva de falsidades interesseiras.
A definição deste termo recém-chegado ao glossário do idioma de Shakespeare é muito interessante do ponto-de-vista filosófico e psicológico: post-truth (pós-verdade) é um conceito, explana o pessoal de Oxford, que se refere a “circunstâncias em que os fatos objetivos são menos influentes na conformação da opinião pública do que apelos à emoção e à crença pessoal”.
Ou seja, a pós-verdade tem a ver com uma comunicação social que privilegia o emocional e não o racional dos receptores. Que apela para a fé e não para o raciocínio lógico. Que estimula a credulidade cega ao invés de um ceticismo salutar.
Muitos dos conteúdos que circulam nas mídias digitalizadas nesta era da pós-verdade tendem muito mais ao sensacionalismo imediatista do que à reflexão prolongada; desejam produzir efeitos práticos que muitas vezes nada tem a ver com averiguar e divulgar verdades apuradas; ao contrário, a mentira, a calúnia, a distorção e a desinformação são tidas como ferramentas aceitáveis para produzir os efeitos desejados.
Com a viralização de uma comunicação que desdenha da verdade em prol da eficácia demagógica das mensagens, exacerba-se a produção massiva de subjetividades incapazes de senso crítico. Imbecilizadas por uma torrente desastrosa de mentiras organizadas, destinadas a manipular as massas em prol de interesses de cúpulas, os cidadãos ultra-conectados tornam-se prisioneiras de “bolhas” onde mentiras são celebradas como dogmas dificilmente abaláveis. E os que visam furar a bolha com o alfinete da crítica são estigmatizados como os hereges e bruxas de outrora – que merecem queimar nas fogueiras de uma nova inquisição.
Estamos em pleno processo de concretização da distopia Orwelliana de 1984: naquele livro visionário escrito nos anos 1940, o escritor inglês colocou seu protagonista, Winston Smith, como funcionário público do Estado Totalitário chefiado pelo Big Brother. Smith trabalha no “Ministério da Verdade” e seu serviço cotidiano é adulterar notícias e livros de história, adaptando o passado ao que o presente ordena.
Após as eleições de Donald Trump e Jair Bolsonaro, além do referendo do Brexit (que acarretou que o Reino Unido saísse da União Européia), entramos inegavelmente na era da hegemonia da pós-verdade. O jornalista inglês Matthew D’Ancona, colunista do The Guardian, escreveu uma das principais obras sobre o assunto: Pós-Verdade – A Nova Guerra Contra os Fatos Em Tempos de Fake News (Faro Editorial).
Para este autor, “a mentira é parte integrante da política desde que os primeiros seres humanos se organizaram em tribos. Platão atribuiu a Sócrates a noção de nobre mentira [pia fraus], um mito que inspira a harmonia social e a devoção cívica. No Capítulo 18 de O Príncipe,Maquiavel recomenda ao governante ser ‘um grande fingidor e dissimulador.'” (D’ANCONA, p. 32)
Não há como evitar escolher como “emblema” da Era Post-Truth o empresário-presidente Donald Trump: “de acordo com o site de fact-checkingPolitiFact, que checa informações e é ganhador do prêmio Pulitzer, 69% das declarações de Trump são ‘predominantemente falsas’, ‘falsas’ ou ‘mentirosas’. No Reino Unido, a campanha a favor da saída da União Européia triunfou com slogans que eram comprovadamente não verdadeiros ou enganosos, mas também comprovadamente ressonantes.” (D’ANCONA: p 20)
Após Trump e Brexit, não surpreende tanto o “triunfo” da extrema-direita no Brasil no pleito de 2018. Fugindo de todos os debates, o candidato que idolatra Ustra e Duque de Caxias baseou sua campanha em fake news: haveria um complô das feminazis abortistas com os petralhas corruPTos, mancomunados para transformar as inocentes criancinhas do Brasil em monstros homossexuais e sodomitas, utilizando-se de um kit gay idealizado por Haddad e sua fiel escudeira, Manuela D’Ávila, aquela que veste camisetas “Jesus é Travesti”… O impressionante não é que houve quem acreditasse nas mentiras e engolissem com gosto todos os conteúdos enfiados na mamadeira de piroca, inclusive a própria. Idiotas crédulos e otários úteis sempre existiram. O impressionante é o número desses patriotários e suicidadãos que caíram nestas lorotas, indo às normas como um bando de camicases querendo empoderar um psicopata irresponsável e fraudulento.
Elegeram um sujeito que chamam de mito mas não passa de um mitomaníaco, um mentiroso compulsivo. Um sujeito que fugiu dos debates e diálogos democráticos da campanha eleitoral, para fazer “lives” na Internet onde pode exercer com gozo aquele privilégio dos tiranos: monologar diante de seus servos, ordenando ditames estapafúrdios para seus obedientes rebanhos.
Sigam o Messias, ele é a Verdade e a Vida… só que ele dá sequência à “Ponte para o Futuro” de Temer com um plano atroz: uma ditadura militar neoliberal, fundamentalista, elitista, brutalmente truculenta. O excelente jornalismo que está sendo praticado pela filial brasileira do The Intercept tem se devotado a mostrar a quantidade de mentiras em que se enreda o Bolsonarismo (leia aqui).
Todo o o processo golpista (2016 – 2018) que trucidou o Estado Democrático no Brasil só triunfou ao convencer boa parte da população das mentiras montadas pelo aparato de lawfare coligado à mídia empresarial. Lograram convencer muitos de mentiras a rodo: Dilma teria cometido um crime de responsabilidade com suas “pedaladas”, Lula seria culpado por corrupção passiva e lavagem de dinheiro devido a um apê no Guarujá que nunca foi dele e cuja propriedade ele teria ocultado…
Mentiras de eficácia que serviram à consumação do Golpe. A campanha de Bolsonaro, embarcando nesta onda de mentiras úteis e cruéis, jogou sujo nas Eleições. Só ganhou pois mentiu descaradamente, em escala industrial, com milhões de reais investidos ilegalmente, via caixa 2, em disparos de propaganda fascista-antipetista nas mídias sociais (algo que foi denunciado durante o próprio processo eleitoral por Patrícia Campos Mello na Folha).
“Quem esteve presente na manifestação do #EleNão vivenciou uma multidão pacífica de senhoras, senhores, crianças e militantes feministas. Os que não foram às ruas viram versões distorcidas de meninas de peito de fora, enfiando crucifixos no meio das pernas, fumando maconha e clamando pela volta de Satanás.”
LEIA NA ÍNTEGRA: TORRES, FERNANDA
“BOLHA: WhatsApp, fake news e engajamento dos cultos evangélicos ganharam de lavada as eleições”. Por Fernanda Torres em Folha de S.Paulo: https://bit.ly/2QXVIfb.
BOLHA: WhatsApp, fake news e engajamento dos cultos evangélicos ganharam de lavada as eleições. Por Fernanda Torres em…
Hoje, o poderio do conglomerado empresarial Facebook-Instagram-Whatzapp (na prática, a mesma superempresa), está sendo hackeado por uma extrema-direita inescrupulosa e atroz em seus ataques aos direitos humanos mais elementares. E as forças de esquerda precisam admitir que estão perdendo de lavada no jogo do empoderamento midiático e da apropriação coletiva das novas tecnologias.
Não digo que a esquerda deva aderir aos mesmos métodos sujos de nossos adversários fascistas. Pelo contrário: devemos ser sempre aqueles who speak Truth to power, os que usam a Verdade como sua maior arma. Mas Verdade que não circula, que não se ouve, é frágil e precária. Nossa missão: to make Truth powerful again…
Quem estuda jornalismo em uma boa universidade aprende a criticar o sensacionalismo da imprensa dita “marrom” (lá fora, yellow press). Aquela imprensa que só quer fazer efeito e causar sensação – violando os códigos éticos da profissão pois não se preocupa com a investigação e divulgação dos fatos, apurados com o rigor de um profissional que se norteia pelo valor supremo que é a verdade factual. Fake news é sensacionalismo na era das mídias sociais – e a analogia persiste aceitável no âmbito econômico, pois os sensacionalistas da imprensa marrom obviamente queriam vender muitas cópias do jornal ou revista que era veículo de escândalos e denúncias muitas vezes descolados brutalmente do campo do concreto-factual. Hoje, as fake news também são um mercado lucrativo – tem muito YouTubber e blogueirinho Olavete ficando rico com sites e canais que não fazem jornalismo, só vestem a máscara enganadora do jornalismo para melhor disseminar falsidades e apelativos sensacionalismos!
O tema é tão quente que sites como o Descomplica, na série “Redação Nota 1000”, que ajuda estudantes a arrasarem no ENEM, já dedicaram-se ao assunto dos “efeitos das fake news na sociedade brasileira contemporânea”, problemática que tende a ser muito cobrada pelo Exame Nacional do Ensino Médio em nossos tempos:
No entanto, não há nada de novo na atitude de desprezo pela verdade objetiva na História humana, como provam os seguintes exemplos em ordem cronológica invertida (do mais recente ao mais antigo):
Após o 11 de Setembro de 2001, em cujo aftermath foi desenvolvida a interminável Guerra Contra o Terror, os EUA já gastou mais de 3 trilhões de dólares em conflitos bélicos que custaram a vida de mais de 500.000 pessoas, como reporta a Newsweek. Esta matança tem muita conexão com uma grande mentira. Um dos pontos altos desta escalada se deu com a invasão do Iraque em 2003, realizada a despeito do desacordo do Comitê de Segurança da ONU, que não autorizou a ação pois concluiu que eram mentiras as justificativas apresentadas pelo Governo Bush e pelo Pentágono: as armas de destruição em massa que supostamente possuía o regime de Sadam Hussein eram só um mito, uma fantasia paranóica. Era fake news que Sadam tinha bombas atômicas.
Tampouco haviam indícios confiáveis de qualquer vínculo da cúpula do governo de Hussein com a Al-Qaeda ou os Taleban do Afeganistão, artífices do atentado contra as torres gêmeas. Como Arundhati Roy escreveu em seus livros, esta foi uma das fake news de maior impacto do século 21, contribuindo para a guerra contra o terror em que o imperialismo papa-petróleo strikes again. Bush foi em frente com a farsa apesar dos 15 milhões de cidadãos que saíram às ruas para protestar (como retratado no documentário We Are Many), numa manifestação global de gigantismo tamanho que não se compara a nada que tenha sido feito pelo movimento hippie, contracultural, pró-Direitos Civis, contra a Guerra do Vietnã, anteriormente.
Mesmo com os gigantescos protestos civis, a Guerra Contra o Terror, enraizada numa mentira, plantou o caos e o morticínio do Oriente Médio e colaborou para a emergência de um sintoma paralelo da guerra de agressão imperialista – o nascimento do Estado Islâmico.
O nazismo alemão, no processo de instaurar as estruturas para a realização da Solução Final, ou seja, o genocídio (Shoah/ Holocausto), justificou o massacre sistemático de mais de 6 milhões de judeus europeus com base em um documento falso, Os Protocolos dos Sábios de Sião. Este panfleto antisemita, baseado numa obra de ficção chamada Diálogo no Inferno entre Maquiavel e Montesquieu, tornou-se um caso de histeria em massa provocado por um pseudo-complô inexistente. Hitler parecia idolatrar Os Protocolos com uma credulidade digna de um fanático religioso. “O jornal The Times revelou em um artigo de 1921, escrito pelo jornalista Philip Graves, que o texto apresentava diversas passagens plagiadas de Diálogo no Inferno entre Maquiavel e Montesquieu, obra satírica do escritor francês Maurice Joly.” (Wikipedia) A premiada graphic novel de Will Eisner explora esta monumental fake news na história dos movimentos antisemitas e desmonta as mentiras do “arianismo-nazi”.
Na história da arte no séc. XX, tornou-se lendária a transmissão de Orson Welles em que ele interpretava A Guerra dos Mundos, de H. G. Wells, no rádio; não faltaram os crédulos que acreditaram que, de fato, estava rolando uma invasão alienígena, já que na rádio isto estava sendo “informado”… O pânico com os falsos aliens de Orson Welles marcariam para sempre a nossa percepção do poder de produzir delírios em massa dos novos meios de comunicação de multidão. O genial cineasta depois exploraria temas sobre manipulação de massas pela mídia e falsificação interesseira em obras primas como Cidadão Kanee F For Fake.
Exemplos não faltam para evidenciar que as fake news não são nada de novo. Não são apenas os noticiários que estão sujeitos à serem hackeados por Pinóquios gananciosos e ideólogos mentirosos. Também a escrita da História (da vida humana pregressa) está no olho-do-furacão dos antagonismos contemporâneos. Poucos filmes do cinema atual revelam isso melhor que Denial – um filme maravilhosamente interpretado por Rachel Weisz, Tom Wilkinson e Timothy Spall.
O filme Denial realiza uma reconstrução de um julgamento que marcou época na Inglaterra: “em 2000, David Irving processou a acadêmica norte-americana Deborah Lipstadt e sua editora, a Penguin Books, na Suprema Corte britânica, por causa da descrição que ela fez dele em seu livro Denying the Holocaust”. Neste livro, Lipstadt (interpretada na telona por Rachel Weisz) afirma que “Irving é um dos porta-vozes mais perigosos da negação do Holocausto. Familiarizado com a evidência histórica, ele a adapta até ela se adequar às suas inclinações ideológicas e agenda política.” (D’ANCONA, 2018, p. 75).
Em uma cena notável, a Deborah Lipstadt sai para correr por Londres e, por duas vezes, pára diante da estátua da rainha celta Boadiceia (saiba mais). É o modo que o filme encontrou para comunicar a dimensão épica da batalha que opõe Deborah e seu adversário Irving no tribunal. O que está em jogo dentro do tribunal, em Denial, é uma espécie de batalha épica entre o-que-realmente-aconteceu e um historiador de extrema-direita que mente sobre o que de fato se passou.
Para além da arte, o filme incide sobre o real de maneira performativa ao tornar-se uma espécie de ferramenta ativista para demolir quaisquer movimentos de “Negadores do Holocausto” (Holocaust Deniers). Um filme que deve estar no revolutionary toolkit também dos ecologistas e ecosocialistas, pois terá serventia para confrontar os negacionistas que hoje são mais perigosos: os que negam o fato do Aquecimento Global causado por ação humana devido ao nosso sistema hegemônico que vomita na atmosfera um excesso gases de efeito estufa.
Já passou da hora de derrubarmos todos os pedestais onde malignamente se mantêm os produtores-do-apocalipse-capitalista através do extrativismo-sem-fim, somado à queima de combustíveis fósseis sem-freios. Já passou da hora de desmascararmos as mentiras corporativas – como a conversinha dos corporações de cigarro que negavam o vínculo de sua mercadoria com o câncer de pulmão, ou como a lorota das corporações petrolíferas que buscaram negar que a queima de sua mercadoria tinha efeitos no incremento das temperaturas planetárias.
Refiro-me aqui àqueles endinheirados ecocidas que Naomi Oreskes e Eric Conway batizaram, num livro salutar, de Merchants of Doubt. Os mercadores da dúvida querem lançar descrédito sobre um consenso científico que envolve cerca de 97% da comunidade global de cientistas que dizem em uníssono: sim, a chapa está esquentando pra toda a vida sobre o planeta, global warming is fuckin’ real!
As fake news evidenciam os antagonismos sociais na disputa inclemente por hegemonia ideológica, controle político, poderio econômico, privilégios privados. Mas, para além dos dramas contemporâneos, estudar esse fenômeno leva-nos ao questionamento do andar-da-carruagem chamada Humanidade. Sobretudo nos leva à reflexão sobre o papel que nela jogou o apego emocional ao falso, o abraço voluntário do erro, o auto-engano do crédulo que é cego por não querer ver, surdo por não querer ouvir, ignorante por não querer saber.
Outro elemento crucial no debate sobre fake news e falsificação da História são as famosas “Bolhas”, criadas por algoritmos e filtros invisíveis, que nos prendem nas ilhas muradas de nossas próprias seitas (sem que, muitas vezes, tenhamos plena consciência disso). Eli Pariser ensina:
“Com o Goole personalizado para todos, a consulta ‘CÉLULAS TRONCO’ pode trazer resultados totalmente opostos para cientistas que apoiam pesquisas com células-tronco e ativistas que se opõem a elas. ‘PROVAS DE MUDANÇAS CLIMÁTICAS’ podem trazer resultados diferentes para um ativista ambiental e um executivo de petroleira.
Segundo pesquisas, a grande maioria das pessoas acredita que os mecanismos de busca são imparciais. Mas isso pode ser apenas porque eles estão cada vez mais inclinados a mostrar nossa própria visão. O monitor do computador é, cada vez mais, uma espécie de espelho unidirecional, refletindo seus próprios interesses, enquanto os algoritmos observam no que você clica.
“Se os algoritmos vão ser os curadores do mundo, se decidirão o que vamos ver e o que não vamos, então precisamos nos certificar de que eles não sejam determinados apenas pela relevância, mas que também nos mostrem coisas desconfortáveis, desafiadoras ou importantes, outros pontos de vista.”
ELI PARISER – “O Filtro Invisível” (Zahar)
Citado por KAKUTANI, “A Morte da Verdade”, Intrínseca, p. 144-145.
Walter Benjamin já alertava, em suas reflexões sobre a História: “o dom de despertar no passado as centelhas de esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer.”
A verdade, além de simplesmente ser, precisa vencer. E só o fará com a coragem unida dos verazes. A arte-de-viver que Foucault chamou de coragem da verdade segue nos interpelando e nos solicitando, o que significa, em linguajar ético-filosófico, que a parresía ainda é uma indispensável virtude, que devemos sempre coletivamente cultivar. Caso contrário, será a regressão à barbárie e ao triunfo grotesco dos falsos e dos mentirosos, dos imperadores do pseudo, dos profetas do fake, dos ídolos de pés de barro.
Outro elemento crucial no debate sobre fake news e falsificação da História são as famosas “Bolhas”, criadas por algoritmos e filtros invisíveis que nos prendem nas ilhas muradas de nossas próprias seitas (sem que, muitas vezes, tenhamos plena consciência disso). Eli Pariser ensina:
“Com o Goole personalizado para todos, a consulta ‘CÉLULAS TRONCO’ pode trazer resultados totalmente opostos para cientistas que apoiam pesquisas com células-tronco e ativistas que se opõem a elas. ‘PROVAS DE MUDANÇAS CLIMÁTICAS’ podem trazer resultados diferentes para um ativista ambiental e um executivo de petroleira.
Segundo pesquisas, a grande maioria das pessoas acredita que os mecanismos de busca são imparciais. Mas isso pode ser apenas porque eles estão cada vez mais inclinados a mostrar nossa própria visão. O monitor do computador é, cada vez mais, uma espécie de espelho unidirecional, refletindo seus próprios interesses, enquanto os algoritmos observam no que você clica.
Se os algoritmos vão ser os curadores do mundo, se decidirão o que vamos ver e o que não vamos, então precisamos nos certificar de que eles não sejam determinados apenas pela relevância, mas que também nos mostrem coisas desconfortáveis, desafiadoras ou importantes, outros pontos de vista.”
ELI PARISER – “O Filtro Invisível” (Zahar)
Citado por KAKUTANI, “A Morte da Verdade”, Intrínseca, p. 144-145.
Walter Benjamin já alertava, em suas reflexões sobre a História: “o dom de despertar no passado as centelhas de esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer.”
Os mortos podem ser ofendidos pelas mentiras do inimigo – lembrem-se dos Bolsominions espalhando mentiras sobre Marielle logo depois dela ser assassinada? Por isso, o Direito à Memória e à Verdade deve ser por nós afirmado como um dos direitos cívicos mais elementares, sem o qual não se sustenta coesa nenhuma democracia.
A verdade, além de simplesmente ser “aceita” na sociedade, precisa vencer – ganhar força para que tenha hegemonia. Pois o reinado da mentira tem como frutos os morticínios. A verdade só vencerá – como prometeu Lula em seu liveo – através da coragem unida dos verazes. A arte-de-viver que Foucault chamou de coragem da verdade segue nos interpelando e nos solicitando – o que significa, em linguajar ético-filosófico, que a parresía ainda é uma indispensável virtude, que devemos sempre coletivamente cultivar. Caso contrário, será a regressão à barbárie e ao triunfo grotesco dos falsos e dos mentirosos, dos imperadores do pseudo, dos profetas do fake, dos ídolos de pés de barro, dos mitomaníacos engana-trouxas.
Eduardo Carli de Moraes A Casa de Vidro Ponto de Cultura – Goiânia
Uma reflexão ética sobre as possibilidades das novas tecnologias.
As tecnologias da informação produzem diversas mudanças na vida social. Por exemplo, novas formas de interação social entre indivíduos distantes fisicamente, porém conectados pela internet. Esses efeitos podem parecer inofensivos, mas eles podem se tornar um assunto bastante controverso. A tecnologia não apenas expande o alcance da ação humana, ela pode alterar permanentemente o modo como as pessoas se relacionam e também o que elas esperam de uma interação social. A leitura que se faz da pessoa com quem se está interagindo, por exemplo, é diferente quando não se pode avaliar suas reações emocionais e componentes não-verbais da comunicação.
Com o avanço da análise de dados, é provável que os aplicativos consigam ler sinais gestuais ou analisar sentenças e tom de voz de uma pessoa, usando câmera e microfone, para compreender o comportamento de usuários melhor do que eles mesmos compreendem. Quais seriam as implicações éticas desse tipo de tecnologia?
Algumas técnicas de avaliação psicológica deveriam ser usadas apenas com consentimento, por uma pessoa qualificada e somente num contexto terapêutico. Usar certas técnicas de psicologia fora dessas condições é eticamente questionável, pois as consequências podem ser desastrosas. Infelizmente tais técnicas são rotineiramente usadas por praticantes de coaching, e podem ser aplicadas para novas tecnologias de interação também.
Em 1936, Dale Carnegie lançou um livro chamado Como fazer amigos e influenciar pessoas, que se tornou um dos mais vendidos e mais influentes de todos os tempos, sendo o grande responsável pelo estabelecimento do gênero conhecido como “auto-ajuda”. No livro, Carnegie enumera uma série de dicas para ser melhor sucedido nas interações. Mais recentemente, o livro recebeu uma atualização para o contexto da era digital, mostrando que ele permanece relevante nas interações via internet.
Essas técnicas podem realmente ajudar a lidar com pessoas, mas também podem dar ferramentas perigosas nas mãos de pessoas com traços sociopatas. Num artigo de 2013, Diane Brady lembra que Jeff Guinn, autor de um livro sobre Charles Manson, afirmou que “foi o treinamento de Carnegie que auxiliou a transformação de Manson de ‘um cafetão de baixo nível’ para um ‘sociopata assustadoramente eficaz’, que criou um culto de assassinos no final dos anos 1960”. Quando tais técnicas estão facilmente disponíveis para serem usadas por qualquer pessoas e para qualquer fim, problemas irão surgir.
A normalização de certas tecnologias sociais antes que compreendamos seu efeito na subjetividade também pode ser um problema. Isso já está acontecendo nas redes sociais, quando as técnicas para “ganhar mais seguidores” alteram a lógica das interações cotidianas. Fica pior ainda quando as novas gerações já tem sua socialização primária mediada por estas disposições.
Outro problema diz respeito à nossa relação com inteligências artificiais. O problema de convivermos com simulações pode ser observado no efeito de “dating sims” (simuladores de encontros) na sociabilidade. Estes softwares oferecem interações simuladas para pessoas que podem nunca ter experimentado interações daquele tipo na vida real, o que pode moldar suas disposições afetivas na vida real.
No artigo Should Children Form Emotional Bonds With Robots? (Crianças deveriam formar laços afetivos com robôs?), Alexis Madrigal cita Sherry Turkle para criticar essa mediação tecnológica logo na infância, afirmando que crianças precisam de conexões com pessoas reais para amadurecer emocionalmente. “Empatia simulada não é suficiente. Se os relacionamentos com brinquedos inteligentes nos afastam daqueles com amigos ou familiares, mesmo parcialmente, poderemos ver crianças crescendo sem as condições necessárias para uma conexão empática. Você não pode aprender isso com uma máquina”.
Mas será que nossa sociedade providencia um ambiente onde as relações com pessoas reais podem acontecer sem serem mediadas por tecnologias? Será que as condições para o amadurecimento emocional estão igualmente disponíveis para todas as pessoas? Será que adultos são emocionalmente maduros o suficiente para lidar com as novas tecnologias da informação?
Existe um risco de se perder referências sociais e emocionais, na medida em que a distinção entre uma reação humana real e uma simulada se dissipa. As relações emocionais maduras são resultado de uma construção social. Quando se interage com um robô dizendo “é só um robô, posso fazer o que quiser”, uma parte da empatia para com pessoas reais pode ser comprometida. Um fenômeno semelhante ocorre com a banalização da violência, quando se diz “é só um filme”. O efeito dessa perda de empatia afeta principalmente certo arranjo de gênero, classe e etnia, o que significa que essa perda de empatia se reflete principalmente numa intolerância racista, sexista e elitista.
No artigo Not every kid-bond matures (Nem todo vínculo infantil amadurece), Gabriel Winant, resenhando o livro Kids These Days: Human Capital and the Making of Millennials (Crianças nos dias de hoje: capital humano e a geração dos millennials), de Malcolm Harris, argumenta:
“A crise generalizada do capitalismo (…) impôs uma enorme pressão competitiva aos jovens para produzir ‘capital humano’. Esse conceito, essencial no pensamento econômico neoliberal, quantifica o conjunto de qualidades humanas economicamente valiosas, educação, habilidades, disciplina, acumuladas ao longo de uma vida. Está no subtítulo do livro porque é a chave do argumento de Harris. A mão oculta que molda millennials, produzindo nossos atributos estereotipados aparentemente diversos e até contraditórios, é o imperativo de intensificação, tanto exterior como também profundamente internalizado, da maximização do nosso próprio valor econômico potencial. (…) O capitalismo está comendo nossos jovens. É só nos alimenta com abacates para nos engordar primeiro.”
É possível deduzir uma relação entre a mediação tecnológica da interação e o conceito de capital humano? Isso exigiria mais pesquisa, porém permita-me adicionar mais um ingrediente nesta sopa e problematizar um pouco mais.
Num artigo de 2018, chamado How the Self-Driving Dream Might Become a Nightmare (Como o sonho da auto-direção pode se tornar um pesadelo), David Alpert pergunta: “O que acontecerá se aceitarmos que um certo número de mortes de pedestres é uma parte inevitável da adoção de veículos autônomos?”. Este problema ético não é tão simples quanto parece. Não basta, por exemplo, dizer que os pilotos automáticos são mais seguros que os motoristas humanos, porque há outros fatores nessa questão. Por exemplo: quem será responsabilizado por esses acidentes? A reflexão foi estimulada pela notícia da primeira morte num acidente com veículo auto-dirigido. A conclusão do autor é que, provavelmente, os próprios pedestres podem ser responsabilizados.
Alpert oferece o seguinte experimento mental: imagine que duas empresas concorrentes ofereçam o mesmo serviço de transporte com veículos autônomos. Uma delas tem um algoritmo um pouco mais cuidadoso para evitar acidentes, e a outra tem um algoritmo mais “ousado”, que resulta em tempos de viagens significativamente menores. Uma pessoa atrasada para uma reunião importante escolhe o serviço que oferece mais rapidez, e no caminho uma pessoa é atropelada. Qual a responsabilidade da pessoa que, sinceramente, só queria chegar mais rápido ao seu compromisso?
A tendência das empresas é dizer que há “pessoas demais na rua”, e as mortes de pessoas podem acabar sendo justificadas em nome da velocidade, do mesmo modo como já são quando se escolhe locomover-se de carro e não com transporte público.
As reflexões éticas em relação a veículos autônomos podem ser aplicadas a outras tecnologias. De quem seria a responsabilidade pela insensibilização e perda da referência emocional com o uso de tecnologias sociais, por exemplo?
Em What Do We Know About Autonomous Vehicles?, Carl Anderson defende que veículos autônomos terão muito impacto em nossas vidas, mas essa tecnologia “está chegando”, não há nada que possamos fazer para impedi-la de ser desenvolvida, e nossas reflexões éticas deveriam se restringir a pensar em como conviver com ela. Essa posição me parece irrazoável, determinista e eticamente injustificável.
A afirmação de que certa tecnologia “já está aqui” e não pode ser resistida implica num posicionamento ético que dá um valor intrínseco ao desenvolvimento tecnológico. É uma atitude determinista afirmar que algo será feito independente das nossas considerações éticas. É também um tipo de otimismo injustificado, que pressupõe que nenhum problema ainda desconhecido se colocará no caminho desse desenvolvimento, como de fato ocorreu em diversos momentos da história, em que se construiu uma imagem de futuro que na verdade não se realizou.
Anderson reduz as questões éticas relacionadas à essa tecnologia dizendo: “As pessoas morrerão à medida que desenvolvemos as capacidades de veículos autônomos – assim como as pessoas morreram durante o desenvolvimento de aeronaves, viagens espaciais ou submarinas. As grandes inovações sempre têm um custo humano, mas a tecnologia sem motorista deve resultar em uma redução significativa das mortes anuais de automóveis”.
O que acontece quando assumimos a validade dessa justificação? Pessoas irão morrer, mas essas mortes são apenas o “custo humano” de todas as tecnologias. Cientistas tem o direito de sacrificar vidas em nome do progresso científico? Se há uma linha que separa a ética da ciência da realidade do avanço científico, como traçá-la?
Anderson diz que:
“Inevitavelmente, os veículos se deparam com o “problema do bonde”, um dilema ético em que o veículo precisa decidir entre duas ou mais ações, cada uma com algum custo – por exemplo, o que é pior: desviar para a esquerda e matar quatro avós ou desviar à direita e matar uma mãe e seu bebê? Alguém tem que programar esses comportamentos ou desenvolver uma IA que aprenda a tomar essa decisão. Não temos certeza de quem tomará essas decisões éticas e quem as regulamentará.”
O problema é que, assumir que tal programação seria eticamente válida é um equívoco. Como Brianna Rennix e Nathan J. Robinson argumentam em The Trolley Problem Will Tell You Nothing Useful About Morality (O problema do bonde não lhe dirá nada útil sobre a moralidade), reduzir a ética a esse experimento mental não apenas é equivocado em termos filosóficos, como pode ser prejudicial à saúde mental, reduzindo nossa capacidade empática.
Outra afirmação de Carl Anderson: “Assim como os smartphones dissolvem a separação entre vida profissional e doméstica, os veículos autônomos também dissolvem a separação entre vida doméstica, de transporte e de escritório”. Em outras palavras, as pessoas poderão trabalhar enquanto comutam. E como exatamente este autor pensa que isso seria bom para a sociedade?
O mesmo tipo de problema ético vem à tona quando se considera o estudo dos algoritmos e técnicas de mineração de dados para maximização da influência em redes sociais. O que acontece quando descobrimos as técnicas mais eficazes de “incentivar pessoas a adotar uma linha de pensamento”? Na prática isso significa manipulação. A ideia de que precisamos “manipular ou ser manipulados” pode estar se popularizando na internet, com efeitos desastrosos para a ética.
Eu não vou tentar solucionar este problema aqui. Mas as implicações éticas complexas das novas tecnologias são um dos motivos que devem nos levar a questionar a lógica inerente ao progresso tecnológico de modo ainda mais fundamental do que temos feito até agora. A radicalização das críticas à modernidade pode transformar a filosofia num incômodo para entusiastas do progresso científico, mas pode também evitar a perda de aspectos fundamentais da nossa humanidade.
Tão certo quanto o amigo ama o amigo, Também te amo, vida-enigma Mesmo que em ti tenha exultado ou chorado, mesmo que me tenhas dado prazer ou dor.
Eu te amo junto com teus pesares, E mesmo que me devas destruir, Desprender-me-ei de teus braços Como o amigo se desprende do peito amigo.
Com toda força te abraço! Deixa tuas chamas me inflamarem, Deixa-me ainda no ardor da luta Sondar mais fundo teu enigma.
Ser! Pensar milênios! Fecha-me em teus braços: Se já não tens felicidade a me dar Muito bem: dai-me teu tormento.
Lou Salomé
Sabemos que o poema Hino à Vida, de Lou Salomé, era profundamente venerado por Nietzsche (1844 – 1900). Tanto que o filósofo compôs a música para acompanhar os versos de sua amiga, tendo sido esta a única partitura que publicou em vida, com arranjos para orquestra e coro de Peter Gast.
A celebração da existência, o dionisíaco evoé entoado por um sujeito capaz de dizer um sagrado sim à tudo que a “vida-enigma” contêm, é um elo de união entre Nietzsche e Lou Salomé, dois destinos que se entrelaçam de maneira inextricável. Nietzsche também reverenciava a filosofia de Heráclito, sua descrição da Phýsis como um devir cósmico onde tudo flui (“não se entra duas vezes no mesmo rio”) e o “combate é o pai de todas as coisas”. Ele deve ter encontrado uma sabedoria heraclitiana em Lou e sua carta endereçada à vida: “deixa-me ainda no ardor da luta”, ela entoava, “sondar mais fundo seu enigma.”
No convívio com Nietzsche e Lou, somos ensinados que a existência não precisa ser compreendida para ser amada: é possível um amor inclusivo, que abraça até mesmo o que a condição de ser vivo envolve de mais trágico e doloroso – a doença, a finitude, a fragilidade dos laços humanos. A vida, com tudo o que tem de exultação ou depressão, de delícia ou sofrimento, comovia Nietzsche a ponto dele parir uma obra que é pura “estrela dançarina” brotando de um íntimo em exuberante estado de caos.
Que a loucura em que soçobrou não nos impeça de celebrar também a sabedoria deste maluco beleza que quis conclamar-nos a esta “afirmação dionisíaca em face do mundo, tal qual ele é, sem redução, sem exceção nem escolha, (…) que é o estado mais elevado que um filósofo pode atingir: manter diante da existência uma atitude dionisíaca, e para isso eu tenho uma fórmula: amor fati. Para isso, devem-se considerar os aspectos renegados da existência não somente como necessários, mas como desejáveis.” (Nietzsche, F. Fragmentos Póstumos 13: 16 [32] verão de 1888).
Nietzsche age como porta-voz de uma sabedoria plenamente fiel à terra, embriagada de vitalidade, agressivamente crítica das ilusões necrofílicas que tomam a forma de esperanças supraterrenas e deuses transcendentes. A celebração dionisíaca da existência imanente, em todo seu esplendor e fúria, é louvada como uma das capacidades supremas que marca o espírito libertado.
Nietzsche transmite na história da ética as coordenadas e os horizontes para que pratiquemos coletivamente uma transvaloração da axiologia hegemônica, que postula a transcendência como o lócus do valor e da redenção, e que exige os mais atrozes sacrifícios: assassinar a vida em prol da quimera de uma outra condição no além-túmulo que não passa de um delírio da mente do crente, alienado de sua efetiva condição, incapaz de amar o que há e desperdiçando seu amor com o imaginário.
Em Humano Demasiado Humano – Um Livro Para Espíritos Livres, podemos aqui e acolá notar a presença do tema do amor: Nietzsche faz uma conclamação, um apelo, para que o amor tenha por meta a imanência e não a transcendência. Amemos esta vida real e concreta onde florescemos e fenecemos, desapegados de qualquer fantasia sobre uma vida paradisíaca no além-morte. Crer na vida após a morte é um artigo de fé nefasto que arrasta-se desde o idealismo platônico e segue marcando a ideologia de todas as doutrinas teístas. Nietzsche, no livro dedicado a Voltaire no centenário de sua morte, dá conselhos de moralista:
“Eis o melhor meio de começar cada dia: perguntar-se ao despertar se nesse dia não podemos dar alegria a pelo menos uma pessoa. Se isso pudesse valer como substituto do hábito religioso da oração, nossos semelhantes se beneficiariam com tal mudança.” (§589)
O filósofo expressa este louvor ao amor terrestre e mundano, em oposição à idolatria religiosa de ídolos sobrenaturais ou metafísicos, em frases lapidares como esta: “Não há no mundo amor e bondade bastantes para que tenhamos direito de dá-los a seres imaginários.” (§129)
Arte de Eduardo Marinho
O espírito livre nietzschiano quer prestar suas homenagens à tradição Iluminista e seus combates contra o obscurantismo que, com tanta frequência, justifica os horrores que pratica na Terra invocando a quimera do paraíso transcendente. Obscurantistas cheios de fé matam hereges na fogueira, assassinam grandes mentes como uma Hipátia ou um Giordano Bruno, queimam livros de Demócrito e Epicuro, mandam calar na marra a voz dos dissidentes, tudo para melhor garantir que os “Homens de Bem” possam gozar das delícias de crer no Paraíso.
Lá no Paraíso, segundo Tertuliano, uma das mais deleitosas gostosuras que hão de gozar os bem-aventurados será a observação das penas crudelíssimas e ultra-dolorosas de que serão vítimas os danados no Inferno. Os que Deus aceitará de volta no ninho de seu Éden, que presenteará com a concretização da promessa messiânica do “os últimos serão os primeiros” (blessed are the meek ‘cause theirs is the Kingdom of God), poderão se deliciar no Céu com a visão de seus adversários terrestres ardendo na câmara de torturas infernal. Eis aí uma autêntica religião para sádicos e vingativos…
Todos os horrores descritos por Dante Aleghieri no Inferno da Divina Comédia, todos os quadros apavorantes da mentalidade paranóica medieval capturados nos quadros de Hieronymous Bosch, atordoam a consciência do crente demasiado convicto na existência de um Além. A fantasia de um prosseguimento de nossa consciência no período pós-morte, as punições e recompensas celestiais ou infernais, desde Epicuro e Lucrécio já são denunciadas como algumas das principais inimigas da serenidade, da felicidade, da ataraxia humana.
Tais delírios de vida supraterrena podem lançar o sujeito ao niilismo da fé: a negação do valor à vida concreta, ao corpo presente, aos sentidos reais, aos prazeres possíveis de serem vivenciados pelos entes que somos, isto é, consciências corporificadas e com prazo de validade neste fluxo ininterrupto do Universo que integramos. Criaturas cósmicas imersas neste Todo onimovente, cíclico, animado por uma Vontade transpessoal que nos transborda por todos os lados e que é plena exuberância criativa e cosmo-poiésis infinda. Somos parte disso, e que felicidade pode dizer Sim!
Para Nietzsche, não há paraísos senão os imanentes, logo precários como tudo que é real. Tanto a sabedoria quanto o amor são para aqui e para já – ou nunca serão. No “Hino à Vida”, o poema de Lou Salomé que Nietzsche tanto reverenciava, percebemos uma significativa contribuição filosófica e estética ao tema do amor à imanência e da fidelidade à terra. Mas quem foi, afinal de contas, esta mulher que Nietzsche amou (ainda que não tenha sido plenamente correspondido)? O que pensava e como agia Lou Salomé, e por quê marcou tanto as vidas daqueles que com ela conviveram?
Dorian Astor, autor de duas biografias dedicadas às vidas e espíritos entrelaçados de Nietzsche e Lou Salomé, relembra alguns dos principais momentos deste convívio. Nascida em 1861, em São Petersburgo, na Rússia, a jovem Lou Salomé, quando tinha aproximadamente 20 anos, seria “iniciada à filosofia árida e fascinante de Nietzsche, que espera dela muito mais do que ela pode dar, mas que lhe passa todas as armas do espírito livre” (ASTOR, 2015, p. 8)
A jovem Lou teria sido para Nietzsche não somente uma discípula que ele fervorosamente desejava ter sob seu círculo de influência, mas também uma das mulheres que mais conseguiu encantar e apaixonar ao filósofo. Ele propôs a ela casamento em duas ocasiões – e em ambas foi rejeitado.
Motivo de inumeráveis fofocas e boatos, o ménage à trois que envolveu Lou Salomé, Nietzsche e Paul Rée possui uma imagem icônica: os três, Lou com o chicote em mãos, Nietzsche e Rée na posição de cavalos atrelados a uma charrete, estampam uma fotografia lendária. Esta foto, aliás, ilustra a obra magistral O Bufão dos Deuses, de Maria Cristina Franco Ferraz, uma das mais perspicazes e bem informadas comentadoras de Nietzsche hoje em atividade.
Atriz francesa Dominique Sanda interpreta Lou Andreas Salomé no filme “Para Além do Bem e Do Mal” (1977) de Lili Cavani.
Apesar de uma certa fama de misógino, Nietzsche e sua obra mereceu muitas atenções da parte de suas leitoras mais desveladas – é assombrosa a qualidade das contribuições das mulheres para nossa compreensão de Nietzsche: além de Maria Cristina Franco Ferraz, são figuras como Scarlett Marton, Rosana Suarez, Sarah Kofmann, Rosa Dias, além da própria Lou Salomé, autora do crucial livro Nietzsche Através de Suas Obras (1894). Todas elas têm alargado nossos horizontes sobre o nietzschianismo com contribuições inestimáveis.
A tríade Nietzsche – Lou – Rée já ganhou crônicas cinematográficas, as mais significativas delas sendo os filmes Além do Bem e do Mal, da cineasta italiana Liliana Cavani, lançado em 1977, e Lou, de Cordula Kablitz-Post.
Em nenhuma destas duas obras a relação de Nietzsche e Lou Salomé ganha um retrato devidamente aprofundado, que revelasse a densidade psicológica e a complexidade do vínculo entre eles. Em especial, passa-se em silêncio, com frequência, sobre aquilo que mais fortemente os unia, que era a experiência da descrença, ou seja, a vivência da perda da fé. Na apostasia, eles comungavam.
Nietzsche, filho de pastor protestante, teve relações bastante conflitivas com a beatice da mãe e da irmã; iria se tornar um dos mais radicais críticos da religião cristã instituída, proclamando-se O Anticristo, o dinamitador de uma tradição decadente, o filósofo que a golpes de martelo vinha para pôr fim ao reinado de um deus quimérico. Segundo Nietzche, no séc. 19, era já um deus moribundo, caindo no descrédito crescente, submergido por marés cada vez mais altas de ceticismo, agnosticismo, ateísmo – uma maré histórica de descrença militante incluiu, durante o XIX e o XX, figuras como Feuerbach, Marx, Engels, Darwin, Freud, Camus, Sartre, Comte-Sponville, Onfray, e por aí vai.
Ilustração: Charb, do Charlie Hebdo, em Marx: Manual de Instruções, de Bensaïd (Ed. Boitempo)
“Não ouvimos o barulho dos coveiros a enterrar Deus? Não sentimos o cheiro da putrefação divina? – também os deuses apodrecem! Deus está morto! Deus continua morto! E nós o matamos!” – Nietzsche, Gaia Ciência, §125
Lou, é evidente, era muito mais serena, menos agressiva e bélica, mais tranquila e sábia, na expressão de seu pensamento às vezes profundamente subversivo dos dogmas vigentes e fés hegemônicas. Lou não era um anticristã modelo ostentação, mas também manifestou com audácia sua discordância em relação à religião instituída. Também na vida de Lou são relatados conflitos familiares que a opõe à sua mãe: “a incredulidade da filha, suas atividades intelectuais, sua repugnância pelo casamento, suas uniões livres, ou seja, os ventos de liberdade e independência que soprarão sobre sua vida, foram constantes motivos de reprovação por sua mãe”, escreve Astor (p. 13).
Tanto Nietzsche quanto Lou, desde muito jovens, irão se rebelar contra uma noção sacrificial sobre a condição humana, quase sempre vinculada a uma crença religiosa demasiado dogmática e inquestionada, que conduz o sujeito a sacrificar o que ele tem de mais seguro. O ascetismo auto-mortificante é a ética enlouquecida pela mania necrofílica, em que o sujeito alucinado com o idealismo religioso volta suas energias contra seu corpo, sua mente, sua vida presente, sua vontade de existir pulsando em seu seio, seu conatus ou seu élan vital (como diriam Spinoza ou Bergson), sua vontade de potência como dirá Nietzsche, para sacrificar-se no altar da esperança (muito provavelmente infundada, falaciosa e mentirosa_ de ganhar através deste sacrifício o ingresso de acesso, depois da morte, a uma vida melhor, paradisíaca, escondida em Cucolândia das Nuvens, prometida aos obedientes, aos servis, aos mansos, aos que não resistem à opressão, aos escravos satisfeitos com sua escravidão e que contentam-se em sonhar com uma doce vingança no além-túmulo.
Lou e Nietzsche comungam na suspeita de que aqueles que sacrificam a vida na esperança de uma vida-após-a-morte estão na ilusão, cometem um crime contra si mesmos e contra a energia da Vida que neles pulsa. Sem ser uma feminista militante – ela está longe de escrever um livro-manifesto como o Vindication of the Right of Woman de Mary Wollstonecraft – Lou Salomé contribui com seu exemplo vivo para a disseminação de noções libertárias sobre a mulher independente, autônoma, crítica, criativa, multi-talentosa, que ousa buscar o conhecimento para além das balizas tradicionais. Para Astor, “sem dúvida ela esteve em conflito com a imagem sacrificial da mulher” (p. 14)
Anaïs Nin (1903 – 1977), em seu prefácio à biografia escrita por H. F. Peters, Lou – Minha Irmã, Minha Esposa (RJ: Zahar, 1974), escreve:
“Graças à sensibilidade, compreensão e empatia do autor, adquirimos o conhecimento íntimo de uma mulher cuja importância para a história do desenvolvimento da condição feminina é imensa. Peters traçou com amor um retrato que nos comunica o talento e a coragem de Lou. Lou Andreas-Salomé simboliza a luta para transcender convenções e tradições nos modos de pensar e de viver. Como é possível a uma mulher inteligente, criativa, original, relacionar-se com homens de gênio sem ser dominada por eles? O conflito entre o desejo da mulher de se fundir com o amado e ao mesmo tempo manter sua identidade própria é a luta da mulher moderna. Lou viveu todas as fases e evoluções do amor, da entrega à recusa, da expansão à contração. Casou-se e levou vida de solteira, amou homens tanto mais velhos quanto mais novos. Sentia-se atraída pelo talento, mas não queria ser apenas musa ou discípula. (…) Como era bela, o interesse masculino passava com frequência da admiração à paixão; se Lou não correspondia, era considerada fria. Sua liberdade consistiu em dar expressão às suas necessidades inconscientes profundas. Viu a independência como a única maneira de realizar o movimento. E, para ela, o movimento era o crescimento e a evolução constantes.”
(ANAÏS NIN, 1974, pg. 9-10)
Ficamos tentados a dizer que Nietzsche, que em Humano Demasiado Humano descrevia os espíritos livres como amigos imaginários, inventados pelo filósofo para que fizessem companhia a ele em sua solidão de adoentado nômade, encontra em Lou Salomé um espírito livre em carne-e-osso, em todo o esplendor de uma jovem mulher audaz, vivaz, perspicaz, prova viva da exuberância do lema iluminista: sapere aude – ousa saber.
Como Nietzsche não sentiria, diante dela, inúmeras afinidades que a tornavam uma mente irmã, uma provável discípula, uma desejável esposa? Ele, Nietzsche, encontrou muitas similaridades na postura existencial dele e de Lou Salomé: ambos preferiam pensar livre ao invés de enterrar-se vivo no túmulo dos dogmas rígidos, das convicções imutáveis e das fés congelantes. Como diz Peters, “Nietzssche e Lou estavam ambos em busca – e daí o segredo de sua afinidade – de uma nova fé, que afirmasse o poder e a glória da vida, sem exigir a mortificação da carne.” (PETERS, 1974, p. 81)
O historiador George Minois, que devotou mais de 700 páginas à A História do Ateísmo (Ed. Unesp), relembra em seu livro uma carta de Fritz Nietzsche à sua irmã Elisabeth onde ele diz: “Se queres a paz da alma e a felicidade, então crê; se queres ser um discípulo da verdade, então busca.” E Minois comenta: “A primeira posição é a mais confortável. Mas quando se perde a fé, não se pode mais voltar atrás.” (MINOIS, 2014, p. 626)
Em livro recente, Marcos de Oliveira Silva abordou com maestria o tema da Autópsia do Sagrado – Religião, Ateísmo e Contemporaneidade em Nietzsche(2012), onde o autor reconhece muitas semelhanças entre a crítica nietzschiana da religião e outro importante pensador alemão contemporâneo, Ludwig Feuerbach, prenunciador do “a religião é ópio do povo” de Karl Marx.
Feuerbach “acreditava que o fenômeno religioso era basicamente um meio fantasístico de compensação; assim, diferente do pretenso altruísmo da religião, o filósofo explica que o verdadeiro teor das ideias religiosas é sempre de fundo o egoísmo, ou de outra forma, o utilitarismo é a base central da ideação religiosa. A ideia de uma benévola providência é uma importante arma contra a angústia, essa crença gera uma sensação de sentido para as coisas. As injustiças e dificuldades sentidas no mundo terreno seriam hipoteticamente reparadas e superadas eternamente no ‘reino de Deus’. Este desejo de conferir à existência um sentido absoluto pode ser percebido pela frase do senso comum que afirma que ‘Deus tarda, mas não falha’. Porém, a lógica do ateísmo de Feuerbach ensina que ‘além de sempre tardar, Deus sempre falha’. Isso foi dito da seguinte maneira pelo filósofo:
Ludwig Feuerbach (1804-1872)
“O além chega sempre tarde com suas curas; ele cura o mal depois que ele já passou, só com, ou após a morte… O amor que o além criou, que consola o sofredor, é o amor que cura o doente depois que ele faleceu, que dá água ao sedento que já morreu de sede, que dá alimento ao faminto depois que ele já morreu de fome…Deixemos pois os mortos e só nos ocupemos com os vivos! Se não acreditarmos mais numa vida melhor mas quisermos, não isoladamente, e sim com a união de forças, criaremos uma vida melhor, combateremos pelo menos as injustiças e os males crassos, gritantes, revoltantes, pelos quais a humanidade tanto sofre.” (FEUERBACH, 1989, pp. 236-237)
De acordo com as Preleções sobre a essência da religião, segundo o “viés ateísta proposto por Feuerbach, a difusão sistemática das variadas promessas religiosas desempenha estrategicamente um papel muito importante na perpetuação da miséria de um povo…. é um conjunto de falsas promessas… apontam para uma solução a partir de uma intervenção sobrenatural, acreditam assim que não o homem mas sim as ‘mãos divinas’ mudarão o rumo do nosso sofrido mundo. Criticamente, Feuerbach vê esta doce esperança como uma forma alienante de abafar nossas reais responsabilidades terrenas, um obstáculo ideológico ao avanço de nosso ímpeto revolucionário que pede mudanças efetivas. Assim sendo, acreditando em uma grandiosa revolução vinda do céu, reforçamos a nossa covardia diária que nos impede de enfrentar de forma concreta aqueles que nos oprimem… Esperando usufruir a bela paisagem lúdica de um paraíso pós-morte, para o filósofo, deixamos de construir os alicerces necessários para uma sociedade mais justa.” (OLIVEIRA, 2012, p. 123)
2. A MORTE DE DEUS: DE TENDÊNCIA HISTÓRICA A METAMORFOSE SUBJETIVA
Lou Salomé soube enxergar também o quanto havia de narcisismo infantil no apego do sujeito à crença em um Deus-Pai. Auto-psicanalisando-se, descobriu na sua própria infância um “Deus que é o melhor aliado do narcisismo da garotinha”, o “grande instituidor de presentes”, mas também aquela instância superior que a pequena Lou invoca quando sente-se injustamente punida pelos pais. Ou seja, quando ela apanha por ter sido considerada pelas autoridades familiares como desobediente ou travessa, apela para o Bom Deus como uma espécie de Juiz Justiceiro que mora nas nuvens: “eu era, com frequência, uma criança ‘má’, e por isso tive que travar doloroso contato com uma varinha de bétula, coisa que nunca deixei de denunciar ostensivamente ao Bom Deus.” (ASTOR, p. 16)
Na literatura de Lou, podemos encontrar uma narrativa ficcional de 1922 chamada A hora sem Deus, onde mais uma vez entra em cena a noção infantil de um Deus como Grande Vigia, Olho Que Tudo Vê, Guardião do Rebanho dos Homens: “Ele que vê o que está escondido, com Seus olhos onipresentes, para os quais a coberta da cama não era um obstáculo”, escreve Lou. Ela percebe que este Deus era como uma espécie de brinquedo da menina, manipulado em sua imaginação como o boneco de um juiz, “aliando-se com a criança perante todos os adultos com suas noções e interesses estranhos e suas paixões pela pedagogia.” Para Astor, “Deus constitui, assim, a instância de uma relação primordial consigo mesma, e nem um pouco uma experiência da alteridade. Deus é momento de uma dialética; é aquele que deve morrer, aquele que deve ser superado no movimento da maturação, de uma afirmação de si que é conquistada de maneira autônoma.” (ASTOR, p. 17)
Ou seja, Lou Salomé parece defender que a maturidade humana só chega quando sabemos matar dentro de nós – o único lugar onde ele jamais viveu – o Deus de nossa infância, sepultando esse narcisismo espectral e delirante de modo a conquistarmos para nós A Hora Sem Deus. Livres da mentira de Deus, avançamos para uma vida de constante superação, de auto-transfiguração, onde essa “relação fantasiosa um pouco frágil chegou ao fim. (…) A morte de Deus, longe de autorizar o imoralismo, fundará rigorosamente a submissão incondicional a um princípio de realidade.” (ASTOR, p. 17)
Utilizando-se de terminologia Freudiana – afinal de contas, Lou Salomé também terá significativa contribuição à história da Psicanálise como movimento científico internacional no âmbito da medicina das mentes, tanto que se tornará talvez a primeira mulher a atuar na profissão de psicanalista, apoiada pelo próprio Freud – Lou mostra as difíceis batalhas do sujeito para superar a ilusão religiosa nascida do princípio de prazer e do desejo de consolo, rumo a uma consciência cada vez mais desperta ao real e lúcida na efetividade.
Astor percebe muito bem que “o motivo, em modo menor, é quase nietzschiano, e percebemos em sua magistral obra sobre o filósofo, Friedrich Nietzsche em suas obras (1894), que Lou Andreas-Salomé reconheceu o instinto profundo que preside esta conscientização da morte de Deus: para ela, “os motivos que incitam a maior parte dos indivíduos a se emancipar da religião são quase sempre de ordem intelectual, e essa emancipação não se efetua sem dolorosas lutas. (…) O problema vital da infância não é, para Lou, a perda do Deus pessoal, que no fundo é apenas a queda de uma fruta madura demais. É do lado de cá que acontece a desaparição primordial, ao mesmo tempo em que a ascensão ao real.” (ASTOR, op cit)
A desaparição, a dissolução, a superação da crença em Deus, tal como se opera no universo subjetivo do indivíduo, ou seja, as metamorfoses íntimas que isto implica, as tarefas novas que daí decorrem, mostram que o processo da apostasia, do tornar-se ateu, do lançar-se aos mares abertos da descrença e de aventura intelectual, é vivido praticamente como uma espécie de segundo nascimento. O parágrafo inicial da autobiografia de Lou Salomé, Minha Vida, com admirável radicalidade, narra o nascimento humano:
“Nossa primeira experiência, coisa notável, é a de um desaparecimento. Momentos antes, éramos um todo indivisível, todo Ser era inseparável de nós; e eis que fomos lançados ao nascimento, nos tornamos um pequeno fragmento desse Ser e precisamos cuidar, desde então, para não sofrer outras amputações e para nos afirmarmos em relação ao mundo exterior que se ergue a nossa frente numa amplidão crescente, e no qual, deixando nossa absoluta plenitude, caímos como num vazio – que em primeiro lugar nos despojou.” (LOU SALOMÉ, Minha vida.)
Segundo Astor, “Lou tomou de Schopenhauer a ideia de que o nascimento é uma queda no mundo das aparências, segundo um princípio de individuação que limita o ser singular e aliena sua compreensão do grande Todo: ‘No mais profundo de si mesmo, o nosso ser rebela-se em absoluto contra todos os limites. Os limites físicos são-nos tão insuportáveis quanto os limites do que nos é psiquicamente possível: não fazem verdadeiramente parte de nós. Circunscrevem-nos mais estreitamente do que desejaríamos.’ Ao dizer isso, ela não clama o inconveniente de ter nascido, mas antes afirma, com o Nietzsche de O Nascimento da Tragédia, a força plástica e individuante do apolíneo, a reconquista artística da onipotência dionisíaca, que é poder de vida. Ela não cessará de repetir, até o fim de sua vida, a seguinte alegre afirmação:
“A vida humana, ah! A vida sobretudo – é poesia. Inconscientes, nós a vivemos, dia a dia, Passo a passo – mas em sua intangível Plenitude ela vive e nos traduz em poesia.”
LOU ANDREAS-SALOMÉ
Astor atribui tais idéias à uma profunda assimilação do amor fati de Nietzsche, esse “amor pelo destino e essa sabedoria que só podem ser adquiridos ao preço de um esforço heróico”, que Lou caracterizará como uma identificação plenamente afirmativa e celebratória com a totalidade da vida. Lou celebra “o encanto supremo que confere à vida seu caráter efêmero demais” e sugere que “precisamos nos sentir inexoravelmente determinados, mas por uma força com a qual nos identificamos, uma força que nós mesmos nos tornamos.” (Astor, p. 21)
3. ALÉM DA CRENÇA E SEUS DOGMAS, A MATURAÇÃO DE UMA VIDA DEVOTADA AO CONHECIMENTO
Em uma atitude que evoca a sabedoria de Spinoza, tanto Nietzsche quanto Lou quiseram fazer da vontade de conhecimento o mais potente dos afetos. Outro elo que une Lou e Nietzsche está na devoção com que ambos dedicaram-se ao conhecimento após terem rompido vínculos com a fé, já que esta é considerada por ambos como um obstáculo para o saber, um fato de ignorância. Ambos são apóstatas que se desviaram dos caminhos prescritos pela família: se Nietzsche, filho de pastor protestante que torna-se um luminar do ateísmo e que nunca se reconcilia com a beatice de sua mãe e sua irmã, por seu lado Lou Salomé desde a adolescência manifesta também ímpetos rebeldes e contestadores em relação à religião:
“A morte de Deus marca para Lou o acesso a um rigor intelectual que logo se manifestará em seu caráter estudioso. Inúmeros textos comprovam, em Lou, o laço de causalidade entre a perda de Deus e a sede de conhecimento. O artigo Criação de Deus analisará o desenvolvimento intelectual não apenas como compensação do lugar vazio deixado por Deus, mas como a conquista de um autonomia e recentramento de si. Aos 17 anos, Lou assiste às aulas de catecismo preparatório para a confirmação, etapa essencial da vida protestante russa… As aulas são ministradas pelo pastor Hermann Dalton (1833-1913), que manifesta um conservadorismo agressivo, que lhe valerá muitos inimigos, entre os quais David Strauss e Ernest Renan. Lou não gosta do pastor, que corresponde o sentimento; Dalton se informa junto aos Salomé sobre o espírito rebelde da jovem, desde o dia em que, ao ensinar que não existe lugar onde não se possa imaginar a presença de Deus, Liola lhe responde em tom de provocação: ‘Existe sim, o Inferno!”
A ‘liberdade interior’ conquistada com a morte de Deus, o fortalecimento das forças intelectuais percebidas como vitais, de repente se viram confrontados com uma ortodoxia rígida e desprovida de vida, um saber que se esgotava numa prescrição sem alternativas. Se a religião da infância havia sido uma experiência do maravilhoso, sua justificação friamente teológica varria para longe os últimos resquícios de nostalgia, e permitia aderir alegremente ao espírito novo: ‘deixei em definitivo o mundo dos crentes e me separei abertamente da igreja.'” (ASTOR , pg. 25)
Lou Salomé enquanto jovem estudante em Zurique, Suíça, após emigrar de sua Rússia natal em aventura de busca de conhecimento
Lou Salomé, abandonando a crença de sua infância, embarca na aventura do conhecimento: troca São Petersburgo por Zurique e, na mesma Suíça onde Nietzsche desenvolveu por 10 anos (1869-1879) seus trabalhos como professor na Universidade de Bâle (Basiléia), ela irá prosseguir seus estudos incansáveis, que farão dela uma das intelectuais mais completas de seu tempo, com expressão na filosofia, na psicologia, na literatura. Quando Lou e Nietzsche se conhecerem em 1882, por intermédio de Paul Rée e Malwida Meysenbug, encontrarão muitos temas de conversa, mas um em especial terá destaque: a morte de Deus e suas consequências para a vida do sujeito.
O espírito livre, como Nietzsche explora em Humano Demasiado Humano, é alguém que precisou emancipar-se da servil obediência a dogmas inculcados e preconceitos recebidos, inclusive e sobretudo as noções religiosas com que somos inundados desde a primeira infância. Em seu livro sobre Nietzsche, dividido em três grandes partes, Lou dedica a segunda parte às metamorfoses de Nietzsche, utilizando como epígrafe o aforismo #573 de Aurora: “a serpente que não pode mudar de pele perece. O mesmo se dá com os espíritos que são impedidos de mudar de opinião; eles cessam de ser espíritos.”
As muitas metamorfoses de Nietzsche, segundo Lou, são inauguradas por sua “ruptura com a fé cristã, ponto de partida para todas as suas transformações ulteriores”; ela destaca que, ainda que “os motivos que incitam a maior parte dos indivíduos a se afastar da religião sejam frequentemente de ordem intelectual, esta emancipação não se efetua sem lutas dolorosas” (SALOMÉ, p. 77).
Um dos maiores méritos da obra de Lou consiste em pintar um retrato complexo e nuançado da personalidade de Nietzsche, que ela considera um sujeito definitivamente marcado por suas difíceis relações com o abandono da fé. Um dos grandes temas que atravessaria toda a obra Nietzschiana é o modo de realizar a emancipação interior que conduz o apóstata a metamorfosear-se: de servil e obediente beato, temente aos deuses, apegado às sacras ilusões, ele cresce e matura-se rumo a um grau sempre expandido de ceticismo, de desconfiança, de suspeita, de capacidade de enxergar o mundo por múltiplas perspectivas.
O pensamento de Nietzsche é anti-dogmático por excelência. Estabelecer-se na crença de que a verdade já está descoberta e é possuída, cessando assim de questionar as respostas dadas, desistindo de inquirir se as perguntas não estavam mal colocadas ou eram absurdas, procurar o descanso do pensamento na cômoda cama das convicções imutáveis: eis o que assassina o livre-pensamento e faz do filósofo um dogmático papagaio de certezas imutáveis. Segundo o retrato que Lou-Andreas Salomé pinta de seu metamórfico e desassossegado amigo, o filósofo tinha uma personalidade radicalmente anti-dogmática:
“A mudança de opinião, a obrigação de se transformar, encontram-se tão profundamente ancorados no coração da filosofia nietzschiana e são eminentemente característicos de seus métodos de investigação. (…) Sua estranha necessidade de metamorfose, no domínio do conhecimento filosófico, provinha do desejo insaciável de renovar sem cessar suas emoções intelectuais. É por isso que a clareza perfeita não era, a seus olhos, senão um sintoma de saciedade e extenuação. (…) Para Nietzsche, uma solução encontrada não era jamais um fim, mas ao contrário o sinal de uma mudança de perspectiva que o obrigava a contemplar o problema sob um ângulo novo, a fim de lhe encontrar uma nova solução. (…) Nietzsche não admitia que um problema, qualquer que ele fosse, comportasse uma solução definitiva.” (ANDREAS-SALOMÉ, L. Nietzsche À Travers Ses Ouvres. Pgs. 49 e 84.)
Tradução nossa para o trecho: “Le changement d’opinion, l’obligation de se transformer se trouvent ainsi profondément ancrés au coeur de la philosophie nietzschéenne, et sont éminemment caractéristiques de ses méthodes d’investigation. (…) Son étrange besoin de métamorphose, dans le domaine de la connaissance philosophique, provenait du désir insatiable de renouveler sans cesse ses émotions intellectuelles. C’est pourquoi la clarté parfaite n’était, à ses yeux, qu’un symptôme de satiété et d’exténuation. (…) Pour Nietzsche, une solution trouvée n’était jamais une fin, mais au contraire le signal d’un changement de point de vue qui l’obligeait à envisager le problème sous un angle nouveau, afin de lui apporter une solution nouvelle. (…) Nietzsche n’admettait pas qu’un problème quel qu’il fût comportât une solution définitive.”
4. NIETZSCHE & LOU: ENCANTAMENTO, ESPERANÇA E DESILUSÃO
Tentar explorar o vínculo entre Nietzsche e Lou leva-nos a um labirinto de representações, de perspectivas, de boatos e fofocas, em que por vezes é difícil separar o que é fato do que é ficção. No cinema, por exemplo, o filme de Liliana Cavani, lançado em 1977, propiciou uma narrativa da relação em que Nietzsche é descrito como um sujeito lascivo, impetuoso, mostrado em arroubos passionais por Lou que chegam, em certas cenas, a beirar a agressão sexual (lembrem, por exemplo, da cena em que Fritz, de maneira forçada e sem consentimento, tenta tocar as partes íntimas de Lou). O filme também retrata Nietzsche contando a Lou, em um daqueles passeios idílicos que faziam pela Natureza, sobre seu passado erótico: relembra o dia em que visitou um bordel, conta os detalhes picantes de sua transa, e depois revela ainda que foi nesta ocasião que contraiu a sífilis. Fact or fiction?
Impossível bater o martelo e julgar em definitivo se o filósofo de fato vivenciou o episódio do puteiro e ali pegou uma DST, ou se isso não passa de intriga da oposição. Tendo mais a esta última opção, pois vários estudos biográficos revelam que a doença de Nietzsche tinha raízes hereditárias e genéticas, já que o seu pai também havia sofrido com sintomas semelhantes e havia tido uma morte precoce. Muitos biógrafos vinculam as enxaquecas e problemas de visão de Nietzsche com uma condição derivada “do sangue”, relatam que o pequeno Fritz, além de perder o pai na primeira infância, sempre temeu que morreria mais cedo do que o comum dos mortais, como ocorrera com seu pai. Além disso, biógrafos relatam que Nietzsche, enfermeiro voluntário durante a Guerra Franco-Prussiana de 1870, teria sido ferido em campo de batalha e que seu estado de saúde lastimável, daí em então, decorre das sequelas deste episódio bélico.
O filme da Liliana, ao apostar no retrato de um Nietzsche tarado e ao dar expressão audiovisual à suposta escapada de Nietzsche no bordel, parece referendar boatos e fofocas que muito provavelmente foram espalhados pelos detratores do filósofo, interessados em queimar seu filme e fazer a posteridade acreditar que aquele que matou Deus acabou chafurdando na lama dos prazeres carnais perversos e pagando o preço por isso.
Na história da filosofia, temos muitos casos de campanhas de calúnia e difamação semelhantes, como aquela movida primeiro pelos platônicos e depois pelos primeiros cristãos contra a memória de Epicuro: de sábio frugal em convivência bem-aventurada com os amigos no Jardim da Sabedoria, Epicuro foi caluniado como um beberrão, um lascivo, entregue a orgias e banquetes nababescos, a ponto de vomitar os excessos de comida e bebida, só para continuar a orgia depois do gorfo. Nietzsche no puteiro, Epicuro na orgia: duas imagens que, suspeito, são intrigas falaciosas dos adversários destes filósofos.
Vejamos, por exemplo, o que diz uma das biografias escritas sobre o filósofo, a de Rüdiger Safranski, sobre as relações entre Nietzsche e Lou que o filme de Liliana descreve com ênfase excessiva no aspecto erótico. Dificilmente existiu entre Nietzsche e Lou uma relação amorosa propriamente carnal, sensorial, com beijos, lambidas e penetrações – o contato físico entre os dois, ao que tudo indica, foi mínimo; o intercâmbio intelectual, os papos-cabeça, é que foram, por um breve período, bastante intensos.
Nem mesmo podemos ter certeza se rolou um beijinho na boca ou não – em Minha Vida, Lou diz que não se lembra… Nada nos relatos biográficos sobre Nietzsche nos permite pensar no filósofo como alguém que tivesse uma vida sexual ativa; muito pelo contrário, ele foi um grande solitário e celibatário, morreu sem filhos e não se conhecem affairs românticos para além do caso com Lou.
É seguro dizer que Nietzsche era um sujeito que não tinha muito traquejo no xaveco, que não tinha grande experiência na arte de cortejar uma mulher, alguém nas antípodas do Don Juan; seus pedidos de casamento dirigidos a Lou são estranhíssimos e hoje nos parecem claramente fadados ao fracasso. Primeiro pois ele é muito afobado e propõe casório poucos dias depois do primeiro encontro, sem propiciar um tempo maior de convívio e conhecimento mútuo. Mas além disso, ao invés de fazer a proposta pessoalmente, pede a Paul Rée que faça por ele, o que é bastante absurdo, considerando que Rée, também encantado por Lou, era parte interessada e rival direto no posto de possível marido da fascinante russa.
Além disso, Nietzsche tinha visões bastante estranhas sobre o casamento, talvez tingidas de uma certa misoginia, de uma certa visão patriarcal sobre a posição da mulher na sociedade: “quer uma companheira que cuide de sua vida doméstica, como a irmã fez por muito tempo, seja sua secretária e talvez até, diferentemente da irmã, seja uma parceira intelectual de conversa”, escreve o biógrafo Safranski.
Além disso, revela que sua vontade de casar-se não é lá tão intensa e que ele só concordaria com isso caso pudesse, desde o início, colocar um prazo de validade no casamento: só poderia aguentar um matrimônio de, no máximo, 2 anos. Para minorar ainda mais as chances do casório dar certo, há a diferença de idade: quando se conhecem, Lou é uma jovem mulher de 20 e poucos anos, Nietzsche já passou dos 35 e encontra-se aposentado por invalidez de seu posto como professor na Basiléia.
Não havia modo de Lou Salomé, mulher de espírito independente, defensora convicta de sua autonomia, em ruptura com todos os dogmas a respeito da posição da mulher na sociedade, que por muito tempo rejeitou o matrimônio tradicional, pudesse sentir-se atraída pelo modelo de esposa doméstica-secretária que Nietzsche trazia em si. Não ia dar liga.
Em Biografia de uma Tragédia, Safranski (também biógrafo de Schopenhauer e Heidegger) pesquisou a fundo o vínculo Nietzsche e Lou e descobriu fortes indícios de que aquilo que o filósofo procurava de fato em Lou era uma discípula e herdeira. Em uma carta a Malwida, em 13 de Julho de 1882, manifesta o desejo de ter nela uma discípula: ‘se minha vida não for muita longa, ela será minha herdeira e continuadora do meu pensamento’.
Em uma carta endereçada a Lou, em 27 de junho de 1882, Nietzsche diz explicitamente: “Desejei muito poder ser seu mestre. Em última instância, para dizer a verdade toda: agora procuro pessoas que possam ser meus herdeiros; trago comigo algumas coisas que não se podem ler em meus livros – e para isso procuro a terra mais bela e fecunda.” (Safranski, p. 231)
A imagem de Lou como “terra bela e fecunda” onde Nietzsche pudesse depositar suas sementes talvez possa ser lida por um psicanalista como símbolo de uma libido arrebatada que faz referências cifradas à uma fecundação mais carnal do que intelectual. Mas nada na relação dos dois sugere de modo explícito que Nietzsche desejasse uma mulher com quem ter filhos: para o filósofo, os únicos filhos eram seus pensamentos e livros, e em sua solidão extremada ele buscava alguém que pudesse dar sequência às suas doutrinas, ser depositária e continuadora de seu legado, tendo encontrado em Lou e todo seu precoce brilhantismo intelectual a candidata ideal.
A esperança que Nietzsche nutre não parece ser propriamente erótica, mas envolve a necessidade Nietzsche de, como fará seu herói Zaratustra em um livro que está prestes a começar a ser escrito, compartilhar o mel que a abelha laboriosa acumulou e que agora está transbordando de seus limites.
Ora, Lou Salomé, mesmo em tão tenra idade, não é uma moça de se contentar em orbitar ao redor dos homens, ela é muito mais um sol que brilha com luz própria. Prestamos um desserviço à vida e à obra de Lou Salomé quando a descrevemos como uma mulher que se encantou com grandes homens – Nietzsche, Rilke, Freud – e os orbitou, quando na verdade o processo de orbitação, ao menos no caso de Nietzsche e Rilke, é muito mais intenso no pólo dos homens, que chegam a evocar a imagem das mariposas da canção de Adoniran Barbosa, Lou Salomé servindo como a “lâmpida” que os põe fascinados e girando ao seu redor.
Hoje é fácil perceber que Lou, com toda a sua independência de espírito, com todo o ímpeto de livre-pensadora que a animava, jamais seria apenas uma secretária e uma obediente discípula do professor Nietzsche. O que não significa que ela não tenha sim aprendido um bocado com o filósofo, o que ela revela em minúcias nas quase 300 páginas que lhe dedica na obra de 1894 – o único livro escrito sobre o filósofo enquanto ele ainda vivia.
Lou Salomé e Nietzsche nunca foram propriamente um casal. O retrato minucioso do caráter psicológico de Nietzsche que Lou nos forneceu, e que constitui um dos méritos imorredouros de seu livro, fornece-nos as chaves para compreender o porquê deste fracasso. Havia em Nietzsche, diz Lou, muita solidão e muito sofrimento, uma personalidade arredia ao contato humano, um jeito-de-ser recluso e anti-social.
Lou descreve suas primeiras impressões de Nietzsche destacando a estranheza de seu olhar, que parecia voltado para dentro e não para fora, como se observasse seu labirinto interior muito mais do que os fenômenos sensíveis. “Em alguma profundeza oculta de nossa natureza, escreve Lou, estamos inteiramente distanciados um do outro. Na sua natureza, como numa velha fortaleza, Nietzsche tem muitos calabouços escuros e porões escondidos que não são percebidos num encontro superficial, mas que podem conter o mais pessoal dele.” (Safranski, 233)
Certamente não são apenas alguns traços de personalidade de Nietzsche que geram repulsa em Lou e fazem-na se afastar do filósofo – após as duas recusas do pedido de casamento, Lou se mudará para Berlim, onde dividirá o lar com Paul Rée, enquanto Fritz, re-entregue à solidão, talvez mais cruel do que nunca pelo sopro cálido de amor possível que vivenciou, embarca na embriaguez lírica que dará à luz a primeira parte de Assim Falou Zaratustra.
Para compreender a ruptura entre Lou e Nietzsche, uma peça-chave é a irmã do filósofo, Elizabeth Forster Nietzsche, uma notória antisemita, casada com um sujeito que fundou uma colônia de arianos no Paraguai. Elizabeth sempre esteve em pé de guerra contra Lou Salomé e por décadas moveu uma campanha de difamação contra ela. Considerava Lou como uma espécie de femme fatale que punha em risco seu pobre irmãozinho Nietzsche.
Hoje sabemos que Elizabeth é a responsável principal pela perversão deliberada da obra não publicada do filósofo: tendo seus próprios interesses e filiações ideológicas em vista enquanto adepta do nazifascismo, ela editou os escritos nietzschianos que este não deu aval para publicação e lançou postumamente o problemático livro Vontade de Potência, tentando vender a ideia de que Nietzsche era um precursor da ideologia nazista. Em 1933, no lançamento dos Arquivos Nietzsche, Elizabeth fez uma premiére que contou com ninguém menos do que o chanceler Adolf Hitler.
Elizabeth, que por muito tempo propagou a noção de que Lou Salomé era uma serpente venenosa, fez todos os esforços para convencer o irmão disso, é uma espécie de sabotadora da relação. Tempos depois, rompendo relações com a irmã e com a mãe, Nietzsche dirá: “Confesso que minha objeção mais profunda ao Eterno Retorno, meu pensamento propriamente abismal, é sempre minha mãe e minha irmã.” (Astor, p. 88) Ele não suportaria viver infinitas vezes o suplício das relações familiares tal qual conheceu.
O melhor antídoto contra esta visão deturpada do filósofo é o estudo de suas posturas e convicções: Nietzsche estava muito longe de ser um patriota, um nacionalista; ele não tem nenhum apego sentimental pela Alemanha, jamais subscreveria a qualquer Deustchland Uber Allez, aliás viveu uma existência nômade, peregrina, vivendo na Suíça, na França, na Itália, em um espírito de cosmopolitismo que evoca o exemplo de Diógenes de Sínope, o inventor do conceito e do modo-de-vida cosmopolita.
Além disso, Nietzsche abominava o antisemitismo, como atestado por inúmeros escritos e cartas, e talvez esteja aí uma das razões para sua ruptura com Wagner. Em seu magistral estudo O Bufão dos Deuses, a professora Maria Cristina Franco Ferraz produziu uma obra perfeita para esclarecer a situação de Nietzsche em sua época e desfazer todos os maus-entendidos, iluminando também a relação do filósofo com Lou e Rée.
A ruptura de Lou com Nietzsche, causada também pela impossibilidade de uma convivência civilizada entre Lou e Elizabeth, será uma profunda ferida para o filósofo. Ele havia alimentado sublimes esperanças de que tinha encontrado enfim a discípula perfeita. Sua amarga decepção e seu sentimento de abandono, quando Lou seguir seu caminho sem ele, lançarão o filósofo em um estado de espírito lastimável, doloroso, atormentado. Diz Safranski:
Safranski
“Ele lhe revelou sua existência espiritual como a ninguém antes disso. Sentia que havia entre eles um entendimento profundo e único. Ela tocara o centro de seus talentos e intenções. Ele se sentia quase inteiramente compreendido por ela: ‘Algumas grandes perspectivas do horizonte espiritual e ético são minha mais poderosa fonte de vida, e sinto-me tão contente porque exatamente nesse chão nossa amizade tem suas raízes e esperanças’ (18 de Junho de 1882).
(…) Que ela o tenha compreendido tão bem e depois prosseguisse seu caminho com sua incontrolável curiosidade pelas pessoas, em vez de permanecer sob o fascínio dele, que o tivesse largado de novo, como a um mero estágio de sua formação, deixando-o para trás – isso é uma ideia insuportável para Nietzsche. Ele não mostrou a soberana serenidade de um Zaratustra, que estimulava seus discípulos que o deixassem depois de o terem encontrado. Exatamente isso, que Lou se libertasse dele seguindo seus caminhos, foi o que o feriu profundamente. Sentiu-se usado, desperdiçado. Uma discípula lhe dá a entender que o compreende, e depois vai procurar outros mestres. Nietzsche sofreu isso como uma ofensa inaudita. Agora, no inverno de 82/83, ele se sente lançado de volta a si mesmo como nunca antes. Em dezembro de 82, escreve a Overbeck: Agora estou inteiramente só diante da minha tarefa. Preciso de um baluarte contra o mais insuportável de tudo.” (SAFRANSKI, p. 235)
Neste contexto emocional, Nietzsche inicia a escritura de Assim Falou Zaratustra, uma das obras-primas da filosofia e da literatura nos últimos séculos, um livro que nasce sob o impacto do contato e da ruptura com Lou Salomé. Em Zaratustra, Nietzsche projeta muitas de suas próprias lutas e angústias, sua busca por ser compreendido, sua peregrinação em busca de espíritos livres que possam compreendê-lo. As noções de “fidelidade à terra”, de “sagrado sim” à vida, eram temas constantes de conversa com Lou Salomé e não é absurdo supor que ela seja uma das musas inspiradoras da noção de Übermensch. Em uma de suas cartas ao pastor Gillot, Lou diz:
“Não posso viver obedecendo a modelos, nem jamais poderia representar, para quem quer que seja, um modelo. Mas é inteiramente certo que construirei minha vida segundo aquilo que sou, aconteça o que acontecer. Fazendo isso, não defendo nenhum princípio, mas sim alguma coisa bem mais maravilhosa, alguma coisa que está em nós, que arde no fogo da vida, que exulta e quer brotar… Quero permanecer sempre em estado de transição.” (Astor, p. 63)
Lou Salomé permanece uma peça-chave para a compreensão do quebra-cabeça nietzschiano. Não só por ser a responsável por um dos livros mais brilhantes sobre o filósofo, Nietzsche Através De Suas Obras, publicado ao fim do século 19, em 1894, quando Nietzsche ainda vivia, embora em estado de semi-paralisia cerebral e já tendo encerrado sua vida criativa. Muitos dos trechos da obra foram lidos por Lou para Nietzsche e aprovados pelo próprio. Trata-se de uma obra tremendamente reveladora, que honra toda a complexidade do pensamento do filósofo, além de oferecer uma pintura psicológica complexa e nuançada de sua personalidade, de seu caráter, de seu jeito-de-ser. Lou lança uma luz sobre
“o sentido profundo de sua obra, de seus sofrimentos e de sua autobeatificação. Toda sua evolução resulta, em certa medida, do fato de muito cedo ele ter perdido a fé; ela tem sua origem na emoção causada pela morte de Deus, emoção inaudita cujos últimos rugidos repercutem pela última obra, a que Nietzsche redigiu no limiar da loucura, a 4a parte do Zaratustra. A possibilidade de encontrar um sucedâneo para o deus morto através das formas mais diversas da divinização de si: esta é a história de seu espírito, de sua obra, de sua doença. É a história da sequela do instinto religioso no pensador, instinto que continua muito poderoso, mesmo depois da queda do deus ao qual ele se dirigia.” (LOU SALOMÉ, apud Astor, p. 93)
O problema crucial da vida e da obra de Nietzsche, sustenta Salomé, é a superação da crença em Deus e do universo de valores conectado à fé. A morte de Deus, vivida como aventura existencial demandando muito heroísmo da parte do espírito livre transvalorador, envolve épicas batalhas contra o niilismo, o desânimo, a apatia, mas envolve também o perigo no qual Nietzsche soçobrou: o da auto-beatificação.
Após o colapso da instância de valor transcendente, aquele que não quer soçobrar no niilismo precisa encontrar novos valores. Nietzsche mostra o quanto a maturação intelectual e a aventura da filosofia dependem da emancipação humana em relação às quimeras religiosas, mas seu destino também nos alerta sobre os perigos do individualismo excessivo, da postura aristocrática, do pathos da distância que pode atingir extremos deveras patológicos.
Para Lou Salomé, Nietzsche – e posteriormente Rilke – permanecerão como existências humanas singulares, irrepetíveis, que mostram a capacidade rara de utilizar todo o sofrimento da vida como combustível para o ímpeto criador. Em outro poema de Lou que Nietzsche adorava, “À Dor”, ela faz um hino ao espírito capaz de não naufragar com suas dores: “o combate engrandece os maiores” e o “sofrimento é o alicerce para a grandeza de espírito” (Astor, p. 95).
Aí está a raiz da profunda empatia e amor que Nietzsche pôde sentir por Lou Salomé: ela expressava algo que sua obra também visa expressar, ou seja, que o sofrimento não é um argumento contra a vida, que deve ser acolhido também através daquele sagrado sim, fundamento da visão trágico-dionisíaca de mundo. Trata-se de um esforço heróico para amar a vida com tudo o que ela inclui de doloroso, de problemático, de insolúvel, de contraditório. Após a morte de Deus, sabedoria é aprender a amar a vida como ela é, sem exclusão de seus aspectos aflitivos e intragáveis.
“Esta paixão pelo sim é sem dúvida o ponto comum mais marcante entre Lou e Nietzsche, que será fundamental o suficiente para perdurar para além da incompreensão e da decepção. É a constância dessa afinidade que permite a Nietzsche, em Ecce Homo, celebrar a grandeza de sua antiga amiga; é ela também que permite a Lou, 10 anos após a ruptura entre eles, escrever o primeiro estudo sistemático sobre a filosofia nietzschiana… Esses dois indivíduos sempre atribuíram mais importância à vida em sua totalidade do que às pessoas em particular… cada indivíduo nunca passa de uma ‘parcela de destino’, e é por isso que os fracassos pessoais sempre são considerados, no fim das contas, num gesto mais amplo de gratidão para com a vida como um todo.” (Astor, p. 97)
A gratidão pela vida necessariamente inclui não só a aceitação resignada do sofrimento, mas uma espécie de acolhimento entusiástico, que não se confunde com o masoquismo, mas é sabedoria trágica que reconhece que a dor não é um argumento contra a existência, muito pelo contrário: na dor podemos amadurecer e nos fortalecer, na dor podemos criar e transvalorar. Em suma: a dor vale a pena ser vivida pois “engrandece os maiores” e é “o alicerce da grandeza de espírito”, como Lou Salomé expressa muito bem em seu poema:
À Dor
Quem pode fugir-te, quando o agarraste, Se pousas sobre ele teu sombrio olhar? Não fugirei se me pegares, – Nunca acreditarei que apenas destruas.
Eu sei, deves atravessar cada vida E nada permanece intocado por ti sobre a terra, A vida sem ti – seria bela! E no entanto – vales ser vivido.
Certo, não és um fantasma da noite, Vens lembrar ao espírito a sua força, É o combate que engrandece os maiores. – O combate pelo objetivo, por impraticáveis caminhos.
E se só podes me dar em troca da felicidade e do prazer Uma única coisa, ó Dor: a verdadeira grandeza, Então vem, e lutemos, peito contra peito, Então vem, haja morte ou vida. Então mergulha no fundo do coração, E vasculha no mais íntimo da vida, Leva o sonho da ilusão e da liberdade, Leva o que não vale um esforço infinito.
Não continuas a última vitória do homem, Mesmo que ele ofereça seu peito desnudo a teus golpes, Mesmo que ele se desfaça na morte – És o alicerce para a grandeza de espírito.
Em carta a seu amigo Peter Gast, Nietzsche dirá: “O poema ‘À Dor’ não é meu. Ele faz parte das coisas que têm um poder absoluto sobre mim; nunca consegui lê-lo sem derramar algumas lágrimas: ele ecoa como uma voz que nunca deixei de aguardar desde minha infância.”
Os ecos deste poema aparecem em frases célebres de Nietzsche e de seu Zaratustra, como “o que não me mata me fortalece” e nas celebrações que faz do artista que sofre em suas dores de parto e que, de seu caos interior, dá à luz uma estrela bailarina.
Em Lou Salomé expressa-se uma sabedoria que comoveu profundamente a Nietzsche, que pôde encontrar inúmeras afinidades entre sua própria visão de mundo e a dela. Apesar dos abismos que os separaram, eles estão juntos na afirmação da existência através do amor fati dionisíaco ao qual se alça o espírito libertado, como fica claro no seguinte trecho que Lou escreve em Nietzsche Através de Suas Obras (1894):
“Apanhados de maneira inextricável na rede da vida, acorrentados sem esperança a seu círculo fatal, precisamos aprender a dizer ‘sim’ a todas as formas que assume, para podermos suportá-la: somente a alegria e o vigor com os quais proclamamos esse sim nos reconciliam com a vida, porque nos identificam com ela. Sentimo-nos, então, um elemento criador de seu ser; melhor: tornamo-nos seu próprio ser, com toda sua superabundância de plenitude e forças. O amor sem restrições pela vida, essa é a lei moral única e sagrada do novo legislador.” (LOU SALOMÉ, apud Astor, p. 183)
SOBRE O AUTOR – Eduardo Carli de Moraes atua como professor de filosofia do Instituto Federal de Goiás (IFG); tem mestrado em Ética e Filosofia Política pela UFG – Universidade Federal de Goiás, além graduações em filosofia pela USP – Universidade de São Paulo e comunicação social pela UNESP – Universidade Estadual Paulista. Este texto serviu de base para comunicação que apresentada no II Colóquio Internacional Nietzsche no Cerrado, ocorrido na UFG , entre 04 e 06 de Setembro de 2017 (programação abaixo).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANDREAS-SALOMÉ, Lou. Nietzsche À Travers Ses Ouevres. Paris: Grasset, 1992. ———————————-. Minha Vida. São Paulo: Brasiliense, 1985.
ASTOR, Dorian. Lou Andreas-Salomé. Porto Alegre: L&PM, 2015.
FERRAZ, Maria Cristina Franco. O Bufão dos Deuses. Relume Dumará.
FEUERBACH, Ludwig. Preleções sobre a essência da religião. Campinas, SP: Papirus, 1989.
MINOIS, George. A História do Ateísmo. São Paulo, Unesp, 2014.
NIETZSCHE. Humano Demasiado Humano. Companhia das Letras de Bolso, 2005. ————————. Aurora. ————————. Assim Falava Zaratustra. ————————. O Nascimento da Tragédia. ————————. Ecce Homo. ———————–. A Gaia Ciência. ———————–. O Viajante e sua Sombra.
OLIVEIRA, Marcos Silva. Autópsia do Sagrado. Salto, SP: Schoba, 2012.
SAFRANSKI, Rüdiger. Nietzsche – Biografia de uma Tragédia. Trad. Lya Luft. São Paulo: Geração Editorial, 2011.
REFERÊNCIAS FÍLMICAS
Além do Bem e do Mal, de Liliana Cavani (1977) Quando Nietzsche Chorou, da obra de Yalom Human, All Too Human: Nietzsche, Sartre, Heidegger, uma minisérie da BBC
Conta a lenda que Prometeu, após ter roubado o fogo do Olimpo para presenteá-lo aos mortais, foi punido por um Zeus furibundo e vingativo. Era conduta costumeira: os suplícios que Zeus aplica a seus desafetos são um manual prático de crueldade e sadismo – que o digam Sísifo, Tântalo, Íxion e as Danaides! Contra Prometeu, o ladrão do fogo, a fúria divina também se manifesta em todo o esplendor de sua violência. O titã transgressor é acorrentado por Hefesto a uma rocha, para em seguida ser submetido a uma tortura infinda: uma águia almoça todos os dias o seu fígado, em carne viva, e a cada novo dia o fígado se regenera, sendo novamente devorado.
Este mito grego é um daqueles que teve mais profundas repercussões na história da cultura: foi o material inspirador da dramaturgia grega clássica (a Prometeu era dedicada uma trilogia trágica de Ésquilo, apenas parcialmente conservada), de obras-primas da poesia universal (com destaque pros versos de Percy Shelley e para seu ensaio precursor do veganismo, além do poema de J. W. Goethe), da pintura (são inesquecíveis as imagens de Peter Paul Rubens e Dirck van Baburen) etc.
Também é Prometeu que Hans Jonas invoca ao iniciar esta obra crucial da filosofia do século XX, O Princípio Responsabilidade: “O Prometeu definitivamente desacorrentado, ao qual a ciência confere forças antes inimagináveis e a economia o impulso infatigável, clama por uma ética que, por meio de freios voluntários, impeça o poder dos homens de se transformar em uma desgraça para eles mesmos. A tese de partida desse livro é que a promessa da tecnologia moderna se converteu em ameaça…” [1]
O fogo serve aqui como símbolo para aquilo que possibilita que a humanidade desenvolva sua tecnologia, uma espécie de estágio inicial no processo científico e criador de técnicas de intervenção e modificação da realidade natural: a domesticação do fogo seria o marco zero da tecnê (o termo grego para “saber fazer”, para todas as vertentes do conhecimento técnico). Ora, Hans Jonas, fiel neste sentido à tradição de Heidegger (desconsiderados os imensos abismos que os separam em política), reflete fundamentalmente sobre o efeito da tecnologia sobre as civilizações. Com a imagem do Prometeu desacorrentado põe em evidência o perigo, o risco, a ameaça, de um poder titânico, desenfreado, que pode exagerar na dose de seu intervencionismo dominador e transfigurador.
O filho do Prometeu desacorrentado é o Antropoceno, e Hans Jonas, ainda que mencione o efeito estufa e o aquecimento global apenas en passant, sem estar exatamente consciente do peso e da gravidade que hoje adquiriram as mudanças climáticas e as catástrofes delas decorrentes, construiu uma filosofia que tem muito a nos ensinar sobre os tempos em que vivemos – e os tempos que virão.
O problema da humanidade atual não é a falta do fogo, isto é, a primitividade tecnológica, mas sim o fogo em excesso, ou seja, o planeta transformado em demasia pela intervenção humana, a ponto de termos entrado em uma nova era geológica, o Antropoceno. O mito antigo, que trazia Prometeu privado da liberdade, tem que ser atualizado para o contexto contemporâneo: o de Prometeu sem freios, devastando um planeta com o consumismo, o produtivismo, a queima de energias fósseis, num “poluicionismo” insano e titânico.
Na wasteland do real, Prometeu passa por símbolo de uma tecnologia que saiu dos trilhos e encaminha-nos para distopias sci-fi à la Matrix, Children of Men, Snowpiercer, The Road… (Sobre as conexões múltiplas entre o cinema de ficção científica atual e a especulação sobre os efeitos da tecnociência sobre a biosfera, conferir o ótimo livro de Viveiros de Castro e Danowski, Há Mundo Por Vir?)
Exemplo contemporâneo melhor da titânica desmesura não há do que este: sabe-se há décadas que a queima de combustíveis fósseis gera como subprodutos tóxicos a emissão de gases de efeito estufa, que tornam nossa atmosfera uma sauna com temperaturas em ascensão (as previsões do IPCC, Intergovernamental Panel on Climate Change, são de um incremento de 2º a 6º graus Celsius na temperatura da Terra ao fim do século XIX).
A era em que entramos, o Antropoceno, não deve ser comemorada acefalamente como se provasse a supremacia humana, nossa posição de domínio – pois alguns humanos narcisistas talvez sintam vontade de comemorar o Antropocen como se fosse uma vitória esportiva ou uma medalha de ouro olímpica! Na real, o Antropoceno é vivenciado como uma desgraça pela a teia da vida (cito aqui o Chief Seattle em seu discurso the web of life): para a diversidade dos viventes, o ser humano – um dentre esta miríade de viventes – tornou-se um tão mortífero extintor-de-espécies que age hoje com o poder de um cataclismo geofísico. Deixo ao leitor a tarefa de julgar do que sofre este escriba: paranóia catastrofista ou excessiva lucidez?…
“We did not weave the web of life, we are merely strands in it. Whatever we do to the web we do to ourselves.” ― Chief Seattle
O que urge é termos “a coragem de ter medo” [2], como já recomendava Günther Anders, em 1959, diante da ameaça de uma guerra nuclear (leia, na revista Sopro, as Teses Para A Era Atômica, de 1962). Hoje, tanto as mudanças climáticas quanto a guerra nuclear devem nos pôr em estado de medo construtivo – um outro nome para a boa e velha virtude da prudência? – como argumentam tantos climatologistas, antropólogos, cientistas e outros humanos que, quanto mais esclarecidos se tornam, mais aterrorizados parecem ficar com os rumos planetários catastróficos. Essa coragem de temer é também sublinhada por Hans Jonas que, num arroubo de ironia, subverteu a tradição filosófica da dúvida cartesiana, demandando que é preciso duvidar de tudo, menos do pior.
Parece-me que o pensamento e o ativismo ecológicos da atualidade possuem uma forte tendência ao catastrofismo esclarecido, vertente que talvez se aplique a autores como Naomi Klein, George Monbiot, Eduardo Viveiros de Castro, entre outros. Trata-se sempre de estar com a mente clara e lúcida quanto às consequências de longo prazo de nossas ações presentes que, analisadas com profundidade, revelam-se de uma irracionalidade e de uma destrutividade preocupantes.
De onde diabos saiu o tal do “catastrofismo esclarecido”? Até onde sei, o termo vem de Jean-Pierre Dupuy, discípulo de Ivan Illich e René Girard, que publicou no começo do século XXI seu livro Pour Un Catastrophisme Éclairé. Dupuy parece defender a tese (bastante discutível) de que “a ação política deve atualmente pensar menos na perspectiva da revolução a conseguir e mais na catástrofe que é preciso barrar se ainda houver tempo.” [3]
Segundo os catastrofistas esclarecidos – que estão no pólo oposto dos “negacionistas”, estes otimistas muito bem-pagos que recusam-se a admitir que temos um problema… (vejam o artigo de Deborah Danowski) – a ação política hoje deve estar focada numa ação de frenagem (que pode, é claro, incluir vastas ações de sabotagem do atual sistema).Devemos nos mobilizar para frear a loucura suicida do atual sistema de produção e consumo, caso contrário a biosfera sofrerá um colapso ainda mais grave do que este que já está em curso e que já vem gerando imensa devastação socioambiental, extinção de inúmeras espécies, com prognósticos de aquecimento global galopante e crise de refugiados de proporções épicas. Um cenário que o deputado federal brasileiro Chico Alencar (PSOL) descreveu em sucintas palavras: “Cada vez mais somos tripulantes de uma nave comum ameaçada que é a mãe Terra. O desastre ambiental vai nos afetar a todos, sem exceção, embora comece tirando a vida dos mais pobres por causa de nossa desordem injusta estabelecida.” [4] (Assista o vídeo em http://bit.ly/1tGGnIu)
O filósofo Hans Jonas, que foi aluno de Heidegger e amigo de Hannah Arendt
No caso de Hans Jonas, o que está em jogo é a criação de uma nova ética, de um novo paradigma de relacionamento, de modo a agirmos com uma precaução,uma prudência, a generosidade atenta (à la Simone Weil), não somente no nosso trato uns com os outros, mas também em relação aos vivos que ainda estão por nascer. As futuras gerações, destacará Hans Jonas, devem ser levadas em consideração desde já. A ética do presente não pode ignorar o futuro, sob o risco de legar aos que viverão amanhã um mundo muito mais terrível do que aquele em que nascemos. A ecologia, a economia, a ética, não podem ser desvinculadas. É nossa responsabilidade legar aos viventes vindouros um planeta habitável, com água bebível, ar respirável.
O filósofo Hans Jonas, nascido em 1903 na Alemanha, é muitas vezes classificado como um dos pensadores do círculo de Martin Heidegger, na companhia de Hannah Arendt, Herbert Marcuse, Karl Löwith, dentre outros (vejam Heidegger’s Children, de Richard Wolin). Em 1934, com a ascensão do III Reich hitlerista, vê-se obrigado a deixar a Alemanha. Nos anos 1960, publica uma obra marcante de seu percurso intelectual, O Fenômeno Da Vida, um livro que pode ser sintetizado pelas seguintes palavras de seu epílogo: “com a continuidade da mente com o organismo, do organismo com a natureza, a ética torna-se parte da filosofia da natureza. (…) Somente uma ética fundada na amplitude do Ser pode ter significado.” [5] Em 1979, é publicada em alemão sua obra clássica, O Princípio Responsabilidade, que aqui propomos analisar mais detidamente.
Pensemos em um organismo biológico como um gato. Não qualquer gato, mas um gato arisco que foge em busca de abrigo ao menor sinal de perigo. Este gatinho arisco, que alguns podem xingar de covarde, exemplifica uma conduta baseada nos perigos do futuro; sua ação é guiada pelo medo legítimo de sofrer algum mal. O gato sabe-se ferível e dribla como pode, com a ligeireza de suas lépidas patas, os perigos do ambiente, incluindo prevendo, ainda que num horizonte temporal menos amplo do que aquele atingível pelo cérebro humano, os focos futuros de perigo.
Ora, a tecnologia humana transformou (e segue transformando) de modo tão radical o mundo natural, e talvez de modo irreversível, que hoje não somos apenas nós, os humanos, que vivemos na artificialidade de um mundo tecnologizado. A “tecnologização” tem tentado engolir a Terra por inteiro, mandar Gaia para a barriga cibernética, emblogando todos os viventes em uma teia tecnológica tecida por mãos humanas. Bem-vindos ao Antropoceno e àquilo que venho chamando, em textos que seguem as pegadas de Michel Serres, de A Nova Condição Humana. Uma era geológica onde o auto-proclamado homo sapiens, o animal racional, deixou ir até o exagero delirante (àquilo que os gregos chamavam de hýbris ou húbris e que vinculavam com o desencadeamento de tragédias) o seu lado homo faber. E agora tem milhões de revólveres apontados para as cabeças de bilhões de organismos vivos – e não pára de apertar os gatilhos. Não tem razão de estar apavorado o gato arisco, que foge de todo e qualquer ser humano, na visceral intuição de seu catastrofismo esclarecido de felino?
O que devem estar pensando de nós os castores, dada a grotesca mercantilização das árvores e das nozes? Fariam os castores o mesmo, caso tivessem nossos poderes? A civilização ocidental fabrica mitos otimistas e kitsch, como sorridentes Mickey Mouses, enquanto na prática conduz sua economia e sua gestão do meio-ambiente de maneira ecocida-genocida. O capitalismo atual pratica o assassinato em massa em vasta escala, não só de humanos mas de bilhões de viventes não-humanos, por exemplo aqueles que são massacrados em abatedouros para que tenhamos nossos hamburguers e salsichas.
Já no fim dos anos 1970, Hans Jonas já percebia a gravidade da situação e deu à luz um livro assombrado pela expectativa do pior. Em um tratado de ética que permanece de alta relevância meio século depois de publicado, Jonas pretende fundamentar uma nova ética para o futuro. O desafio: que leve-se em conta a pluralidade de existências e consciências, esculpidas pela evolução da matéria viva, que estão ameaçadas na base ontológica radical de seus corpos físicos pelo Prometeu desacorrentado da tecnê humana. É preciso construir uma ética que considere dignos de respeito e consideração os interesses das futuras gerações, dos ainda não nascidos. Por isso alguns ecologistas chegarão a dizer que, na obra de autores como Hans Jonas, “fala-se pelas árvores” – o que significa dizer que filósofos assim demandam de nós que sejamos éticos não só entre humanos, mas éticos entre os vivos, vivendo de modo a legar dignas condições de existência aos viventes vindouros.
Mais que isso: Jonas tenta construir com urgência uma ética que não ponha em risco tudo aquilo que a vida necessita para a continuação de seu peregrinar evolutivo. É preciso preservar um mundo ameaçado de cair no caótico desequilíbrio causado por uma tecnologia caída em húbris, de uma economia que consome e polui em escala trágica, que em sua insânia predatória e sanha transformadora, sufoca a natureza e acarreta a crise climática que hoje já anuncia-se como um problema global de imensa gravidade e sem precedentes. Nisto, a História não poderá guiar-nos tanto, já que não há no passado tanto a aprender sobre os eventos que “vem do futuro”, de modo que precisamos, neste caso, de uma ética e de uma política, umbilicalmente conectadas, onde os labores da evolução, que deram como frutos esta profusão prodigiosa de espécies viventes, sejam salvos da destruição e escapem do pior.
Pois é preciso duvidar de tudo, salvo do pior.
Jonas é um pessimista incurável? Se for, é de maneira bem diversa de Schopenhauer ou Cioran. Acredita em um “estado de coisas metafísico” que “nos impõe o mais alto dever de conservá-lo” (capítulo II, p. 80) [6]. Nenhum niilista tem tais tendências ao “conservacionismo”, nem tais clamores pelo respeito a algo de “metafísico”. De modo a conservarmos o que é valioso, dirá Jonas, é preciso levar a sério os prognósticos de catástrofe que ameaçam-nos com a morte de valores inestimáveis. “Em assuntos de certa magnitude – aqueles com potencial apocalíptico – deve-se dar mais peso ao prognóstico do desastre do que ao prognóstico da felicidade.” (capítulo III, p. 83)
Já que pesa sobre nós, que vivemos na época do Prometeu desacorrentado, a “ameaça de um futuro terrível” (p. 85) [7], devemos ser prudentes e assumir o dever irrecusável de responsabilidade diante do futuro da vida. Um dos maiores problemas, porém, é que “aquilo que não existe não faz reivindicações”, como escreve Jonas pensando nas futuras gerações, cuja voz ainda não ouvimos mas que nossa conduta presente pode estar lesando. Em nossas escolhas e ações, individuais e coletivas, devemos respeitar o “direito daqueles que virão e cuja existência podemos desde já antecipar” (p. 91) [8]. Devemos ouvir, desde já, as vozes daqueles que ainda estão por nascer. A ética, como formulada por Hans Jonas, precisa considerar “a possível acusação de nossas vítimas futuras” (p. 92) [9].
“Convoque seu Buda, o clima tá tenso.” (Criolo)
O problema filosófico que se coloca claramente no livro é o de nossas relações com o tempo futuro, dada a nossa incontornável necessidade de agir no presente com conhecimentos limitados, prognósticos falhos e miríades de incertezas. Um argumento que se lança frequentemente à cara dos “ecochatos” é o de que é prepotência dos ecologista achar que eles vêem o futuro melhor do que os outros, “sabichões” que pensam descrever qual será o futuro real quando apenas projetam suas fantasias catastrofistas…
Pascal Bruckner escreveeu um livro polêmico, O Fanatismo do Apocalipse, que ataca várias vertentes do discurso “verde”, vegan, ecológico, pró-indígena, grass-roots, acusando ativistas de todas as estirpes de serem uns fanáticos pelo apocalipse, imaginando desgraças que o futuro, de fato, não nos reserva. Os manifestos de Bruckner parecem uma acusação en bloc da ecologia por disseminar o medo, sendo que essa história de apocalipse iminente é papagaiada mais velha que a Bíblia… E mesmo os materialistas às vezes não escapam de crer em mitos apocalípticos, como alguns marxistas que têm fé no futuro pois o funeral iminente do capitalismo irá desaguar na ressurreição beatífica de uma sociedade sem classes.
Bruckner sugere que façamos uma distinção entre dois tipos de medo: “um, salutar e que mobiliza; o outro, deletério e que enfraquece.” (p. 76) [10] O que motiva a crítica de Bruckner àqueles que xinga de “neo-puritanos verdes” é uma recaída no ascetismo auto-mortificante, que ele já atacara em livros anteriores como A Tirania da Penitência. Ele despeja seu desprezo em cachoeiras sobre as virtudes da frugalidade e da simplicidade – valores de que foram arautos figuras como Gandhi, Thoreau ou Pepe Mujica (o ex-presidente do Uruguai).
Em ecologia, Bruckner parece mais próximo da vertente dos “aceleracionistas” (sobre estes, recomenda-se a leitura de Benjamin Noys), e todos os discursos de apologia ao freio (temos que frear a queima de combustíveis fósseis, o consumo de carne, a derrubada das florestas!) aparecem a Bruckner como babaquices de hippies repressores querendo “reciclar o velho ideal da penitência” (p. 238) [11]. No fundo, fica-se com a péssima impressão que Bruckner é como um bully que ataca, com seu taco de baseball retórico, aqueles que ele desdenha como ecochatos moralistas que só querem estragar a festa do consumo, a folia da hedonê desacorrentada…
Não quero aqui me alongar em atacar as posições de Bruckner, mas sim aproveitar o ensejo para ir mais a fundo na questão, considerando o problema: podemos realmente prever o futuro e fazer prognósticos seguros sobre catástrofes vindouras? É possível encontrar soluções atuais para problemas futuros que, a rigor, ainda não começaram a se manifestar em toda a sua fúria?
Para sondar estes abismos, parece-me bem interessante a filosofia do tempo, vinculada à doutrina ética, que está exposta no O Princípio Responsabilidade de Jonas.O ímpeto polêmico e bélico do livro de Bruckner prejudica aquele livro com uma certa rasidão na consideração de fatias de tempo amplas; em contraste, é espantosa a profundidade com que Jonas aborda a questão do tempo, da “duração” Bergsoniana. Diz, se o entendi bem, que o futuro distante não está acessível ao nosso saber e isto nos obriga a agir na penumbra. Não é que estejamos na escuridão total e absoluta sobre o futuro, mas quanto mais distante é o futuro considerado, mais incertos são os prognósticos, mais na penumbra agimos.
Daí a tese de Jonas de que “a incerteza dos prognósticos de longo prazo deve ser considerada um fato”. A existência humana aparece então como que regida por um onipresente desconhecido, o futuro distante. Donde o “aspecto de jogo de azar ou de aposta contido em todo agir humano, concernente ao seu resultado e aos efeitos colaterais, e quando nos interrogamos sobre que lances poderíamos fazer, falando em termos éticos.” (p. 83) [12]
A condição humana não pode ser dissociada da condição vivente, que por sua vez não é dissociável de um planeta, e este, por sua vez, conectado umbilicalmente ao sistema cósmico completo, de modo que há um “entrelaçamento indissolúvel”, dirá Jonas, no qual “não se pode evitar que o meu agir afete o destino de outros.” (p. 84) [13] Responsabilidade é algo que decorre deste nosso entrelaçamento, desta nossa comum pertença à teia da vida e ao tecido cósmico.
O contrário da responsabilidade é a inconsequência, o agir cego ao amanhã. E pode ser profundamente irresponsável a omissão quietista dos que nada fazem, lavam as mãos, não querem saber. A apatia pode ser sintoma de indiferença aos outros, de incapacidade de enxergar o fluxo vital que faz com que, numa corrente ininterrupta, misturem-se no mundo os últimos gemidos dos moribundos com os primeiros choros dos recém-nascidos, na sempiterna renovação da existência.
Uma das características mais marcantes da obra de Jonas é essa ênfase nos viventes vindouros, nas futuras gerações, entes esses que muitas vezes são desconsiderados pelas doutrinas éticas. É possível dizer inclusive que uma filosofia como a de Hans Jonas só pôde nascer em certo momento histórico – a 2ª metade do século XX d.C. – em que a aniquilação da humanidade passou a estar entre os possíveis, entre os feitos realizáveis, por cortesia da bomba atômica. A era atômica trouxe-nos a um estado de risco sem precedentes – e vivemos hoje em um globo marcado pelos desastres de Chernobyl, de Fukushima, de Hiroshima e Nagasaki… Neste contexto, Hans Jonas formula a diferença entre a política do passado – em que o líder político jamais tinha suficiente poder de aniquilação para pôr em risco a vida da humanidade como um todo – e a política que surge no novo contexto criado pelas bombas-H:
“Quando, na hora fatídica, o líder político arrisca a existência inteira de seu clã, de sua cidade e de sua nação, ele sabe que mesmo após a eventual derrocada continuará existindo uma humanidade e um mundo da vida aqui na Terra. Só nos marcos desse pressuposto abrangente torna-se moralmente defensável, em casos extremos, o grande risco ímpar… Mas, agora, entre as possíveis obras da tecnologia, há algumas que, por seus efeitos cumulativos, têm precisamente essa abrangência e penetração globais, ou seja, têm o poder de pôr em perigo quer a existência inteira ou a essência inteira dos homens no futuro. (…) Não seria possível supor que a humanidade que ainda está por vir possa concordar com sua própria inexistência ou desumanização… existe (como ainda deve ser demonstrado) uma obrigação incondicional de existir, por parte da humanidade, que não pode ser confundida com a obrigação condicional de existir, por parte de cada indivíduo. Pode-se discutir a respeito do direito individual ao suicídio, mas não a respeito do direito de suicídio por parte da humanidade.” (JONAS, Hans. O Princípio Responsabilidade, p. 86) [14]
A humanidade, segundo Jonas, não tem direito de se auto-aniquilar, o suicídio só é justificável para casos individuais e nunca para o conjunto do humano. E daí decorre o princípio já citado, o de que “no processo decisório deve-se conceder preferência aos prognósticos de desastre em face dos prognósticos de felicidade. O princípio ético fundamental, do qual o preceito extrai sua validade, é o seguinte: a existência ou a essência do homem, em sua totalidade, nunca podem ser transformadas em apostas do agir.” (p. 86) [15] Não é ético brincar de roleta russa com a cabeça da humanidade.
E o que fazem hoje em dia esses bambambans do mercado financeiro, nas bolsas de valores do cassino global cognominado capitalismo, do que apostar com a cabeça da humanidade toda, nos altares da acumulação de capital, mesmo que este tenha como subproduto as catástrofes sócio-ambientais? Um banqueiro, um especulador financeiro, um CEO corporativo, um rei do agronegócio, estes tipos fazem o quê senão, através de sua irresponsabilidade, desprezar completamente os viventes vindouros e as condições ecológicas da dignidade para os seres que ainda estão por nascer?
O elemento subversivo na obra de Hans Jonas se manifesta em sua “inversão do princípio cartesiano da dúvida” e em sua objeção ao argumento da aposta de Pascal. É o que ele mesmo esclarece no trecho seguinte:
Retrato de Descartes, por Frans Hals
“Segundo Descartes, para que possamos estabelecer o que é indubitavelmente verdadeiro, deveríamos equiparar tudo o que for duvidoso, de uma forma ou de outra, ao que é comprovadamente falso. Aqui, ao contrário, para tomarmos uma decisão, deveríamos tratar como certo aquilo que é duvidoso, embora possível, desde que estejamos tratando de um determinado tipo de consequência. Seria também uma variante da aposta pascaliana, descontado o seu caráter egoisticamente eudemônico e, em última instância, aético. Segundo Pascal, na aposta entre os prazeres breves e questionáveis da vida mundana, de um lado, e a possibilidade da eterna felicidade ou da eterna danação no além, de outro, o puro cálculo obrigaria a apostar nesta última possibilidade. (…) A esse tipo de aposta de tudo ou nada se pode objetar, entre outras coisas, que, em comparação com o nada, que aqui é assumido entre outros riscos, qualquer coisa – mesmo a vida fugidia e passageira – torna-se uma grandeza infinita… a aposta na eternidade possível com o sacrifício da temporalidade dada significa a possibilidade de perda infinita. (…) Já o nosso princípio ético da aposta, em suma, proíbe a aposta do tudo ou nada nos assuntos da humanidade.” [16]
Não quero aqui entrar em detalhes sobre a dúvida fajuta de Descartes, que deságua no dogmatismo de uma “alma pensante” indubitável, nem sobre as minúcias da aposta de Pascal, que já discuti em outro texto. Mais do que elucidar o pensamento de Hans Jonas, situando-o em relação a estes paradigmas que são Descartes e Pascal, o interessante da argumentação do trecho destacado acima é uma concepção ética que tem uma atenção ao futuro que é rara de encontrar na filosofia.
Ler Jonas estimula a enxerga o futuro sob várias perspectivas: o futuro envolto numa rósea névoa do idealismo e suas utopias de amanhãs cantantes, de futuros radiosos de felicidade perfeita; o futuro do fatalista, do resignado, do desistente de si e da vida, propõe que fiquemos de braços cruzados, deixando o futuro acontecer; o futuro do ativista, do humano de ação e práxis, que crê que o futuro devemos obrar para construí-lo; o futuro da catástrofe ecológica (seja por fervências climáticas ou hecatombes nucleares) que nos ronda como um espectro que ganha peso e realidade maiores a cada dia…
“Toda vida reivindica vida”, escreve Jonas, e mesmo os que não nasceram, podemos ter certeza, quando estiverem vivos irão estar animados, como nós estamos, por um ímpeto vital que demanda vida – e vida digna. Olhar o mundo sob o viés dos viventes vindouros é um dos benefícios que se pode tirar da leitura “mergulhante” da obra de Jonas, que convida-nos a pensar que aqueles que ainda não existem, tem direitos a serem respeitados e podem estar sendo, hoje, severamente lesados. A questão “que mundo legaremos aos de amanhã?” passa a ganhar um peso inaudito no campo da ética e da política.
Pergunto-me, lendo O Princípio Responsabilidade, se a leitura e o estudo de obras como a de Hans Jonas não sejam uma condição necessária para que nós, os contemporâneos, possamos ter um amanhã menos sombrio do que este que se delineia. Enquanto as calotas polares derretem, os combustíveis fósseis são queimados e a chapa planetária esquenta ao ponto da fervura, talvez um tratado de ética como este merecesse tornar-se best seller (futuro improvável, é claro…). De todo modo, parecem-me possíveis muitas articulações entre a filosofia de Jonas e algumas vozes ressonantes que já clamam: “ecossocialismo ou barbárie!”
Sobre o ecossocialismo, o elucidativo livro de Michael Löwy, “O Que É O Ecossocialismo” (Ed. Cortez), revela inclusive que o próprio Karl Marx “parece aceitar o Princípio Responsabilidade caro a Hans Jonas, a obrigação de cada geração de respeitar o meio ambiente – condição de existência das próximas gerações.” [17] (p. 35)
“Mesmo uma sociedade inteira, uma nação, enfim, todas as sociedades contemporâneas tomadas em conjunto, não são proprietárias da terra. Elas são apenas ocupantes, usufrutuárias (Nutzniesser), e devem, como bons paters familias, deixá-la em melhor estado para as futuras gerações.” KARL MARX, O Capital, Volume III [18]
O imperativo de não aniquilar a natureza vincula-se ao imperativo humano de não cometer suicídio coletivo, já que é na Natureza que estamos enraizados e atacando-a atacamos a nós mesmos. Hans Jonas reflete detidamente sobre o que chama de “processo evolutivo”, tentando compreender como a subjetividade, a consciência, emerge da Natureza, tornando-se um de seus dados ontológicos. A subjetividade é algo que emerge da Natureza conforme organismos mais complexos vão evoluindo, diferenciando-se do ambiente (ao qual permanecem umbilicalmente conectados). E caímos no risco da irresponsabilidade ética caso esqueçamos de ouvir àquilo que Jonas chama de “o testemunho da vida”, esta coisa tão maior do que “ponta do iceberg” que são as subjetividades dos viventes:
“A subjetividade é, em certo sentido, uma manifestação superficial da natureza – a ponta visível de um iceberg muito maior -, ela fala também em nome do seu interior mudo. Ou: o fruto revela algo da raiz e do caule dos quais ele proveio. (…) A ciência natural não nos diz tudo sobre a natureza: disso é testemunha mais cabal a sua incapacidade de dar conta do caso mais elementar do sentir (e, portanto, do fenômeno mais bem comprovado de todo o universo!) – exatamente a ponta do iceberg. Essa é uma incapacidade essencial, e não provisória. Um efeito colateral e paradoxal dessa incapacidade é o fato de que a própria ciência natural, como um evento no universo a ser explicado, permanece eternamente excluída daquilo que ela pode explicar.
De todo modo, repetimos, da mesma forma como a subjetividade manifesta (que também é sempre particular) é algo assim como um fenômeno que emerge na superfície da natureza, ela se encontra enraizada nessa natureza e em continuidade essencial com ela, de modo que ambas participam do ‘fim’. À luz do testemunho da vida (que nós, rebentos que nos tornamos capazes de compreender a nós mesmos, deveríamos ser os últimos a negar), afirmamos, portanto, que o fim, de modo geral, tem domicílio na natureza. E podemos dizer algo mais quanto ao conteúdo: ao gerar a vida, a natureza manifesta pelo menos um determinado fim, exatamente a própria vida… Evitamos dizer que a vida seja ‘o’ fim, ou mesmo o principal fim da natureza, pois não temos elementos para fazer tal tipo de suposição; basta dizer: um fim.” [19]
Que a vida exista, ainda que seja neste cantinho do universo que chamamos de casa, prova ao menos que a Natureza é capaz de produzi-la, que a vida está dentre os realizáveis. O valor da vida, na obra de Hans Jonas, não irá fundamentar-se numa durabilidade infinita: não é por ser necessariamente eterna e imorredoura que a vida é um valor. Pois a vida pode ser vista como algo que emergiu da Natureza e que poderia revelar-se como precária e extinguível. Refletindo sob o impacto da radiação tremenda das bombas atômicas, Hans Jonas escreve tendo em mente o memento inolvidável da terra devastada. E não custa lembrar que a mãe do filósofo morreu em Auschwitz! Diante disso, é inegável que o homo sapiens converteu-se em uma entidade de tal poderio que põe sob ameaça toda a biosfera, todo o planeta e seus vivos.
Reencontramos o mito de Prometeu, do qual partimos, no capítulo V – “A Responsabilidade Hoje: O Futuro Ameaçado e a Ideia de Progresso”, no qual Hans Jonas está longe de ignorar ou fazer pouco caso da tecnologia (ele não é um hippie cantando pelado pelos jardins do amor um hino em louvor à bucólica Arcádia primaveril). Jonas reconhece a imensa ambiguidade da tecnologia, seu potencial que pode ser atualizado de modo tão maléfico (a bomba H) e tão benéfico (o avião, a informática). Não se trata de julgar se a tecnologia é boa ou má, mas sim de mostrar toda a complexidade de seus efeitos sociais, alguns péssimos, outros repletos de potencial libertador. Resumo da ópera hi-tech que vivemos e em que tanto ouvimos ser celebrado o “êxito” da tecnologia:
“Na técnica, o êxito, com sua visibilidade pública estonteante, abarcando todos os domínios da vida – um verdadeiro cortejo triunfal -, faz com que a aventura prometeica se desloque, diante da consciência comum, do papel de um simples meio (o que toda técnica é em si mesma) para o de finalidade, mostrando-se a ‘conquista da natureza’ como a vocação da humanidade: o Homo faber ergue-se diante do Homo sapiens…” [20]
Sobre este tema, um dos filmes contemporâneos mais relevantes, me parece, é o documentário canadense Manufactured Landscapes, dirigido por Jennifer Baichwal e inspirado na obra do artista e fotógrafo Edward Burtynsky. Todo o impacto do ser humano, como força coletiva e global, sobre o planeta, é exposto de modo impressionante pela arte de Burtynsky, que esforça-se também por sublinhar as paisagens onde o lixo eletrônico vai parar, contaminando lençóis freáticos e tornando a água tóxica e imbebível para as populações locais (por exemplo na China ou em Bangladesh…). Uma resenha publicada no site Dwell sintetiza bem o valor de Paisagens Manufaturadas para a nossa compreensão de mundo (e é um excelente manancial de evidências empíricas a ser utilizado por educadores que queiram discutir Hans Jonas, Philip K. Dick, Terence McKenna…)
“The film shifts between photography and video almost seamlessly, portraying Burtynsky’s experiences in both China and Bangladesh to capture the visceral nature of large-scale infrastructure, quarries, mines, landfills, and specifically China’s Three Gorges Dam. In another scene, focusing on the concept of e-waste recycling, Burtynsky depicts mountains of motherboards, wires, smashed monitors in the town of Seguo in Zhejiang Province, and interviews the people affected. Due to this massive influx of poisons, Zhejiang now has a contaminated watertable, and must ship water into the province for its residents.
While many praise the film for presenting the evidence of industrialization in such a powerful, yet non-didactic way, Burtynsky’s message has, undoubtedly, a pretty directed agenda. “Maybe the landscape of our time is the one that we can change,” Burtynsky muses, as the videocamera flies across an harrowing ocean of discarded phone dials.” [21]
O projeto de dominação da natureza, que podemos descrever miticamente como o êxito de Prometeu desacorrentado, modificou a face da Terra por inteiro e fez com que embarcássemos no Antropoceno, esta era em que estamos ameaçados de conhecer, muito em breve, a extensão dos danos que causamos ao ambiente natural. Os impactos cumulativos destes séculos de industrialização, de desmatamentos, de fertilizantes artificiais, de uso de pesticidas em escala industrial, de extinção de espécies, deveria deixar-nos mais temerosos do que otimistas quanto ao futuro – eis, parece-me, o mood da obra de Hans Jonas. Ele já sabia muito bem, aliás, do quão problemático era, para a humanidade, a dependência energética de fontes não-renováveis:
“Os combustíveis fósseis – carvão, petróleo e gás natural -, resultado da sedimentação de milhões de anos de síntese orgânica e atualmente a fonte predominante do consumo energético do planeta, não são renováveis. Dada a magnitude do seu consumo (que beneficia apenas uma pequena fração da população mundial, os países industrializados), caminham a passos gigantes para esgotar-se. O que o Sol armazenou no curso de milhões de anos no mundo vegetal terrestre os homens estão consumindo em alguns séculos. Desses combustíveis fósseis dependem também os fertilizantes químicos… A queima dos combustíveis fósseis, além do problema da poluição local do ar, traz o problema do aquecimento global, o efeito estufa, que ocorre quando o dióxido de carbono formado pela combustão se acumula na atmosfera e funciona como a cobertura de vidro de uma estufa, permitindo que os raios de Sol penetrem, mas impedindo que a radiação térmica escape da Terra.
O aumento da temperatura global, que provocamos e mantemos desse modo (e que, a partir de certo grau de saturação, será capaz de continuar mesmo na ausência de combustão suplementar), pode ter consequências duradouras e indesejáveis para o clima e a vida, até a catástrofe extrema do derretimento das calotas polares, da elevação do nível dos oceanos, da inundação de enormes extensões de planícies… Assim, a frívola e alegre festa humana de alguns séculos industriais seria paga talvez com a alteração por milênios da feição do planeta – o que não seria injusto do ponto de vista cósmico, já que durantes aqueles séculos se teria dilapidado uma herança de milhões de anos passados.” [22]
Promotional photograph to be used only in conjunction with the film MANUFACTURED LANDSCAPES, a Zeitgeist Films release.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
[1] JONAS, Hans. O Princípio Responsabilidade – Ensaio de uma Ética para a Civilização Tecnológica (Das Prinzip Verantwortung – Versuch einer Ethic für die Technologische Zivisilation). Publicado em alemão em 1979 e em inglês em 1984. Prefácio. Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2006. p. 21.
O filósofo também é um cosmonauta: apesar de não ter entrado em vestes espaciais e se mandado num foguete para longe da Terra, como fez em 1961 astronauta inaugural Gagárin, um filósofo como Spinoza (1632 – 1677) também “navegou” em pensamento pelo cosmos, ainda que de pés no chão, no esforço de decifrá-lo.
A nova temporada da série de divulgação científica e especulação filosófica Cosmos – de notável impacto sobre a consciência das massas desde sua primeira temporada, com Carl Sagan, nos anos 1980 – já inicia tentando construir um Spinoza como herói da Ciência.
O pensador holandês seria o defensor intrépido de uma convicção de que a servidão humana só será vencida, e a liberdade só será conquistada, por aqueles que compreenderem a deusa Natureza. Para isto, é preciso que o próprio conhecimento se torne o mais potente dos afetos (uma fórmula que aproxima Spinoza de Nietzsche).
Subindo na Máquina do Tempo da série Cosmos – Possible Worlds (2020), podemos visitar a época de Spinoza e compreender melhor suas relações com a conjuntura científica daqueles tempos: estamos na Holanda do século XVII e “o andar da carruagem” técnica-científica havia gerado o surgimento e o início da proliferação de telescópios e microscópios. Nunca mais enxergaríamos o micro e o macro cosmos da mesma maneira.
Se McLuhan está certo e o ser humano cria extensões de seu próprio corpo na forma de meios de comunicação e de inventos tecnológicos, podemos dizer que foram criadas extensões do olho humano: “enxertos” técnicos que, acoplados a nossos órgãos corporais, levam nossa capacidade de ver para um além de seus limites naturais.
Transcendendo os poderes limitados do olho nu, tornou-se possível ver o longínquo (com os telescópios) e o minúsculo (com os microscópios). Estes processos análogos e sinérgicos da expansão dos horizontes ópticos confluíram para ajudar a parir a astronomia moderna. Esta se ergue, como sabemos, da punhalada de morte desferida contra a farsa do geocentrismo – a crença equivocada na Terra como centro imóvel do universo, somada à ilusão finalista de que todas as estrelas girariam ao nosso redor e ali estariam com a finalidade de deixar nossas noites mais belas…
Pintura de Hirszenberg – Spinoza e os Rabinos
Em Amsterdam, no século 17, Spinoza vivia em um contexto histórico onde a “guerra” entre o geocentrismo e o heliocentrismo ainda pegava fogo: em 1600, Giordano Bruno havia sido queimado vivo pela Inquisição católica por ter sustentado que a Terra girava em torno do Sol e por filosofar sobre “a infinita variedade de formas da Matéria”. Dizer a verdade era pecado mortal segundo o viés dos mercadores de ilusões…
“A infinita variedade de formas sob as quais a Matéria nos aparece, ela não a adquire de um outro ser, a Matéria não a recebe de fora, ela a faz sair de seu próprio seio. A matéria é, na realidade, o todo da natureza e a mãe dos vivos.” — GIORDANO BRUNO (1548-1600). In: História do Materialismo, de F.A. Lange, pg. 213.
Tempos depois, havia marcado época o caso Galileu, séculos depois adaptado para o teatro por Brecht: ele havia sido coagido brutalmente a renegar suas convicções heliocêntricas. Conta a lenda que, para salvar seu pescoço (ou melhor, para que não assasse vivo nas fogueiras da intolerância teocrática geocêntrica!), Galileu abdicou publicamente de defender suas teorias, mas teria morrido sussurrando: “e no entanto ela [a Terra] se move!”
O filósofo Spinoza, no entanto, não trabalhava diretamente com ciência, desenvolvia um labor aparentemente muito mais modesto: eram os ossos do ofício, para o Sr. Baruch Spinoza, polir lentes. A verdade é que o nosso pão de cada dia nem sempre é conquistado em atividades gloriosas, capazes de render fama imorredoura àquele atado à sua atividade “ganha-pão” – que muitas vezes é seu ramerrão…
Hoje, este pode nos parecer um trampo não muito sedutor, já que não parece ser uma via nem para o enriquecimento material nem para a obtenção de glórias mundanas. Mas o trabalho de Spinoza tinha alguns charmes latentes.
Se o conteúdo manifesto da profissão parece consistir apenas numa técnica de manipulação de um objeto óptico, há algo além disso a compreender: todo um tecido histórico que explica porquê, naquele aqui-e-agora que Spinoza habitava na Holanda, as lentes passam a importar muito mais, a constituir um mercado, a demandar profissionais dedicados a aperfeiçoá-las, burilá-las e poli-las.
Na época e no espaço onde Spinoza polia lentes, a ciência heliocêntrica já havia evoluído muito – e Huygens, que compartilhava de boa parte das convicções científicas do supliciado e incinerado Bruno, era tratado em Amsterdam com uma chuva de glória e respeitabilidade, como narra Neil DeGrasse Tyson.
Spinoza, ainda que o classifiquemos entre os “pré-iluministas”, por mera adesão a uma classificação cronológica que coloca o Iluminismo como filho do século 19 e condena tudo o que veio antes a um estado de pré, foi já marcadamente iluminista. Um iluminista renascentista, polindo lentes na era do telescópio e do microscópio, ciente dos horrores perpetrados por fanáticos religiosos contra cientistas e filósofos, que vem a público com seu Tratado Teológico-Político na atitude de quem quer espalhar luz. Seu ímpeto é o de iluminar o debate público com argumentação consistente, pesquisa histórica apurada, análise clarividente.
A Luz já é, para Spinoza, um símbolo positivo, e a “iluminação” humana lhe parece uma missão louvável à qual dedicar suas forças. Ele quer romper com o Império das Trevas imposto pelas superstições e credulidades: esta é a sua luta bem antes de ser a de Voltaire, a de Helvétius, a de Holbach, a de Feuerbach ou a de Nietzsche.
Realizando uma ousada e fecunda confluência entre as ciências e as artes, entre a filosofia e a pintura, Cosmos (2020) propõe ainda que a ambiência estética que mais se sintoniza com o spinozismo são os quadros iluminados de Vermeer (1632 – 1675):
A “luz como objeto de escrutínio científico” (“light as object of cientific enquiry”) é uma realidade da época tanto quanto a complexa aventura de Vermeer e outros pintores com a representação artística da luz, ou seja, da miríade de jogos entre luz e sombra. É neste contexto de luz em escrutínio, luz em representação, luz vista como um ideal cívico, que a luz da razão de Spinoza começa a resplandecer.
Para uma análise plena da conjuntura histórica e cultural em que Spinoza atua, Cosmos (2020) contribui com elementos cruciais, a começar pelo avanço de uma tese sócio-política e econômica raras vezes mencionada em livros filosóficos ou sociológicos de comentário spinozista: aquele um contexto onde a pujante indústria têxtil holandesa se utilizava de lupas para enxergar a fundo, com imagens ampliadas, os mais íntimos recessos das roupas tecidas. Nos quadros de Vermeer também podemos vislumbrar a riqueza dos tecidos e tapeçarias produzidos nos Países Baixos da época.
Os polidores de lentes, como Spinoza, costumeiramente eram fornecedores de lupas para estas empresas, o que de fato coloca esta classe de trabalhadores numa posição bastante subalterna e nada gloriosa, fazendo parte de uma espécie de proletariado subsidiário da indústria têxtil. Porém, como dissemos antes, esta é uma época de iluminação progressiva e avanço da pesquisa científica – tanto que a luz do saber técnico avança em óptica até parir telescópios e microscópios.
Partindo daí, nossa consideração sobre o ofício do Sr. Spinoza ganha outro caráter e passa a ser banhada por outra luz. Um polidor de mentes na Amsterdam da época de Spinoza não era apenas um “zé-ruela” a serviço de burgueses que faziam vestidos caros para dondocas ou tapetes chiques para os nobres. Mas sim um trabalhador da ciência que estava em colaboração com o trabalho dos grandes astrônomos e cosmologistas que eram seus contemporâneos.
A morte de Spinoza, aos 44 anos de idade, também banha-se em uma nova luz quando considerada no contexto das informações que viemos delineando: causada por este labor cotidiano, ou melhor, ocasionada pelas doenças causadas pelo excesso de inalação de substâncias tóxicas utilizadas em seu labor diário, a morte de Spinoza pode assim adquirir um pouco mais de heroísmo, caso consideremos que seu trabalho estava longe de ser inútil, desimportante ou de quase nenhuma relevância social.
A Ciência da época, dedicada à compreensão dos micro e dos macro mistérios, necessitava sim das lentes apuradas e bem polidas. Talvez estas lentes, acopladas a microscópios e telescópios, capacitando-nos a enxergar células e estrelas, não são na história do avanço científico também tributárias do trabalho não só de Spinoza, mas de trabalhadores anônimos que tramparam como ele?
Será que não poderíamos escrever uma nova versão do poema Brechtiano perguntando: muito bem, Galileu olhava pelo telescópio, mas qual o nome dos operários que poliram as lentes do instrumento e cujos nomes foram deletados da História?
A importância, na Amsterdam da época, de uma espécie de “burguesia dos tecidos” pode ser atestada por outro fato: Spinoza foi contemporâneo de outro importante cientista, construtor de microscópios, ele mesmo comerciante da área têxtil, chamado Anton van Leeuwenhoek. Em Cosmos, este – ou melhor, sua versão animada! – aparece enxergando todo o universo escondido numa gota d’água quando a coloca sob a lente de um microscópio que aumenta a imagem mais de 1.000 vezes… “A ele é atribuída a descoberta dos microorganismos.” (Wikipédia)
Isto tudo para dizer algo que hoje nos parece óbvio, mas que estava longe de sê-lo à época de Spinoza: para além do visível a olho nu, uma miríade de fenômenos complexos existia e podia ser acessada através destes “olhos artificiais” que tornavam possível a observação do infinitesimal e do longínquo – como fez Huygens, usando lentes bem polidas em seu telescópio, para enxergar os anéis do Saturno, tendo sido talvez o primeiro a enxergar que o planeta e seus anéis circundantes não estavam encostados, e o descobridor da lua saturnina, Titan.
Naquela época ainda estava em sua aurora inicial, como um Sol ainda tímido a raiar na consciência da época, a noção de que as estrelas que vemos no céu noturno na verdade são outros sóis, cada um deles com um sistema de planetas e luas orbitando a seu redor – outros mundos que os telescópios um dia evoluiriam para captar com cada vez mais detalhe.
Nos livros sagrados, no entanto, não há menção de vida em outros planetas ou de mundos orbitando sóis distantes. Se a Bíblia é a verdade absoluta, como defendem seus fanáticos, como pôde ignorar totalmente as realidades que os grandes astrônomos e cientistas começavam a desvelar na época em que a Terra plana e imóvel caí em descrédito e começava a beijar o pó a que estão destinadas as doutrinas falsas, obsoletas e caducas?
Ao raiar da série Cosmos – Mundos Possíveis, baseada no livro homônimo de Anne Druyan (co-autora, com Carl Sagan, da série Cosmos: A Personal Voyage, dos anos 1980), Spinoza é invocado pelo âncora do programa, Neil DeGrasse Tyson, como um wizard of light que teve a coragem de erguer sua filosofia para questionar dogmas, preconceitos e superstições que também os astrônomos e cientistas vinham se esforçando por confrontar:
“Com vinte e poucos anos, Spinoza, que havia sido membro da comunidade judaica, começou a falar publicamente sobre uma nova visão a respeito de Deus. O Deus de Spinoza eram as leis físicas do universo e seu texto sagrado era na verdade o Livro da Natureza. A maioria dos judeus de Amsterdam eram refugiados que haviam escapado da atroz Inquisição na Espanha e em Portugal, países onde tantos judeus haviam sido torturados e mortos. Amsterdam havia oferecido aos judeus um refúgio e eles devem ter visto as ideias perigosas de Spinoza como ameaçadoras à segurança que havia sido tão difícil de ser conseguida. Eles o excomungaram e decretaram que devia ser para sempre desprezado.” (DRUYAN / TYSON. Cosmos, 2020, Episódio 1, “Ladder to the Stars”)
Esta excomunhão de Spinoza terá graves consequências para sua vida, é claro. A ponto da Ética, hoje um clássico da história da filosofia, não ter sido publicada em vida pelo filósofo, que temia as reações adversas contra seu livro – que, a julgar pelo escarcéu erguido contra o Tratado Teológico-Político, poderiam ter sido extremadas.
Talvez exista um certo exagero, pois, na tentativa de transformação de Spinoza num campeão da liberdade de expressão e de pesquisa científica, quando sua postura ao reter a Ética na gaveta não testemunha um ímpeto ousado e confrontador, mas um caráter prudente e nada afeito a controvérsias gratuitas.
Em um dos melhores estudos sobre o Tratado Teológico Político, Steven Nadler revelou em minúcias o contexto que envolve este Livro Forjado no Inferno – O tratado escandoloso de Espinosa e o nascimento da era secular (Ed. Três Estrelas). Ali, o autor afirma, sobre a fórmula spinozista Deus sive Natura:
“O Deus de Spinoza não é um ser transcendente, supranatural. Não é dotado dos aspectos psicológicos ou morais atribuídos a Deus por muitas religiões ocidentais. O Deus de Spinoza não manda, não julga nem faz alianças. Entendimento, vontade, bondade, sabedoria e justiça não fazem parte da essência de Deus. Deus não é a providencial e espantosa deidade de Abraão. Antes, é a fundamental, eterna, infinita substância da realidade e a causa primeira de todas as coisas. Tudo o mais que existe faz parte (ou é um “modo”) da Natureza (…) e não há nada que escape às suas leis.
(…) Assim, nada se dá por qualquer razão suprema nem para servir a qualquer meta ou a algum plano abarcante. O que quer que ocorra, ocorre tão somente porque é suscitado pela simples ordem causal da Natureza. E, uma vez que Deus é idêntico aos princípios causais ativos e universais da Natureza – a substância de tudo -, segue-se que a concepção antropomórfica de Deus, que, como pensa Spinoza, caracteriza as religiões sectárias, e todas as postulações sobre recompensa e castigo que ela implica não passam de ficções supersticiosas.” (NADLER, 2013m pg. 32)
Ao fim do episódio inaugural de Cosmos (2020), constrói-se a imagem de que Spinoza, de certo modo herdeiro de G. Bruno, seria o abre-caminhos para Einstein. Este, de fato, visitou o Museu Spinoza, tinha a Ética como um de seus 5 livros prediletos e, quando perguntando se acreditava em Deus, respondeu assim:
“Acredito no Deus de Espinosa, que se revela por si mesmo na harmonia de tudo o que existe, e não no Deus que se interessa pela sorte e pelas ações dos homens.” (Saiba mais em A Razão Inadequada)
O colapso do fraude, tão carinhosamente nutrida através dos séculos, de um deus antropomórfico, bem parecido com um animal humano macho, preocupado conosco como um papai-do-Céu, anotando em seu caderno de notas sobre nossos méritos e pecados, para depois nos condenar ao Inferno ou ao Paraíso, põe fim ao estado de “menoridade” em que a humanidade permanece atada caso não aceite a aventura desafiadora da lucidez. Mas sobre os escombros desta fraude é preciso construir – e para tal fim cientistas e filósofos podem e devem contribuir. Tanto é assim que tornou-se emblemática a afinidade eletiva que unia Einstein a Spinoza, a ponto de Nise da Silveira destacar em suas Cartas ao pensador holandês:
Meu caro Spinoza,
Você é mesmo singular. Através dos séculos continua despertando admirações fervorosas, oposições, leituras diferentes de seus livros, não só no mundo dos filósofos, mas, curiosamente, atraindo pensadores das mais diversas áreas do saber, até despretensiosos leitores que insistem, embora sem formação filosófica (e este é o meu caso), no difícil e fascinante estudo da filosofia.
Mais surpreendente ainda é que, à atração intelectual, muitas vezes venham juntar-se sentimentos profundos de afeição. Assim, Einstein refere-se a você como se, entre ambos, houvesse “familiaridade cotidiana”.
Que o futuro possa ser fecundo em familiaridades cotidianas entre filósofos e cientistas, entre pensadores e artistas, na confluência da criatividade catalisadora dos “inéditos viáveis”!
por Eduardo Carli de Moraes A Casa de Vidro, Agosto de 2020
SÉRIE COSMOS (2020) – A citação original do trecho sobre Spinoza em Cosmos – Possible Worlds (episódio 1, temporada 2020): “He was another wizard of light. Baruch Spinoza had been a member of the Jewish congregation of Amsterdam through his teen years, but in his early 20s, he began to speak publicly of a new vision of god. Spinoza’s god was the physical laws of the universe. His sacred text, the laws of nature.
He went even further, daring to write that the bible was not dictated by god but written by human beings. Spinoza wrote, “Do not look for god in miracles. Miracles are violations of the rule of nature. God is best apprehended in the study of those laws.” No one had ever said these things out loud. Spinoza knew he was testing the limits of free thought even for Holland.
To him, an official state religion was more than spiritual coercion. Spinoza regarded the major events of organized religious traditions as organized superstition. In his view, magical thinking posed a danger to the future citizens of a rational, free society. There could be no such thing as a democracy without a separation of church and state. He wrote a book that introducing the ideas at the heart of the American and many another revolutions.”
Uma das vozes mais contundentes do pensamento político e do ativismo radical no mundo contemporâneo calou-se para sempre em 2020: aos 59 anos, faleceu em Veneza o antropólogo anarquista David Graeber.Ele foi uma das lideranças do movimento Occupy Wall Street (2011)e é creditado como um dos criadores do lema “Nós Somos os 99%” (originalmente adaptado a partir de uma noção inventada pelo coletivo canadense AdBusters).
Autor de vasta obra, Graeber foi professor de antropologia da London School of Economics e deixa como legado uma vida e obra dedicadas à transformação radical de um mundo asfixiado pela dominação injusta da plutocracia (o “1%”). Sequestrando os processos eleitorais em seu favor, a minoritária fração populacional que concentra poder e capital segue pisando sobre nossas goelas com as armas da dívida, da austeridade, da precarização laboral, dos golpes de Estado e das núpcias sinistras entre neoliberalismo (fundamentalismo de mercado) e neofascismo (autoritarismo militarista).
Em seu livro “Um Projeto de Democracia – Uma História, Uma Crise, Um Movimento” (Rio: Paz e Terra, 2013), Graeber realiza uma espécie de reportagem a quente do Occupy somado a uma reflexão profunda sobre a democracia através da história:
“No mesmo dia do bloqueio da ponte do Brooklyn, em 2 de outubro de 2012, o Occupy Wall Street recebeu uma mensagem assinada por 50 intelectuais e ativistas chineses:
‘A erupção da Revolução de Wall Street no coração do império financeiro do mundo mostra que 99% das pessoas do planeta continuam a ser exploradas e oprimidas – independentemente de seres de países desenvolvidos ou em desenvolvimento. Pessoas de todo o mundo têm sua riqueza saqueada e seus direitos confiscados. A polarização econômica é hoje uma ameça comum a todos nós. O conflito entre o poder popular e o poder da elite está presente em todos os países. Agora, no entanto, a revolução democrática popular encontra repressão não só por parte de sua própria classe dominante, mas também da elite mundial que se formou com a globalização. As brasas da revolta estão espalhadas entre todos nós, esperando para queimar com a mais leve brisa. A grande era da democracia popular, que vai mudar a história, está entre nós novamente!’
Os intelectuais chineses dissidentes, assim como a maioria das pessoas no mundo, encararam o que aconteceu no Parque Zuccotti como parte de uma onda de resistência que varria o planeta. Estava muito claro que o aparato financeiro global, e todo o sistema de poder sobre o qual foi construído, estava cambaleando desde seu quase colapso em 2007-2008. Todos esperavam a reação popular. As revoltas na Tunísia e no Egito foram o início? Ou tratava-se de situações estritamente locais ou regionais? Então elas começaram a se espalhar. Quando a onda atingiu o ‘coração do império financeiro mundial’ ninguém mais podia duvidar de que algo memorável estava acontecendo.
O Occupy foi e continua a ser em sua essência um movimento de jovens voltados para o futuro, mas que ficaram completamente paralisados pela dívida. Agiram conforme as regras e assistiram à classe financeira desobedecê-las por completo, destruir a economia mundial com especulação fraudulenta, depois ser salva pela imediata e maciça intervenção governamental e, como resultado, exercer um poder ainda maior e ser ainda mais reverenciada do que antes. Enquanto isso, eles ficaram relegados a uma vida de permanente humilhação.
Especialistas em contrainsurgência dos Estados Unidos sempre souberam que o prenúncio mais provável de efervescência revolucionária em qualquer país é o crescimento da população universitária desempregada e empobrecida, ou seja, jovens cheios de energia, com muito tempo disponível, com acesso a toda a história do pensamento radical e com todos os motivos do mundo para estarem furiosos.” (GRAEBER, pg. 78, 84-85)
Preciosa contribuição aos debates contemporâneos sobre a democracia e os caminhos para sua radicalização, ou seja, sua ascensão desde a representatividade limitada até a participação popular plena, a obra de David Graeber tem muito a nos ensinar. No capítulo A História oculta da democracia, ele revela o quanto a democracia já foi demonizada através das épocas: vista como inimiga, temida como um pesadelo, foi defenestrada pelas classes dominantes ciosas de defender sua posição privilegiada no status quo:
“A maior parte da população desconhece o fato de que a Declaração de Independência e a Constituição [dos EUA] não mencionam que os Estados Unidos sejam uma democracia. (…) A maioria dos Pais fundadores aprendeu tudo o que sabia sobre o tema da democracia por meio da tradução de Thomas Hobbes para o inglês da História, de Tucídides, um relato sobre a Guerra do Peloponeso. A tradução pretendia ser um alerta de Hobbes sobre os perigos da democracia… Os Fundadores usavam a palavra no sentido grego antigo, que é o de autogoverno comunitário por meio de assembleias populares. Era o que hoje chamaríamos de ‘democracia direta’.” (GRAEBER: Um Projeto de Democracia. Paz e Terra: 2015, p. 160.)
Graeber na sequência explica que os EUA não nasce como democracia, mas sim como um república de molde emprestado à Roma Antiga e que os “pais fundadores” norte-americanos herdaram dos britânicos colonizadores. Trata-se de um sistema político que funciona pelo sistema da representação: “na Inglaterra remontava, pelo menos, ao século XIII. Por volta do século XV, tornou-se uma prática padrão que os homens com posses escolhessem seus representantes parlamentares mandado seus votos ao xerife.” (p. 161)
Quando se diz “homens de posses”, deve-se atentar para o princípio de exclusão que aí se manifesta: não é permitida a participação nem das mulheres, nem dos pobres. Quem assistiu ao filme Sufraggette sabe que o voto feminino é uma dura conquista que só virá no Reino Unido ao raiar do século XX. As eleições eram portanto, no berço da democracia anglo-saxã de inspiração romana,
“consideradas uma extensão do sistema de governo monárquico, já que os representantes não tinham poderes para governar. Eles não governavam nada, coletiva ou individualmente; seu papel era falar em nome (‘representar’ os habitantes de seu distrito diante do poder soberano do rei, para oferecer conselhos, expressar queixas e, acima de tudo, entregar os impostos de sua região). (…) A ideia, que nasceu nos Estados Unidos, de dizer que o povo pode exercer poder soberano – o poder antes exercido por reis – votando em representantes com real poder para governar, foi uma invenção reconhecidamente inovadora.” (p. 161)
A democracia representativa, que só permite que sejam eleitos aqueles com dinheiro, poder e prestígio, restringe a atuação política às classes privilegiadas, detentoras de capital econômico ou cultural. Esta pseudo-democracia, mais próxima de uma oligarquia, sempre teve pavor da democracia direta, ou seja, do poder popular ou comunitário. O medo da democracia, a noção de que é muito perigoso permitir às maiorias que tenham voz e vez, é muito bem exemplificada por Graeber a partir de John Adams, que argumentou:
“Se tudo fosse decidido pelo voto da maioria, os 8 ou 9 milhões de pessoas que não têm propriedades não pensariam em usurpar os direitos dos 1 ou 2 milhões de pessoas que têm? (…) A primeira coisa seria a extinção das dívidas; depois, pesados impostos recairiam sobre os ricos e absolutamente nenhum sobre os demais; e, finalmente, uma divisão absolutamente igual seria exigida e votada. Qual seria a consequência disso? O ocioso, o vicioso, o destemperado não perderia tempo em adotar uma vida de indulgência plena, venderia e gastaria todo o seu quinhão, e logo exigiria uma nova divisão… No momento em que ideia de que a propriedade não é tão sagrada quanto as leis de Deus e de que há uma força de lei e uma justiça pública capazes de protegê-la é admitida na sociedade, a anarquia e a tirania se iniciam.” (apud GRABER: p. 168)
A democracia, longe de ser amada e idolatrada pelas classes possidentes, costuma ser desprezada, temida, evitada, vilipendiada e obstaculizada por privilegiados que a retratam como caos, falta de ordem e turbulento reinado da turba ignara. Tanto que o cientista político canadense Francis Dupuis-Déri (da UQAM-Montréal)
“mapeou cuidadosamente o modo como a palavra ‘democracia’ foi usada por grandes figuras políticas nos Estados Unidos, na França e no Canadá durante os séculos XVIII e XIX, e descobriu, em todos os casos, exatamente o mesmo padrão. Quando a palavra começou a ser usada com alguma frequência, entre 1770 e 1800, foi empregada quase exclusivamente em sentido vexatório e ofensivo… era vista como anarquia, falta de governo e caos sem controle.” (p. 169)
Diante da grotesca persistência de um regime dominante que concede benesses pros privilegiados e austeridade para o resto, é crucial haurir forças na obra de Graeber: o 1%, camaradas, está escarrando em nossa cara. E chocando o ovo de serpente do fascismo redivivo. Diante disso, compreender plenamente a potência popular transmitida pelo lema “nós somos os 99%” é fundamental para virar pelo avesso a mesa onde hoje comem iguarias as minorias enquanto às maiorias são concedidas só as migalhas.
Vivemos em tempos sombrios em que democracia direta, autenticamente participativa, que exige cidadãos interessados nos assuntos públicos e na determinação dos rumos coletivos pela própria coletividade, torna-se uma bandeira utópica diante dos regimes pós e anti-democráticos (Trumpismo, Bolsonarismo, Dutertismo, Orbánismo, Modismo etc.).
São tempos que, para lembrar o título de um livro de Jacques Rancière, são de Ódio à Democracia em meio ao empoderamento de uma extrema-direita obscurantista e que exala ódio aos pobres e anseios de apartheid. A oligarquia capitalista atual odeia a democracia direta e a participação política; porém, também certas vertentes de esquerda por vezes caem na armadilha de odiar a democracia e pregar a liderança “pelo alto” das vanguardas iluminadas que conduziriam o povo ignorante a um melhor amanhã – um dirigismo que ameaça aniquilar a autonomia dos “dirigidos” e manter o coletivo na servidão. Sobre isto, o filósofo francês Jacques Rancière escreveu em O Ódio à Democracia:
“Em 1963, Hannah Arendt ainda via na forma revolucionária dos conselhos o verdadeiro poder do povo, na qual se constituía a única elite política efetiva, a elite autosselecionada no território daqueles que se sentem felizes em se preocupar com a coisa pública. (…) A democracia, longe de ser a forma de vida dos indivíduos empenhados em sua felicidade privada, é o processo de luta contra essa privatização, o processo de ampliação dessa esfera. Ampliar a esfera pública não significa, como afirma o chamado discurso liberal, exigir a intervenção crescente do Estado na sociedade. Significa lutar contra a divisão do público e do privado que garante a dupla dominação da oligarquia no Estado e na sociedade.” (RANCIÈRE, Boitempo:2014, p.69- 72)
A morte de Graeber equivale, como escreve a Jacobin, a “perder um farol”? Não: este farol só se apaga se não permitirmos que sua luz de lucidez e de renovação fique barrada por obstáculos à sua entrada. Abramos nossos corações e mentes, pois, ao farol de uma vida e obra que precisa ter sua potência transformadora e sua força crítica repercutida e ressoada por aqueles que permanecem vivos e que, junto com Graeber, estão cientes das responsabilidades de pertencer ao 99% e de ter em suas próprias mãos o desafio de parir uma realidade alternativa sobre os escombros de um status quo que merece morrer.
Talvez um dos ensinamentos supremos de Graeber, um cara que nunca desuniu o trabalho teórico do ativismo, a vida intelectual da vida prática, a inteligência da vontade, seja este: o capitalismo plutocrático que hoje nos massacra não vai morrer de morte morrida mas sim de morte matada. Nós estamos à altura da tarefa ou seguiremos sendo os cúmplices passivos deste capitalismo gore que nos oprime ao mesmo tempo que, pelas seduções do consumo, tenta nos aliciar para suas hostes?
Seremos parte da solução ou do problema? Seremos a Natureza consciente de si, que se ergue em sua própria defesa, ou estaremos alinhados com os ecocidas irresponsáveis que perpetram contra a Natureza uma hecatombe destrutiva (a Sexta extinção da biodiversidade planetária somada ao aquecimento global antropogênico etc.)? Seremos os agentes da emergência de uma nova democracia radical e autenticamente participativa, ou as ovelhas resignadas ao sacrifício, seguindo obedientes os necro-pastores e mortíferos gestores que condenam os pobres apenas à indignidade, à pobreza, aos trabalhos-de-merda e a um precoce tíquete de entrada no cemitério?
Com curadoria de Oswaldo Giacoia Jr, a série Novos Horizontes da Responsabilidade debate “novos agentes ou sujeitos éticos emergem no mundo contemporâneo. O poder-fazer, fomentado pelo desenvolvimento tecnológico, colocou o ser humano em condições teóricas e práticas de destruir inteiramente suas próprias condições de existência no planeta terra. Nesse contexto, um novo conceito de responsabilidade torna-se indispensável, e tentativas são feitas nas diferentes esferas culturais, da religião às ciências, da filosofia às artes e à política. Responsabilidade é atualmente a tradução da necessidade de amadurecimento e despertar para uma nova consciência dos impasses e dilemas do habitar humano no mundo. Esta série oferece ao público uma contribuição no tratamento de uma das questões mais importantes de nosso tempo: o presente e o futuro da humanidade em sua destinação na história. Gravado em março e abril de 2017.” (CPFL)
Assista na íntegra – pensadores: Oswaldo Giacoia, Zeljko Loparic, Franklin Leopoldo e Silva, Renato Lessa, Celso Lafer e Marcio Seligmann Silva.
O que é ser bissexual e o que é ser pansexual? Essas perguntas também são filosóficas. Neste texto eu pretendo dar a minha contribuição à discussão enquanto bissexual e pesquisador independente, em comemoração ao dia da visibilidade bi, 23 de setembro.
O mito de que “bi não fica com pessoas trans, intersexo, não-binárias, de gênero fluído ou sem gênero” ainda é reproduzido por algumas pessoas, e esse mito é extremamente prejudicial para o movimento LGBT+. Mas qual é, afinal, a diferença entre bi e pan?
Numa publicação que eu fiz nas redes sociais eu afirmei que bi e pan são uma mesma sexualidade. Algumas pessoas me corrigiram nos comentários, o que me levou a repensar essa afirmação. Afirmar que bi e pan são a mesma sexualidade seria apagar as pessoas que se identificam como pansexuais, como se elas não existissem ou fossem somente um subgrupo da bissexualidade.Porém, mesmo pessoas que se identificam como pan tem dificuldade de definir com exatidão a diferença entre bi e pan, e me parece que essa dificuldade vem do fato que a discussão sobre essa diferença precisa amadurecer. A ideia de que o conceito de pansexualidade seria mais inclusivo que o de bissexualidade vem de uma relação entre bissexualidade e binaridade de gênero, embora algumas pessoas digam que a bissexualidade não exclui necessariamente nenhum gênero.
O sentido literal do termo bissexualidade é atração sexual ou romântica por dois sexos ou gêneros (homem e mulher), enquanto o sentido literal de pansexualidade, devido ao prefixo “pan”, é atração sexual ou romântica por pessoas de qualquer sexo ou gênero. Se partirmos apenas do sentido literal, a pansexualidade inclui pessoas intersexo e fora da binaridade de gênero que não estariam inclusas na bissexualidade. Mas, como qualquer conceito, o sentido literal não corresponde necessariamente ao significado do conceito, uma vez que o conceito pode mudar de definição de acordo com os avanços teóricos, o debate público, o uso diário e a compreensão acerca dos fenômenos para os quais esses conceitos apontam.
Por exemplo, pansexual algumas vezes é interpretado literalmente como atração por qualquer coisa, incluindo animais, vegetais ou objetos inanimados. No entanto, o conceito de orientação sexual se refere somente a comportamentos sexuais consensuais entre adultos. Outras práticas sexuais são chamadas de parafilias. Do mesmo modo, é equivocado interpretar o termo bissexualidade de modo literal como atração por dois sexos.
O Manifesto Bissexual, escrito em 1990, é uma evidência disso. Nele se afirma o seguinte: “Bissexualidade é uma identidade completa e fluida. Não presuma que bissexualidade seja binária ou duogâmica por natureza: que temos “dois” lados ou que devemos nos envolver simultaneamente com ambos os gêneros para sermos seres humanos completos. De fato, não presuma que só existem dois gêneros”.
Arte por Maria Fernanda Reis para A Casa de Vidro
Em Bisexuality and Bisexual Marriage, a professora de filosofia Kayley Vernallis distingue entre dois tipos de bissexuais: bissexuais de gênero específico, que sentem atração por pessoas com base no gênero, e bissexuais de gênero não-específico, que sentem atração por pessoas com base na personalidade da pessoa, independentemente do gênero (HALWANI, 2017, p. 161).
No verbete Pansexualidade da Enciclopédia Internacional de Sexualidade Humana encontramos a seguinte distinção: “A pansexualidade pode ser distinguida da bissexualidade na medida em que rejeita especificamente o “ou/ou”, a noção de que as pessoas têm que escolher entre homens e mulheres, ou o que é conhecido como gênero binário, um espectro de gênero no qual os homens estão em uma extremidade e as mulheres na extremidade oposta” (RICE, 2015, p. 861). Essas são referências da área de filosofia e ciências sociais da sexualidade.
Poderíamos dizer então que o conceito de bi não exclui necessariamente gêneros não-binários, porém o conceito de pan rejeita necessariamente a binaridade de gênero, assim como necessariamente descreve uma atração não focada no gênero. Porém, o conceito comumenente usado na psicologia de “guarda-chuva bissexual” descreve um grupo de identidades não-monossexuais, incluindo pansexuais (FLANDERS, 2017). A confusão se dá porque nem sempre fica evidente quando uma pessoa está usando o conceito de bi como identidade sexual ou como termo guarda-chuva (que inclui várias identidades), o que acaba gerando uma ambiguidade.
Exemplos de definições equivocadas
O verbete pansexualidade da Wikipédia diz que o termo pansexual é usado para “escapar da binaridade de gênero” e define bissexualidade como tendo dois sentidos usuais: o primeiro “como termo guarda-chuva que denota atração por pelo menos dois gêneros (os gêneros similares e os diferentes)” e “para referir a quem sente atração por apenas homens e mulheres”, concluindo que “ambas os usos estão corretos” (sic). A falta de referências apropriadas indicam que este verbete não é confiável como fonte de informação. Mas além disso notamos diversos problemas que podem levar a interpretações equivocadas.
Primeiro, ao dizer que o pan é usado para “escapar” da binaridade, dá a entender que o bi não escapa, ou seja, que é necessariamente binário, o que não é verdade. Uma expressão mais apropriada seria “para enfatizar a não-binaridade”. Outro problema é que, ao invés de definir os dois tipos de bissexualidade, o texto mistura isso com o sentido mais amplo (o termo guarda-chuva), criando uma confusão. Além disso mistura uma definição de “atração por pelo menos dois gêneros” com a classificação homo/hétero, cuja expressão seria “atração homossexual e heterossexual”. O bi nesse caso se refere a duas orientações sexuais, não a dois gêneros.
O fato de que a pansexualidade é não-binária e não exclui pessoas trans, intersexo, não-binárias e sem gênero não implica que a bissexualidade seja menos inclusiva. A binaridade de gênero é normatizada pela estrutura cultural do patriarcado, mas todas as pessoas, sejam bi ou não, deveriam criticar a binaridade de gênero.
Num texto chamado “diferenças e semelhanças entre bi e pan”, publicado por Mermaid Anne em 2017, que foi recomendado em 2019 por Dríade Aguiar, que é ativista feminista negra pansexual e gestora da Mídia NINJA, encontramos um outro problema. O texto afirma que existem duas diferenças entre bi e pan:
“A identificação como bissexual em geral vem de um tipo de pensamento político baseado em identidade sexual, a identificação como pansexual muitas vezes vem de um tipo de pensamento político baseado em identidade de gênero”.
“A definição da pansexualidade é geralmente dependente da definição da bissexualidade”.
Infelizmente, isso não estabelece um critério válido para definir a diferença entre os dois conceitos, como eu pretendo demonstrar a seguir:
A primeira faz uma associação entre a identificação com uma sexualidade e “um tipo de pensamento político”. Note as expressões “em geral vem de” e “muitas vezes vem de” no texto, de onde se infere que nem sempre é assim. O argumento é que as pessoas bissexuais têm uma tendência de falar de identidade sexual ao invés de identidade de gênero, e pansexuais tem uma tendência contrária. Como essa tendência foi observada? Mesmo que houvesse dados sobre isso, ainda não implicaria numa diferença objetiva e conceitual, mas sim circunstancial e contingente, que não vale para todos os casos e contextos.
A segunda afirma que se a bissexualidade é definida de um modo, então “algumas pessoas” irão definir a pansexualidade de um modo mais inclusivo, não importa qual seja a definição de bissexualidade. Novamente não há nenhum dado e não vale para todos os casos e contextos. O texto diz que: Se bi é definido como atração por mais de um gênero, pan seria definido como atração por mais de dois gêneros. Se bi é atração por muitos gêneros, pan é atração por todos os gêneros. Se bi é atração pelo mesmo gênero e gêneros diferentes, pan é atração independente de gênero. Logo em seguida adiciona que “bissexualidade e pansexualidade podem ser e já foram definidas com todas as definições acima”.
Esse discurso trata o conceito de pansexualidade como dependente do conceito de bissexualidade sem dar nenhuma boa explicação para isso, e termina relativizando tudo que foi dito anteriormente ao dizer que pansexualidade e bissexualidade também podem ser definidos do mesmo modo, ou que a pansexualidade pode ser definida como um tipo de bissexualidade. Ou seja, terminamos o texto sem nenhuma definição real da diferença entre os termos, e com uma ideia de que pans são simplesmente pessoas que não querem aceitar o termo bi, mas sem nenhum bom motivo.
A Associação Americana de Psicologia (APA) define o termo “bissexual” como “pessoa que experimenta atrações emocionais, românticas e/ou sexuais, ou se envolve em relacionamentos românticos ou sexuais com mais de um sexo ou gênero”, como você pode ver nesse resumo, chamado Understanding Bisexuality. Isso foi resumido na Wikipedia em inglês como “atração por mais de um sexo ou gênero”, que provavelmente serviu de fonte para a definição da Wikipédia em português.
A definição também aparece neste artigo recomendado pela APA, das psicólogas Jennifer Vencill e Tania Israel. Porém, num texto chamado O que é pansexual? Entenda o significado dessa orientação sexual, publicado na Universa, uma seção do site UOL voltada à diversidade, a psicóloga Andrea de Carvalho Perez é citada como tendo afirmado que “historicamente, a psicologia define a bissexualidade como sendo o interesse por dois gêneros, independentemente de qual for”. O texto afirma que essa definição poderia implicar em “gostar de homens e mulheres”, o que supostamente não consideraria pessoas não-binárias e outras identidades de gênero, por isso a necessidade do conceito de pansexualidade.
O argumento é confuso porque dá a entender que são dois gêneros quaisquer, de onde não se pode inferir que é apenas homem e mulher, pois poderiam ser não-binários. De todo modo não faz sentido dizer que seria atração por apenas dois gêneros porque essa não é de fato a definição consensual usada na psicologia.
Ao ler o artigo de Jennifer Vencill e Tania Israel, vemos que elas definem a bissexualidade como oposta à monossexualidade, que é a atração por apenas um gênero. Polissexualidade, plurisexualidade e bissexualidade se refeririam a um mesmo conceito para elas. As pessoas usariam o prefixo pan ao invés de bi apenas para expressar mais enfaticamente o fato de que o gênero das pessoas não influencia na sua sexualidade.
O conceito psicológico de bissexualidade implica em binaridade de gênero? É uma boa pergunta. Antes da atual definição como “atração por mais de um gênero”, a definição era “atração pelos dois sexos”. A definição precisou mudar com o surgimento da teoria de gênero. A expressão “mais de um” foi usada justamente por causa da possibilidade de reconhecimento da existência de mais de dois gêneros.
Mas definir como “atração por mais de um gênero” não significa que qualquer coisa para além da monossexualidade entra necessariamente no conceito de bissexualidade. A atração por mais de um gênero inclui a atração por todos os gêneros, que às vezes é considerada como “atração independente de gênero”, mas ainda não implica necessariamente na rejeição à binaridade de gênero e na ausência de importância do gênero para a atração, características que estão pressupostas no conceito de pansexualidade. Ainda assim, algumas obras sobre sexualidade ainda insistem em sugerir, de modo vago, que a pansexualidade não é necessariamente uma orientação sexual diferente da bissexualidade:
“A pansexualidade às vezes também é incluída na definição de bissexualidade, uma vez que a pansexualidade rejeita a binaridade de gênero e abrange atrações românticas ou sexuais por todas as identidades de gênero” (CARROLL, 2015, p. 322, tradução nossa).
Este equívoco talvez seja causado pelo fato de que a comunidade bi também é chamada de comunidade bi/pan/fluída ou não-monossexual. O uso do “termo guarda-chuva” para abranger todas as sexualidades não-monossexuais é útil para criar laços de solidariedade entre diferentes identidades sexuais que rejeitam a monossexualidade. Porém, a diferença entre elas precisa ser respeitada. Se a definição de pansexualidade fica limitada a “atração independente do sexo ou gênero”, isso faz pensar que ela é a mesma coisa que a bissexualidade de gênero não-específico. Mas como exatamente se distingue uma coisa da outra? Mais especificamente, POR QUE distinguir uma coisa da outra?
Shiri Eisner, ativista e autora do livro “Bi: Notes for a Bisexual Revolution” (2013), afirma que termos como pansexual estão sendo usados no lugar do termo bissexual porque existe uma acusação de que a bissexualidade é “uma palavra binária e, portanto, opressiva”. Ela argumenta que “as alegações de binarismo têm pouco a ver com os atributos reais da bissexualidade ou com o comportamento das pessoas bissexuais na vida real” e diz que essas alegações seriam um método político para manter o movimento bissexual separado do movimento transgênero, pois a crença de que a bissexualidade ignora ou apaga a visibilidade de pessoas transgêneras ou de gênero não-binário é infundada. Este livro tem uma versão em português com previsão de lançamento para novembro de 2020 no Brasil, o que promete reacender essa discussão.
Eu acho que bissexuais e pansexuais podem conviver sem se deslegitimar mutuamente. A verdade é que, dependendo da metodologia que classifica as orientações sexuais, toda sexualidade não-monossexual pode ser classificada como bissexual se nela se usa apenas as distinções entre “mesmo sexo ou gênero” ou “outro sexo ou gênero”. Mas essa metodologia não é aplicável para pessoas que rejeitam a binaridade sexual ou de gênero. Uma pessoa sem gênero ou intersexo que gosta só de homens, por exemplo, é homo, hétero ou bi? A binaridade de gênero ainda está implícita nesse método, e por isso ele não serve para justificar que pan é um tipo de bi se pan já pressupõe a quebra da binaridade.
Bi gosta de vários gêneros, Pan não liga pra gênero. Se a pansexualidade fosse apenas um tipo de bissexualidade, não deveria haver um nome diferente para o outro tipo de bissexualidade, aquela que especifica o gênero? Na verdade, o motivo pelo qual não deveria haver um nome para a bissexualidade de gênero específico é que isso nem deveria existir. Deixa eu explicar.
A bissexualidade enquanto “atração pelo mesmo gênero e gêneros diferentes” ou “atração homossexual e heterossexual” é uma atração por todas as pessoas ou apenas por pessoas definidas como homem ou mulher? Para a APA, a orientação sexual existe num espectro entre o exclusivamente heterossexual e o exclusivamente homossexual, chamado de escala Kinsey. Os três elementos da orientação sexual são: comportamento, que é com quem você transa, desejo sexual, que é com quem você quer transar, e fantasia, que é com quem e como você se imagina transando. O que ocorre quando uma pessoa “perde o interesse” por outra ao ser informada do verdadeiro sexo ou gênero dela é um fenômeno completamente diferente da orientação sexual.
A orientação sexual é definida pela atração que a pessoa afirma ter por pessoas que ela está percebendo com os sentidos, vendo uma foto por exemplo. Não inclui a informação sobre a real identidade de gênero da pessoa, a conta bancária ou o que ela pensa da vida. A informação se limita ao que podemos chamar de “aparência”.
Se não é possível detectar a identidade de gênero só pela aparência das pessoas, como uma pessoa bissexual iria excluir uma pessoa de gênero não-binário, por exemplo, da suas possibilidades de atração sexual? Pessoas de gênero não-binário e sem gênero são lidas a partir de uma estrutura binária de gênero presente na sociedade. Assim como pessoas de gênero binário vão ser lidas como sem gênero numa sociedade em que não há conceito de gênero. A atitude pessoal em relação à diferenciação de gênero ou o pensamento político sobre a binaridade de gênero não é um fator na metodologia clássica.
Não há muitos estudos sobre pansexualidade ainda. Mas sabemos que ela não pode ser tratada como simples bissexualidade de gênero não-específico. Por outro lado, não podemos afirmar que a bissexualidade é menos inclusiva que a pansexualidade. Ambas são igualmente inclusivas em si mesmas, a diferença está em outro nível. A metodologia clássica não distingue “atração por gêneros iguais e diferentes” e a atração “independente do gênero”. É preciso outra metodologia para abarcar pansexuais e pessoas de gênero não-binário. Dizer que você exclui pessoas trans ou não-binárias porque é bi, ou acusar pessoas de excluírem essas pessoas porque elas são bi são atitudes igualmente erradas. Livrar-se da binaridade de gênero e da transfobia é um projeto político, não é uma ideia válida apenas para pessoas pan. Pans enfatizam essa posição política porque partem de um ponto de vista não-binário.
A expressão “sexo ou gênero” como se ambas as coisas fossem intercambiáveis nas definições de sexualidade também gera alguns problemas. O conceito de “expressão de gênero” procurou sanar alguns desses problemas conceituais. Embora o termo “hétero” signifique literalmente “diferente”, essa identidade não é usada quando a pessoa se atrai por pessoas de um gênero não-binário, por exemplo. Do mesmo modo, dificilmente se usa o conceito de homossexual para se referir a uma pessoa que se atrai por pessoas de gênero não-binário. O conceito de “heteronormatividade” procurou abarcar essa problematização, considerando a norma hétero como parte de uma cultura machista, na qual a atração só é VALIDADA quando produzida por alguém cujo sexo é considerado como “oposto” na estrutura da binaridade sexual e de gênero. Mas não quer dizer que o desejo ou a fantasia não ocorram. A crítica à cultura GGGG também segue essa mesma lógica, porém em relação à homossexualidade e a definição de “mesmo sexo ou gênero”.
Quando misturamos sexo com gênero a própria definição de hétero e homo se complicam, uma vez que a binaridade de gênero é uma crença cultural, na prática seria impossível para uma pessoa que se atrai por um determinado “sexo ou gênero” DEIXAR de se atrair por uma pessoa transgênera, não-binária ou sem gênero só de olhar para ela, pois na nossa sociedade as pessoas tem sua aparência definida dentro de um espectro entre masculino e feminino. Assim como não faz sentido dizer que héteros deixam de ser héteros ao se atrair por pessoas trans, não faz sentido dizer que bissexuais deixam de ser bissexuais ao se atrair por pessoas de gênero não-binário ou sem gênero, isso é, a atração bissexual é necessariamente “independente da indentidade de gênero”, assim como qualquer outra orientação sexual. O problema está na imposição de uma normatividade sexual e de gênero, e não na bissexualidade em si.
Ao ler o relato da Dríade Aguiar sobre como ela se descobriu pan quando pensava ser bi, concluo apenas que os motivos para isso são totalmente subjetivos. Não vejo nenhum critério objetivo para diferenciar essas duas sexualidades, nem nesse relato (que não tem esse objetivo), nem na literatura que supostamente teria esse objetivo, recomendado por ela. Isso me levou ao seguinte questionamento: será que eu não vejo a diferença simplesmente porque eu não sou pan? Este questionamento me fez reavaliar minha sexualidade. Desde sempre eu me defini como “aberto a possibilidades”, mesmo antes de usar o termo “bi”. O bi apareceu para mim num momento fortuito de inquietações, num vídeo do YouTube que provocou uma reação emocional: #ProudToBe Bisexual da Ava Gordy.
É um vídeo de 2016 em que ela se assume publicamente como bissexual pela primeira vez, e que me fez ter coragem de me assumir também como bissexual, para mim mesmo e para outras pessoas. Eu já tinha 36 anos de idade e vários anos de vida sexual e romântica ativa, e simplesmente evitava rótulos para minha sexualidade. Nesse vídeo, ela fala sobre a dificuldade de se identificar como lésbica ou como heterossexual e a sensação de liberdade ao usar a palavra “bissexual” para finalmente livrar-se dessa cobrança de se encaixar numa ou noutra coisa. Ela não define o termo, ela simplesmente diz que qualquer quantidade de atração por mais de um sexo pode ser chamado de bissexualidade, SE VOCÊ QUISER. Isso implica que identificar-se como bissexual sequer é uma questão objetiva, definível por uma metodologia científica. A identificação ocorre caso você a tome para si. Isso para mim foi uma libertação e me aproximou definitivamente do movimento LGBT.
Suponha agora que ao invés de ter visto esse vídeo, eu tivesse visto um vídeo de uma pessoa se assumindo como pansexual. Eu não tenho dúvidas que nesse caso eu poderia ter usado a palavra pan ao invés de bi. Porque “se atrair por pessoas, independente do gênero” também é a descrição perfeita do que eu sempre senti. Então não seria eu, na verdade, pansexual? O que me define como bissexual, além de me sentir confortável com essa palavra, que para mim não exclui ninguém e nunca implicou ter definições fixas de gênero?
Minha conclusão é que a diferença entre pansexualidade e bissexualidade na verdade não pode ser definida de modo objetivo, porque a identificação com esses termos é necessariamente subjetiva. Do mesmo modo que a palavra bi tem um significado importante pra mim, a palavra pan tem um significado importante para diversas pessoas, algumas das quais podem ter se sentido desconfortáveis com a palavra bi por uma série de motivos, assim como eu me senti com a ideia de ter que escolher entre homo ou hétero.
O importante é lembrar que NENHUMA sexualidade pode excluir pessoas trans, intersex, não-binárias ou sem gênero por definição, nem mesmo as monossexuais. Esse tipo de exclusão é normalizada por uma cultura machista. Abrir-se para confessar sua atração por pessoas de sexo ou gênero não-normativo não é uma questão de orientação sexual, mas uma questão política.
Em resumo, bis e pans precisam parar de competir. As pessoas precisam reconhecer o valor de pans em enfatizar a não-binaridade de gênero e parar de achar que as pessoas reproduzem binaridade de gênero só por serem bi. Eu espero que o entendimento de que há uma diferença, mas ela não implica em exclusão e sim em percepções diferentes, una os dois movimentos ao invés de separar.
Referências:
CARROLL, Janell L. Sexuality Now: Embracing Diversity. Cengage Learning, 2015.
EISNER, Shiri. Bi: Notes for a bisexual revolution. Seal Press, 2013.
FLANDERS, Corey E. et al. Under the bisexual umbrella: Diversity of identity and experience. Journal of Bisexuality, v. 17, n. 1, p. 1-6, 2017.
HALWANI, Raja et al. (Ed.). The philosophy of sex: contemporary readings. Rowman & Littlefield, 2017.
RICE, Kim. Pansexuality. The international encyclopedia of human sexuality. Reference Reviews, p. 861-1042, 2015.
VENCILL, Jennifer A.; ISRAEL, Tania. Shining a light into the darkness: Bisexuality and relationships. Journal of Bisexuality, v. 33, n. 1-2, p. 1-5, 2018.
Notas:
Para quem quiser se aprofundar no campo científico da diferença entre bis e pan, talvez valha a pena a leitura de um estudo chamado “Regardless of Their Gender”: Descriptions of Sexual Identity among Bisexual, Pansexual, and Queer Identified Individuals, publicado no Journal of Bisexuality volume 17, edição 1.
Revisão: Mauro Zag. Ilustração da abertura: Laerte para o livro Devassos no Paraíso.
SINOPSE – Consumidores amam seus smartphones, tablets e laptops. Uma miríade de novos dispositivos inunda o mercado prometendo ainda mais comunicação, entretenimento 24h por dia e informação instantânea. Mas essa revolução tem seu lado sombrio. De funestas condições de trabalho na China a famílias intoxicadas em NY e aos corredores ultra-tecnológicos do Vale do Silício, o filme revela como até o menor aparelho eletrônico carrega custos fatais para o meio-ambiente e para nossa saúde.
Em 2020, o “Dilema das Redes” viralizou no Netflix (saiba mais), mas este “Death By Design – O Custo do Vício Digital” é um filme tão importante quanto. Uma das perguntas mais pertinentes levantadas pelo docudrama de Jeff Orlovsky é: “Does Silicon Valley have a conscience?“, uma frase que eu tenderia a traduzir com uma certa ênfase no aspecto ético, algo como “O Vale do Silício é capaz de ativar sua consciência ética?”
Reformulando a pergunta, para evitar os equívocos de compreensão vinculados a esta bizarra atribuição de qualidades humanas a um ente geográfico (um vale na Califórnia…), o que queremos saber é se os manda-chuvas e os funcionários das megacorporações capitalistas de Silicon Valley estão dispostas a assumir responsabilidade por tudo aquilo que estão fazendo às escondidas, enquanto as multidões cheiram o pó dos memes, dos likes e dos coraçõezinhos de Instagram.
“Death By Design” também fala de nosso vício, nossa fissura digital, nossa tecnofilia quase toxicômana, mas frisa sobretudo nossa mania de descartar celulares e notebooks. Gente demais troca de celular com uma frequência obscena, caso tenha o poder aquisitivo, sem se importar com o processo produtivo e o que ele pode conter de atrocidade (sejam as crianças congolesas trabalhando em condições análogas à escravidão para a extração dos minérios, sejam os infoproletários precarizados nas sweatshops que estão por trás do lucro da Big Tech…).
O filme coloca ênfase em algo que transcende a vontade individual: o “descarte” de aparelhos eletrônicos não é a mera irresponsabilidade de Fulano ou Sicrano, as bugigangas hi-tech foram de fato feitas para morrer. Assim como as redes sociais são viciantes por design.
Proponho que a gente comece a substituir o termo “obsolescência programada”, que chega a travar muitas línguas, por algo mais fácil de falar: o bagulho é feito pra quebrar. As megacorporações fabricantes de IPhones e PCs querem que o consumidor dê um “upgrade” no seu aparato a cada dois ou três anos: o produto já sai da fábrica com um design de não-durabilidade (que reluto a chamar de “inteligente”, considerando a extensão da estupidez que o capitalismo dissemina com estes seus “designs”).
O documentário dirigido por Sue Phillips (EUA, 2016) não obteve o mesmo buzz que “O Dilema das Redes”, com certeza por não contar com a caixa de ressonância formidável que é hoje uma distribuição padrão Netflix, mas suspeito que também por ser muito mais inquietante e assustador: os crimes corporativos da Big Tech ainda são temas tabu. E a Netflix não tem interesse em revelar isto a um público mais amplo.
“Death by Design” não pega leve na denúncia da devastação ecológica e dos desoladores impactos na saúde pública que estão por trás dos gadgets eletrônicos que hoje nos deliciam e fissuram. A descartabilidade que é essencial ao design dos gadgets nos condena a uma mega poluição de lixo eletrônico. A produção enlouquecida de sempre novos celus e laptops acarreta uma hecatombe ecológica que assola a China e a Califórnia e todos os outros polos de produção. Sem que a imensa maioria de consumidores saiba de fato as condições concretas dos trabalhadores que estiveram diretamente envolvidos naquilo que nos chega marcado com um aparentemente inocente “Made in China”.
Sem querer menosprezar a pandemia de covid 19 e o milhão de vidas humanas que ela já custou, é preciso perguntar ao cidadão da Aldeia Global se ele sabe quantas vidas a mais são ceifadas anualmente não por ação do novo coronavírus, mas por efeito da sanha ecocida do capitalismo globalizado. A poluição atmosférica vomitada para o ar que respiramos desde o advento do industrialismo, no princípio da era geológica do Antropoceno, mata muito mais em um ano do que a covid19 matará em toda a sua carreira. A contaminação do solo e dos cursos d’água com heavy metals é outra faceta desoladora do atual cis-tema necro-capitalista. O patriarcado capitalista hi-tech tenta nos vender a ideia de que Google e o Facebook são simplesmente indispensáveis, que pensar um mundo transformado a ponto de colocar em comum o que eles querem dominado pela Corporação, é uma loucura insana de utopistas, e não uma necessidade histórica inadiável.
Não há futuro vivível neste planeta se permitirmos que 2 ou 3 ou 4 bilhões de seres humanos mergulhem de cabeça no consumo digital mediado por aparatos descartáveis, feitos-pra-morrer, gadgets que em seu processo produtivo e descartativo promovem um exacerbamento da crise ecológica planetária. Como revelado pela matéria do Le Monde Diplomatique, a indústria digital ainda é movida a carvão, a petróleo, a suor infantil derramado nas minas do Congo e a sangue indígena derramado na Bolívia (para que a Big Tech possa se apossar de um oceano de lítio, com a conivência de uma ditadura-títere dos interesses corporativos).
O golpe de Estado contra Evo Morales não se compreende desvinculado da sanha da Big Tech por acesso irrestrito às riquezas minerais essenciais ao futuro dos lucros estratosféricos de quem fabrica o que hoje nos fissura. Para o necrocapitalismo, não há pudores em tratar a Natureza como um lixão, despejando nela os subprodutos tóxicos da produção industrial do aparato digital.
Slavoj Zizek gosta de fazer aquela piada – na verdade, uma parábola ecológica-escatológica – sobre o sujeito que vai ao banheiro cagar e que depois de apertar a descarga passa a crer que sua merda subitamente sumiu do mundo. O delírio do sujeito consiste numa espécie de crença na privada como um aparato nadificador da merda.
Pergunto-me se não tem muito CEO e alto executivo da Big Tech que sofre do mesmo problema, com o agravante que não se trata de merda humana (uma substância aliás bastante útil para fertilização do solo, caso aprendéssemos como civilização a parar de cagar em massa na água). Uma megacorporação caga substâncias tóxicas, como metais pesados, sobre uma Natureza considerada como “fora”, como alheia, como um “away”…
A tese da “externalidade” é o que faz da Corporação um psicopata. Só que o away do sujeito que caga na privada, assim como o away da empresa que pratica dumping, não é de fato o nada, o não-lugar, pois não inventou-se ainda um aparato de nadificação dos nossos resíduos. De modo que o dumping away da corporação, o “alhures” do empresário, é sempre similar a uma mega-diarréia de um super-alguém que acaba cagando sempre na cabeça do aqui de um outro alguém. A merda não vai ao nada mas ao alhures. Um alhures onde sempre há alguém, mesmo que você jure por Deus que não quis cagar no lar de ninguém.
Pior: o idiota corporativo é o tipo de sujeito que senta-se na privada empresarial para se livrar da sujeira que é o subproduto de sua atividade, crente de que fazer desaparecer de sua vista é também expulsar totalmente do mundo (a expressão “out of sight, out of mind” é aqui precisa e oportuna). O ecologista ou o ativista ambiental aparece ao idiota corporativo apenas na figura de uma ameaça a ser silenciada, e não de alguém que poderia auxiliá-lo a dar um salto de percepção prefigurativo de uma revolucionária mudança de conduta. Não, o ecologista é o “ecochato”, e as corporations tornam o mundo melhor com a profusão de opções de sua high tech fun…
Neste processo de idiotia, de analfabetismo ecológico, talvez haja lguns casos de criminalidade sócio-ambiental deliberada (e depois mascaradas com perfumarias e lobbystas… algo do tipo, grita o CEO: “chamem o departamento de marketing, acabamos de cometer mais um ecocídio!”). O agente corporativo não só caga seu lixo nas cabeças de alguém, humanos e não-humanos; ele suja as águas e os ares, bens comuns aos quais as futuras gerações deveriam ter o direito.
Estamos negando a elas, pessoas do futuro, crianças do porvir, este direito a um mundo vivível. Com a descartabilidade widespread, as leis capitalistas de obscolescência programada, a indústria digital delira sua húbris de onipotência, sem nem suspeitar que a “intrusão de Gaia” (Stengers) nesta História que tratou a Natureza como externalidade já está em pleno curso. E que a Big Tech será também tumultuada e posta em crise pelas catástrofes climáticas de que nosso futuro está grávido.
Em “Um Apartamento em Urano”, Paul Beatriz Preciado escreve: “Pelo menos desde a Revolução Industrial, nossa subespécie, o Homo sapiens sapies, converteu-se na maior força de transformação do ecossistema terrestre. O Antropoceno não se define apenas pelo nosso protagonismo, mas também pela extensão à totalidade do planeta das tecnologias necropolíticas que nossa espécie inventou: as práticas capitalistas e coloniais, as culturas do carvão e do petróleo, a transformação do ecossistema em recurso explorável, que provocaram uma onda de extinção animal e vegetal e o progressivo aquecimento planetário. Para transformar nossa relação com o planeta Terra numa relação de soberania, de dominação e de morte foi preciso iniciar um processo de ruptura, de externalização, de desafeição. Erotizar nossa relação com o poder e deserotizar nossa relação com o planeta. Convencermo-nos de que estávamos fora, de que éramos outro.” (PRECIADO, p. 116)
Meu temor é que este delírio antropocêntrico do cis-tema necrocapitalista do feito-pra-morrer dure ainda por tempo demais; e que a crença de estarmos fora da Natureza, pois acima dela, possa se converter na húbris suicidária que arrasta o Homo sapiens no rumo da extinção. Nossa agonia pode durar séculos. Podemos demorar um milênio para cairmos dos mais de 7 bilhões para uma população de 10% disso… Poderemos seguir sendo tantos se não acordarmos para o delírio perigoso da crença numa economia do infinito que está imbricada num planeta finito?
Se a Big Tech não for movida por uma ética biocêntrica e por uma responsabilidade pelo futuro da vida neste planeta, estará sendo parte não da solução mas do problema. E nós, usuários, estaremos sendo cúmplices da hecatombe ao invés de agentes da transformação biocêntrica, animalista, pós-antropocêntrica, de que urgentemente necessitamos (nós, os vivos, e também e sobretudo os não-humanos, que são a maioria e constituem o resultado supremo da Evolução… não nós, mas todos eles, fauna e flora e águas e ares reunidos.)
Como consumidores do que a Big Tech fabrica, necessitamos também com urgência acordar para tudo que está implicado em nosso consumo (às vezes descerebrado) de celulares, PCs, tablets, ipods, feeds, mídias sociais, videogrames, entretenimentos Candy Crúshicos, dentre outras coisas “tão Black Mirror”.
Pois a História pregressa sugere, ao menos àqueles atentos à Benjaminiana perspectiva dos vencidos, que somente uma pressão de baixo pode trazer abaixo o castelo sombrio dos CEOs ecocidas mancomunados com necrocapitalistas para sacrificar a Natureza e a Vida no altar sinistro dos lucros sem fim.
Digo ainda, para finalizar: ainda que muitos queiram hoje decretar a morte de Marx, o marxismo prossegue quintessencial e indispensável enquanto método de compreensão do sistema material de produção de mercadorias.
Estaríamos de fato condenados à derrota caso não fôssemos capazes de compreender o que está por trás de nossa adicção digital, ou seja, um sistema produtivo capitalista com linhas-de-montagem repletas de robôs em que os infoproletários são condenados a um trampo de Sísifo e eventualmente podem ser reduzidos a pedaços por uma explosão ou ceifados precocemente por um câncer corporativamente induzido.
Os que decretam a morte de Marx são na verdade a nova encarnação dos que cagam de medo do marxismo, dos que não dormem direito à noite com a assombração do comunismo. O comunismo que em suas próximas encarnações virá também ultra-tecnizado, mas recolocando no commons o que o necroliberalismo corporativo cercou.
Não conheço exemplo melhor de uma boa utilização das ferramentas do materialismo histórico-dialético à conjuntura do Big Tech do que o Dossiê do Instituto Tricontinental – “o IPhone e a taxa de exploração”: o documento, disponível gratuitamente em PDF, “analisa o processo de produção contemporâneo do iPhone da Apple. Vamos de uma visão da produção do aparelho ao funcionamento interno do lucro e da exploração. Nos interessamos não apenas pela Apple e pelo iPhone, mas particularmente na análise marxista da taxa de exploração em jogo na produção de aparelhos tão sofisticados. É necessário, acreditamos, aprender a calcular a taxa de exploração para que possamos saber precisamente quanto os trabalhadores e trabalhadoras contribuem com a geração de riqueza social total a cada ano.”
VOLTAIRE – “Tratado Sobre a Tolerância” (Ed. Martins Fontes. Tradução: Paulo Neves. São Paulo,1ª ed, 1993)
Devemos tolerar os intolerantes, ainda que saibamos que “a intolerância cobriu a terra de chacinas”? (pg. 30) E quem seria para a humanidade uma melhor mestra de tolerância senão ela, a filosofia, musa que recebe tantos dos louvores de Voltaire?
Voltaire (1694 – 1778), este pensador que Victor Hugo caracterizava como um “jato contínuo de lucidez”, não economiza nos elogios que faz ao bom senso que a filosofia traz, possibilitando-nos transcender as estreitezas em que nos encerram os fanatismos dogmáticos e as intolerâncias homicidas.
Este luminar do Iluminismo lança numerosos convites aos humanos para que ajam humanamente: “faz muito tempo que praticamos os verdadeiros princípios da agricultura, quando começaremos a praticar os verdadeiros princípios da humanidade?” (pg. 63).
Alega Voltaire que a filosofia é agente de humanização, que nos distancia da barbárie: “A filosofia desarmou mãos que a superstição por muito tempo havia ensanguentado; e o espírito humano, ao despertar de sua embriaguez, espantou-se com os excessos a que o fanatismo o havia levado…” (pg. 24)
Ao que parece, ao raiar do século 21 depois de Cristo, o “espírito humano” não cessa de recair na embriaguez do fanatismo e da intolerância – quantos são os mortos na Faixa de Gaza, quantos no Afeganistão e no Iraque? Alguém por aí conseguiu não perder a conta?
Enquanto isso, a filosofia não cessa de se espantar com os excessos do fanatismo – ao menos aquelas filosofias que se esquivam do dogmatismo e procuram atingir a liberdade do pensar, ao invés de serem meras “defesas manhosas de preconceitos batizados de verdades”, como diz Nietzsche (Além de Bem e Mal, #5). Um viva à toda filosofia que deixa as portas bem abertas para a suspeita, a experimentação, a multiplicidade, a diversidade de perspectivas, a revolta contra a fraude, o engajamento em prol de uma humanidade menos sectária e fratricida!
A filosofia, segundo os não-filósofos, que aliás são a amplíssima maioria neste mundo, é vista por muitos como uma atividade improdutiva, beirando a inutilidade: é o caso de Hermann Kafka, ao saber dos planos que tinha seu filho – Franz Kafka – de estudar filosofia, e que teria reagido com o desdém do comerciante que considera a filosofia somente “um modo extravagante de passar fome.” (cf. PAWEL, Ernst: O Pesadelo da Razão).
Ou então a filosofia é tida como algo de acadêmico e formal, difícil e hermético, que se faz detrás dos muros das universidades ou no conforto de bibliotecas climatizadas – e não, como alguns filósofos quiseram, uma força ativa na sociedade ao espalhar compreensão mais ampla e assim desfazer os cabrestos reinantes…
Voltaire é tão entusiasmante de ler pois filosofa como se a filosofia tivesse força transformadora. E quem consegue duvidar que tem, de fato, ao ler as palavras tão cheias de vivacidade e ímpeto que ele nos legou?
Voltaire escreve seu Tratado Sobre a Tolerância sob o impacto de um acontecimento que ele testemunhou em Toulouse. Nesta cidade francesa, pelos idos de 1762, continua-se a celebrar anualmente uma festa que Voltaire considera execrável: “festa cruel, festa que deveria ser abolida para sempre, na qual um povo inteiro agradece a Deus em procissão e felicita-se por ter massacrado, há duzentos anos, quatro mil de seus concidadãos” (pg. 62).
Duzentos anos antes, em 1562, os reis católicos franceses e as massas por eles manobradas haviam massacrado os protestantes pela França afora. A História jamais pôde esquecer a sanguinolência do Massacre da Noite de São Bartolomeu, “da qual não havia nenhum exemplo nos anais do crime” (pg. 22), quando Paris foi palco de uma colossal matança dos protestantes “huguenotes” – como narrado por Alexandre Dumas em A Rainha Margot (romance já adaptado para o cinema com maestria por Patrice Chéreau). Aponta-se que o número total de pessoas mortas pelos católicos no genocídio dos huguenotes de 1562 esteja entre 30 e 100 mil mortos.
A indignação voltairiana atinge ápices diante dos discursos dos apologistas da Noite de São Bartolomeu e outros massacres: “Se a perseguição contra aqueles com quem disputamos fosse uma ação santa, cumpre admitir que o que matasse o maior número de heréticos seria o maior santo do paraíso… logo, de dois assassinos iguais em piedade, o que tivesse estripado 24 mulheres huguenotes grávidas deve ser glorificado em dobro em relação ao que só tivesse estripado 12.” (p. 72) Este raciocínio torto e perverso, apesar de Voltaire escrevê-lo em tom de pilhéria, é mais que mera piada – e poucos autores na história da filosofia são mais versados em chacinas do que Voltaire, que conhece inúmeros exemplos do “furor das seitas que fez perecer milhares” (p. 149).
É por isso que Voltaire não consegue conter estes arroubos de indignação: “Digo-o com horror, mas com verdade: nós, cristãos, é que fomos perseguidores, carrascos, assassinos! E de quem? De nossos irmãos. Nós é que destruímos cidades, com o crucifixo ou a Bíblia na mão, e não cessamos de derramar sangue e de acender fogueiras, desde os tempos de Constantino…” (pg. 62)
Voltaire, como se sabe, não era ateu – e até mesmo dá amostras de ateofobia em certos momentos, ao referir-se por exemplo àqueles que “inclinam-se para o ateísmo e tornam-se depravados” (pg. 64). Ora, desde quando o ateísmo acarreta necessariamente a “depravação”? Não é esta uma tese de padres e monges, que demonstra um preconceito contra os tão perseguidos dos descrentes?
De qualquer modo, Voltaire considera este “um péssimo argumento”: “os católicos liquidaram um certo número de huguenotes, e os huguenotes, por sua vez, assassinaram um certo número de católicos, logo, não existe Deus” (pg. 65). Em outros termos: não se julga da inexistência de Deus a partir das insanidades de seus diferentes fã-clubes. Os fiéis cometem horrores, mas nenhum destes horrores testemunha suficientemente em prol do ateísmo – e eis a profissão de fé de Voltaire:
“Eu concluiria afirmando que existe um Deus que, após esta vida passageira, na qual o desconhecemos tanto, e cometemos tantos crimes em seu nome, dignar-se-á a consolar-nos de tão horríveis infortúnios: pois, considerando as guerras de religião, os quarenta cismas dos papas, quase todos sangrentos; as imposturas, quase todas funestas; os ódios irreconciliáveis acesos pelas diferentes opiniões; considerando todos os males que o falso zelo produziu, os homens há muito têm tido o seu inferno nesta vida” (pg. 65).
Mas não seria um argumento fraco querer derivar do inferno terrestre, por sua mera existência atestada pelos fratricídios, parricídios e genocídios que atravessam a história humana, a existência de um Deus consolador de infortúnios? Em outros termos: a existência do mal e do sofrimento é garantia que um céu-de-recompensa aguarda a todos os sofredores?
O essencial em Voltaire, concordemos ou não com sua crença em um Deus que “terá a dignidade de consolar-nos de tão horríveis infortúnios”, é que encontram-se em suas páginas algumas vívidas descrições de eventos históricos onde a intolerância e o fanatismo conduziram a grandes catástrofes. O “princípio universal” da moral voltairiana, como expressa no Tratado Sobre a Tolerância, aquele princípio moral que vale “em toda a terra”, seria o “não faz o que não gostarias que te fizessem.” E Voltaire se apressa em adicionar, como contra-exemplo, a atitude de muitos fanáticos religiosos, que reivindicam aos brados seu direito à intolerância: “Crê, ou te abomino! Crê, ou te farei todo o mal que puder! Monstro, não tens minha religião, logo não tens religião alguma! Cumpre que sejas odiado por teus vizinhos, tua cidade, tua província.” (pg. 37-38)
Ora, a história está repleta – e também o estão as páginas de Voltaire e Michelet – de casos de pessoas que foram taxadas de “hereges” e que, “como atacavam dogmas muito respeitados, a primeira resposta que lhes deram foi jogá-los na fogueira.” (p. 20) Quantos Giordanos Brunos não foram queimados vivos, junto com suas obras? E quem um dia poderá calcular o valor inestimável de tudo o que se perdeu com o incêndio da Biblioteca de Alexandria?
Se a intolerância fosse um direito, isso seria a legitimização da barbárie. “Caberia então que o japonês detestasse o chinês, o qual execraria o siamês; o mongol arrancaria o coração do primeiro malabar que encontrasse; o malabar poderia degolar o persa, que poderia massacrar o turco – e todos juntos se lançariam sobre os cristãos, que por muito tempo devoraram-se uns aos outros.” (pg. 38) Quadro sinistro, e tão mais assustador pois se assemelha ao que ocorre de fato com frequência espantosa na história humana. “O direito à intolerância é, pois, absurdo e bárbaro; é o direito dos tigres, e bem mais horrível, pois os tigres só atacam para comer, enquanto nós exterminamo-nos por parágrafos.” (p. 38)
Apenas mais dois exemplos de sinistra intolerância homicida narrados por Voltaire: 1) “Na guerra contra os madianitas, Moisés ordenou que fossem mortas todas as crianças do sexo masculino e todas as mães, e que os despojos fossem partilhados. Os vencedores encontraram 675 mil ovelhas, 72 mil bois, 61 mil burros e 32 mil meninas; fizeram a partilha e mataram o resto.” (p. 77); 2) “Uma seita na Dinamarca sabia que todos os recém-nascidos que morrem sem batismo são condenados e que os que têm a felicidade de morrer imediatamente após receberem o batismo gozam da glória eterna. Saíam, pois, a estrangular os meninos e meninas recém-batizados que encontrassem. Certamente, era fazer-lhes o maior bem possível: a uma só vez eram preservados do pecado, das misérias desta vida e do inferno, e enviados infalivelmente ao céu…” (p. 111)
Já o cristianismo, conforme o descreve Voltaire, é já em sua gênese uma religião sectária, que emerge como uma espécie de facção do judaísmo, como um ramo que se separa do tronco da tradição hebraica, ganhando com isso a intensa inimizade dos judeus: “os primeiros cristãos tinham como inimigos apenas os judeus, dos quais começavam a separar-se. Sabemos o ódio implacável que todos os sectários sentem pelos que abandonam sua seita.” (p. 46)
“Jesus submeteu-se à lei de Moisés desde sua infância até sua morte. Circuncidaram-no no oitavo dia, como todas as outras crianças. Se, depois, foi batizado no Jordão, tratava-se de uma cerimônia consagrada entre os judeus… Jesus observou todos os pontos da lei: festejou todos os dias de sabá; absteve-se das carnes proibidas; nascido israelita, viveu constantemente como israelita. (…) Levado ao governador romano da província e acusado caluniosamente de ser um perturbador da ordem pública, que dizia não ser preciso pagar o tributo a César e que, além do mais, se dizia rei dos judeus. É da maior evidência, portanto, que foi acusado de um crime de Estado.” (p. 94)
É até defensável que Jesus Cristo, como indivíduo, não tenha “estabelecido leis sanguinárias, ordenado a intolerância, mandado construir os cárceres da Inquisição, instituído os carrascos dos autos-de-fé” (87). Mas, como Nietzsche provoca, “o único cristão verdadeiro morreu na cruz”; e a religião que se construiria sobre o martírio de Jesus crucificado se desenvolverá envolvida em guerras sectárias infindáveis, e assim o permanecerá pelos séculos, com um derramamento de sangue que prosseguia na época de Voltaire – como o prova o caso Calas.
O ódio que os judeus tinham por São Paulo, aliás, é bem simbólico deste conflito de sectarismos: “Os Atos dos Apóstolos nos mostram que, tendo São Paulo sido acusado pelos judeus de querer destruir a lei mosaica em nome de Jesus Cristo, São Tiago propôs a São Paulo que raspasse a cabeça e fosse purificar-se no templo com quatro judeus… Paulo, cristão, foi portanto cumprir todas as cerimônias judaicas durante 7 dias; mas os 7 dias ainda não haviam transcorrido quando judeus da Ásia o reconheceram e, vendo que ele havia entrado no templo, acusaram-no de profanação. Paulo foi preso, levado ante o governador Félix, em seguida enviado ao tribunal… Os judeus em coro exigiram sua morte.” (pg. 45)
Há em todo fanatismo um elemento “imperialista”, um desejo de conversão do mundo inteiro à sua crença, como se fosse possível uma uniformização religiosa da humanidade, algo que Voltaire com toda razão afirma ser quimérico e insano: “Seria o cúmulo da loucura pretender fazer todos os homens pensarem de uma maneira uniforme sobre a metafísica. Seria bem mais fácil subjugar o universo inteiro pelas armas do que subjugar todos os espíritos de uma única cidade.” (p. 121)
Como remédio contra os sectarismos fanáticos e homicidas, que só conseguem lidar com o diferente na base da exclusão ou da extinção, que querem o outro morto ou torturado se este não compartilha da mesma fé, Voltaire receita o bálsamo de um reconhecimento lúcido de nossa posição no seio da Natureza:
A natureza diz a todos os homens: “fiz todos vós nascerem fracos e ignorantes, para vegetarem alguns minutos na terra e adubarem-na com vossos cadáveres. Já que sois fracos, auxiliai-vos; já que sois ignorantes, instruí-vos e tolerai-vos. Ainda que fôsseis todos da mesma opinião, o que certamente jamais acontecerá, ainda que só houvesse um único homem com opinião contrária, deveríeis perdoá-lo, pois sou eu que o faço pensar como ele pensa. Eu vos dei braços para cultivar a terra e um pequeno lume de razão para vos guiar; pus em vossos corações um germe de compaixão para que uns ajudem os outros a suportar a vida. (…) Sou eu apenas que vos une, sem que o saibais, por vossas necessidades mútuas, mesmo em meio a vossas guerras cruéis tão levianamente empreendidas, palco eterno das faltas, dos riscos e das infelicidades. (…) Com minhas mãos plantei os alicerces de um prédio imenso; ele era sólido e simples, todos os homens nele podiam entrar com segurança; quiseram acrescentar os ornamentos mais bizarros, mais grosseiros e mais inúteis; e o prédio começa a desmoronar por todos os lados; os homens pegam as pedras e as atiram uns contra os outros; grito-lhes: Parai, afastai esses escombros funestos que são vossa obra e habitai comigo em paz no prédio inabalável que é o meu. (pg. 142)
Contra a megalomania de todas as religiões monoteístas, que são todas antropocêntricas e concebem o Homem no centro da Criação, criatura predileta do Criador, cabe frisar nossa pequenez cósmica e o delírio que há em seitas que, apesar de minúsculas no espaço-e-no-tempo, tem a pretensão descabida de serem as beneficiárias principais das graças do Todo-Poderoso. “Este pequeno globo, que não é mais do que um ponto, gira no espaço como tantos outros globos; estamos perdidos nessa imensidão. O homem, com cerca de um metro e sessenta de altura, é seguramente algo pequeno na criação. Um desses seres imperceptíveis diz a alguns de seus vizinhos: Escutem-me, pois o Deus de todos esses mundos me falou! Há 900 milhões de pequenas formigas como nós sobre a terra, mas apenas o meu formigueiro é bem-visto por Deus; todos os outros lhe causam horror desde toda a eternidade; meu formigueiro será o único afortunado, e todos os outros serão desafortunados.” (p. 126)
Nietzsche, que admirava tanto Voltaire que dedicou seu Humano Demasiado Humano ao grande iluminista francês no centenário de sua morte, re-utiliza a metáfora de formiga em um aforismo brilhante de O Viajante e Sua Sombra, onde o homem é descrito como “O Comediante do Mundo” e a “inventividade espiritual da mais vaidosa criatura, o inventor do inventor”, é exposta com a verve satírica e o faro crítico características do filósofo da “morte de Deus”:
“O homem, comediante do mundo – Deveria haver criaturas mais espirituais do que os homens, apenas para fruir inteiramente o humor que há no fato de o homem se enxergar como a finalidade da existência do mundo. (…) Os astrônomos, que às vezes podem realmente dispor de um panorama distanciado da Terra, dão a entender que a gota de vida no mundo é sem importância para o caráter geral do tremendo oceano do devir e decorrer; que um sem-número de astros tem condições similares às da Terra para a geração da vida; que a vida, em cada um desses astros, em relação ao tempo de sua existência, foi um instante, um bruxuleio, com longuíssimos lapsos de tempo atrás de si – ou seja, de modo algum a finalidade e intenção derradeira de sua existência. Talvez uma formiga, numa floresta, imagine ser a finalidade e intenção da existência da floresta, de forma tão intensa como fazemos ao espontaneamente ligar o fim da humanidade ao fim do planeta, em nossa fantasia; e ainda somos modestos, se nos detemos nisso e não organizamos um crepúsculo geral dos deuses e do mundo, acompanhando o funeral do último homem. Mesmo o mais imparcial astrônomo não pode ver a Terra sem vida senão como o luminoso túmulo flutuante da humanidade.”
(O Viajante e Sua Sombra, aforismo 14, pg. 171 e 172. Ed. Cia das Letras. Trad. Paulo César de Souza. Em “Humano Demasiado Humano Volume II”)
De acordo com o pensador franco-argelino Louis Althusser (1918 – 1990), podemos considerar a filosofia como uma longa guerra, que já se estende por mais de 2.600 anos, que opõem os “exércitos” intelectuais do Idealismo e do Materialismo:
“Os idealistas muitas vezes riram da tese de Friedrich Engels segundo a qual a história da filosofia inteira nada mais é do que a luta perpétua do idealismo contra o materialismo. Na realidade, raramente o idealismo se mostrou com seu próprio nome, ao passo que o materialismo, que não levava a melhor, não avançava mascarado, e sim se declarava… Na realidade, toda filosofia é tão somente a realização, mais ou menos bem-sucedida, de uma das duas tendências antagônicas: a tendência idealista e a tendência materialista. E é em cada filosofia que se realiza não a tendência, e sim a contradição entre as duas tendências.” (ALTHUSSER: 2019, p. 213-214).
Não se trata de afirmar que tenha existido ou possa existir alguma filosofia que seja “pura”, totalmente idealista ou totalmente materialista. Como dizia Hélio Oiticica, repetido por Torquato Neto, “a pureza é um mito” – e em filosofia não é diferente. Na verdade, como diz Althusser, cada filosofia específica expressaria em seu âmago a contradição entre as duas tendências antagônicas na trincheira das batalhas filosóficas, pendendo ora para o pólo idealista, ora para o pólo materialista, num confronto sem fim entre estas duas posições fundamentais.
Um exemplo histórico interessante ilustra a tese althusseriana: trata-se da oposição, na Grécia antiga, entre a escola inaugurada por Demócrito e continuada por Epicuro (o atomismo materialista), em oposição à escola de Platão, o mais célebre discípulo de Sócrates e principal ideólogo do Idealismo na filosofia grega da era clássica.
Nos dias atuais, qualquer um que passeie por uma biblioteca repleta de clássicos filosóficos poderá notar com facilidades que as prateleiras estão repletas de livros escritos por Platão (e por seu pupilo Aristóteles): Platão nos legou milhares de páginas contendo dezenas de diálogos filosóficos, quase sempre protagonizados por Sócrates. Mas não se encontrará por ali, nesta excursão de pesquisa bibliográfica, a mesma profusão de obras escritas por Demócrito e Epicuro. Todavia, não é verdade que estes filósofos materialistas tenham escrito menos do que Platão. Tanto Demócrito quanto Epicuro foram escritores proeminentes, de produção imensa: hoje se atribui ao primeiro a autoria de cerca de 80 tratados, e ao segundocentenas de cartas, tratados e livros – nada menos do que 37 tomos foram devotados por Epicuro exclusivamente à física materialista.
Se hoje sabemos em certa minúcia a respeito do epicurismo antigo, boa parte do mérito é devido ao poeta romano do séc. 1 antes de Cristo, Lucrécio, voraz leitor e estudioso de Epicuro, cujo poema De Rerum Natura contêm a mais bem-acabada síntese do materialismo epicurista, tendo renascido durante a Renascença. Naquela época em que escreveu Lucrécio, os escritos epicuristas ainda não haviam sido “purgados” da face da Terra pelas censuras e fogueiras das gangues idealistas. O próprio “Jardim” ainda prosseguia com seus trabalhos em Atenas, levando adiante a mensagem de sabedoria de seu fundador.
Tudo indica que ocorreu com a obra dos materialistas originários da Humanidade, Demócrito e Epicuro, uma destruição deliberada imposta a seus livros pelo campo antagônico a eles na guerra filosófica – uma história que os idealistas não gostam de contar, ou melhor, preferem censurar. Assim não precisam admitir que a transformação do Idealismo em ideologia dominante se deve não aos seus méritos intrínsecos, mas à censura brutal da voz e à queima impiedosa dos livros de seus antagonistas. Eis a tese exposta por Althusser:
“Nas obras de Platão há uma espécie de fantasma, o do materialista Demócrito, cujos 80 tratados (obra gigantesca!) foram destruídos, e em circunstâncias estranhas, o que faz pensar numa destruição voluntária, numa época em que era difícil multiplicar os exemplares de uma obra. É possível, portanto, que a filosofia tenha começado com Demócrito, ou seja, pelo materialismo… E seria contra essa ameaça que Platão teria construído sua máquina de guerra, explicitamente dirigida contra os ‘amigos da terra’, entre os quais é fácil reconhecer os adeptos de Demócrito. Seja como for, e aqui estamos vendo um exemplo concreto da seleção implacável que a ideologia dominante opera, quem permaneceu não foi Demócrito, e sim Platão, e com ele a filosofia idealista dominou toda a história das sociedades de classes, reprimindo ou destruindo a filosofia materialista (não é por acaso que temos apenas fragmentos de Epicuro, o maldito).” (ALTHUSSER: 2019, p. 226)
A tese de uma duradoura guerra entre Idealismo e Materialismo se fortalece com as pesquisas de Stephen Greenblatt, magistral pesquisador inglês vencedor do Pulitzer. Em seu “A Virada – O Nascimento do Mundo Moderno”, ele fez a crônica do acidentado destino histórico desta que é uma mais importantes obras-primas materialistas de todos os tempos: o poema “De Rerum Natura” (Da Natureza das Coisas) de Lucrécio. Saiba mais em A Casa de Vidro: https://wp.me/pNVMz-2hR ehttps://wp.me/pNVMz-1Q2.
A verdade é que os escritos de Lucrécio estiveram também muito perto de desaparecer completamente e sem deixar rastros, o que representaria também um naufrágio catastrófico de toda a doutrina Epicurista. Afinal de contas, foi o belo poema lucreciano que serviu como uma espécie de bote salva-vidas que conduziu a doutrina epicurista, através dos tumultuados mares da história, até nossos dias.
A compreensão da história da filosofia, portanto, jamais pode se fazer a contento caso a gente não atente para elementos exteriores à filosofia – em especial, a História e a Economia Política (âmbitos que, como ensina o materialismo dialético, estão sempre marcados pela luta de classes). Seria ingênuo e desonesto acreditar que os filósofos estariam imunes aos conflitos ideológicos de suas épocas, que pudessem pensar imersos numa falaciosa “neutralidade” política, indiferentes em relação à luta de classes e aos conflitos de poder. “Em última instância”, opina Althusser, a filosofia é “luta de classe na teoria” (p. 235).
Um outro exemplo histórico do mundo grego é a oposição ferrenha entre o aristocrata e monarquista Platão, que propunha que a pólis ideal fosse governada pelo “filósofo-rei”, e o cínico anarquista Diógenes de Sínope, aquele que tinha tamanho desprezo pela classe dominante que, diante do imperador Alexandre o Grande, que o interpelava, mandou que ele saísse da frente de seu Sol.
Aí não estamos apenas diante de uma diversidade de posturas diante da vida, de valores éticos antagônicos, mas da luta de classes encarnada em dois filósofos que estão em lados opostos da trincheira. Tanto é assim que uma anedota narra que Diógenes um dia invadiu a Academia de Platão, segurando nas mãos uma galinha depenada e gritando “eis aqui o homem para Platão!”. Era uma brincadeira com a definição abstrata de homem que o platonismo se deleitava em seguir – a de “bípede implume”.
A galinha de Diógenes é prova de que, em filosofia, a luta entre teorias pode às vezes levar ao ringue-de-debates não apenas argumentos expressos em palavras, mas galináceos que são a prova viva da impropriedade da abstração idealista tão idolatrada pela seita platônica.
Depois desta breve excursão pelo passado, é preciso dizer que Althusser está interessado sobretudo pelo futuro da filosofia. Não se trata de apenas fazer uma arqueologia da filosofia pretérita para apontar, aqui e ali, elementos que comprovem o quanto a luta de classes marca o caminhar labiríntico dos debates filosóficos.
Althusser, seguindo a tese 11 das “Teses sobre Feuerbach” de Karl Marx, sabe que os pensadores que nos precederam interpretaram o mundo de várias maneiras, mas o que interessa de fato é transformá-lo. E a filosofia pode – e até mesmo deve! – servir como uma arma da revolução que se levanta para romper com os horrores e injustiças produzidos pela sociedade baseada na dominação de classe. Um filósofo não pode ficar apático e indiferente diante de uma sociedade sob o domínio econômico, político e ideológico de uma burguesia capitalista que age como exploradora brutal e impiedosa dos assalariados que espolia.
“Vemos delinear-se o futuro de uma prática da filosofia que, ao mesmo tempo que reconhece a existência do campo conflituoso dela e suas leis, se propõe a transformá-lo para dar à luta de classe proletária, se ainda houver tempo, uma ‘arma para a revolução’. Vemos também que essa tarefa não pode ser obra de um único homem, nem tarefa com tempo limitado, e sim uma tarefa infinita, continuamente renovada pelas transformações das práticas sociais e a ser continuamente retomada, para melhor ajustar a filosofia a seu papel unificador, sempre evitando as armadilhas da ideologia e da filosofia burguesas.
Por fim, vemos que nessa tarefa se afirma continuamente o primado da prática sobre a teoria, visto que a filosofia nunca é mais do que o batalhão da luta de classe na teoria e, portanto, em última instância, ela está subordinada à prática da luta revolucionária proletária, mas também às outras práticas.
Mas reconhecemos na filosofia algo completamente diferente da simples ‘serva da política proletária’: uma forma de existência original da teoria, voltada para a prática, e que poderá possuir uma verdadeira autonomia se sua relação com a prática política for constantemente controlada pelos conhecimentos produzidos pela ciência marxista das leis da luta de classes e de seus efeitos.” (p. 252 – 253)
Obviamente, os idealistas enxergarão nesta postura Althusseriana uma recriminável “militância” que tornaria o filósofo um servidor da revolução proletária e do marxismo cultural, quando o ideal, segundo os idealistas, seria a do pensador “neutro” que se alça, pela via das abstrações, às verdades eternas e absolutas que a Razão pode acessar e que habitam em “Cucolândia das Nuvens” (segundo a expressão jocosa de Aristófanes, recuperada por Nietzsche).
O que de fato Althusser está dizendo é que não há possibilidade de neutralidade em filosofia e que ele, o ser humano específico Louis, nascido na Argélia, estudioso do marxismo, não quer avançar mascarado nem fazer pose de neutro. Quer mostrar-se explicitamente como pensador a serviço da prática revolucionária que rompe com as injustiças da sociedade de classes. Pois esta ruptura só é possível quando rompe-se, em massa, com a magia horrenda da ideologia da classe dominante, desejosa apenas de uma filosofia que lhe lamba as botas e que não prejudique o avanço da concentração de capitais em suas contas bancárias e bolsas de valores.
Neste belo livro que a editora WMF Martins Fontes publica no Brasil em 2019, Althusser encerra suas preleções de “iniciação à filosofia para os não-filósofos” dizendo algo de muito atual: “numa época em que a burguesia desistiu de produzir até mesmo seus eternos sistemas filosóficos para confiar seu destino ao automatismo dos computadores e dos tecnocratas, numa época em que é incapaz de propor ao mundo um futuro pensável e possível, o proletariado pode aceitar o desafio: devolver vida à filosofia e, para libertar os homens da dominação de classe, fazer da filosofia uma arma para a revolução.” (ALTHUSSER: 2019, p. 254)
MARX: ATRAVESSANDO A FRONTEIRA ENTRE IDEOLOGIA E CIÊNCIA
Louis Althusser (1918-1990), pensador francês de origem argelina, foi um dos filósofos franceses do século XX que melhor enfatizou e defendeu a importância crucial do marxismo para a nossa compreensão do mundo (e, dentro deste, da história das sociedades reais e concretas):
“A fronteira que separava a ideologia da teoria científica foi transposta por Karl Marx“, escreveu Althusser em 1965, e “esse grande feito e essa grande descoberta estão consignados em obras, inscritos no sistema conceitual de um conhecimento cujos efeitos transformaram pouco a pouco a face do mundo e sua história. Não devemos, não podemos um instante sequer renunciar ao benefício dessa insubstituível aquisição, ao benefício de seus recursos teóricos que ultrapassam em riqueza e em potencial o próprio uso que deles foi feito até aqui.” (ALTHUSSER, pg. 207)
Voltando ao início dos anos 1960, a Revista CULT rememora, no artigo “Althusser: Leitor de Marx”, alguns episódios desta aproximação intelectual-prática de Althusser em relação ao marxismo, ou seja, à filosofia materialista histórico-dialética que também tanto interessara, no cenário francês, a Jean-Paul Sartre e Merleau Ponty:
“O ano era 1961. Jovens estudantes da École Normale Supérieure de Paris, intrigados com a leitura de artigos de um então desconhecido professor marxista, decidiram bater à porta de seu gabinete com um pedido de orientação teórica e filosófica. A academia vivia um período de ebulição e expectativa, ao lidar com o trauma aberto na França pela guerra na Argélia e com as notícias vindas da revolução comandada por Fidel Castro em Cuba.
O autor dos textos que provocara o grupo de estudantes era Louis Althusser, francês de origem argelina, então com pouco mais de 40 anos, ex-combatente durante a Segunda Guerra e desde 1948 membro do Partido Comunista. Intelectual que até o começo dos anos 1960 voltara suas preocupações ao estudo da interface entre cristianismo e marxismo, e sobretudo à crítica de Hegel no pensamento de Marx, ele então comandava seminários de estudos marxistas no famoso prédio da rua d’Ulm.
Professor algo obscuro, Althusser começaria a ingressar naquele momento no panteão histórico das ciências sociais. Com os primeiros artigos de Por Marx, que seriam editados em livro somente em 1965, ele já se desenhava como um dos intérpretes contemporâneos mais influentes do autor de ‘O capital'”. (COSTA, Luis. Revista Cult, Outubro/2017. Link na bibliografia).
https://www.amazon.com.br/dp/8526812327Leitura crucial para compreender os debates políticos, econômicos, culturais e ideológicos que envolveram a filosofia marxista francesa nos anos 1960, o livro Por Marx (editora da Unicamp), marcou época e segue sendo capaz de nos instigar necessárias e urgentes reflexões sobre o legado e a atualidade do marxismo para o século XXI:
POR MARX / A FAVOR DE MARX – “Esta coletânea de artigos, publicada pela primeira vez em 1965 pelas Éditions François Maspero, teve um sucesso excepcional para uma obra teórica. Como notava Élisabeth Badinter no jornal Combat de 25 de abril de 1974: “Os estudantes e os intelectuais marxistas descobriram Althusser e, por seu intermédio, se não um novo Marx, ao menos uma nova maneira de o ler. Desde a ‘Crítica da Razão Dialética’ de Sartre, Althusser é o único filósofo a propor uma interpretação verdadeiramente original das obras de Marx.”
A partir da década de 1960, os estudos marxistas não puderam ignorar esta abordagem que estabelecia um “corte epistemológico” na obra marxiana, separando os textos ideológicos do Jovem Marx da obra científica da maturidade. Ela oferecia também outra avaliação do aporte de Hegel a Marx e não hesitava em se inspirar nas reflexões filosóficas de Mao Tsé-Tung para alimentar sua própria filosofia. Raros são os livros tendo suscitado tantas paixões teóricas e provocado tantos debates.”
Decerto, uma das contribuições maiores de Althusser esteve em suas reflexões sobre a Dialética, em especial pelos esclarecimentos que trouxe sobre as diferenças, neste aspecto, entre Hegel e Marx. Depois de Althusser, tornou-se difícil de sustentar, como diz um clichê vigente, que Marx meramente “inverteu” a dialética Hegeliana, que estaria de ponta-cabeça, colocando-a de volta sobre os próprios pés. O buraco é bem mais embaixo.
“A dialética é o estudo da contradição na própria essência das coisas, ou, o que é a mesma coisa, a teoria da identidade dos contrários” – definiu Althusser (p. 156). O conceito remete, em sua fonte primordial, ao pensador pré-socrático Heráclito de Éfeso, que conciliou o “tudo flui” (panta rei) com a noção suplementar da contradição intrínseca ao real: tudo no real estava em fluxo devido a uma guerra eterna entre os contrários – que constituíam uma tensa unidade móvel e dinâmica.
“A dialética dos momentos da ideia comanda toda a concepção hegeliana, como disse Karl Marx vinte vezes; Hegel explica a vida material, a história concreta dos povos, pela dialética da consciência (consciência de si de um povo, sua ideologia). Para Marx, ao contrário, é a vida material dos homens que explica sua história: não sendo então sua consciência, suas ideologias senão o fenômeno de sua vida material.” (p. 84)
O pensamento de Marx se forjou na luta, no conflito, na polêmica, no antagonismo, no diálogo crítico, em que ele abriu seu caminho próprio e sem precedentes ao colocar em questão os sistemas idealistas (como o de Hegel) ao mesmo tempo que se apropriava criticamente das revoluções filosóficas materialistas (de Demócrito e Epicuro a Feuerbach e Stirner). Se a luta de classes é o motor da história, pode-se dizer também que para Marx a luta das ideias é o motor da filosofia, ainda que as ideias sejam sempre epifenômenos de uma totalidade social concreta, historicamente determinada, com suas ideologias batalhando no campo de guerra das representações sociais.
Lendo Althusser, emerge a figura de um Marx heróico, titânico, que em sua juventude batalhou com sucesso contra “uma gigantesca camada de ilusão que ele teve que atravessar antes mesmo de poder percebê-la”:
“A Juventude de Marx conduz ao marxismo, mas ao preço de arrancá-lo prodigiosamente de suas origens, ao preço de um combate heróico contra as ilusões de que foi alimentado pela história da Alemanha onde nasceu, ao preço de uma atenção aguda às realidades sociais que essas ilusões recobriam. Se o caminho de Marx é exemplar, não é por suas origens e seu detalhe, mas por sua vontade indomável de se libertar dos mitos que se faziam passar pela verdade, e pelo papel da experiência da história real que derrubou e varreu esses mitos.” (Althusser, p. 63)
E se a filosofia a que estamos acostumados for uma gaiola estreita demais, que nos limita mais do que expande nossos horizontes? Assim como “o passado é uma roupa que não nos serve mais”, como canta Belchior, será a filosofia tradicional, feita por caras-pálidas logocêntricos, não deve ser transcendida? E como o faríamos senão a partir de radicais práticas de descolonização de nosso pensamento que se acostumou demais à servidão em relação àquilo produzido nas chamadas metrópoles da civilização ocidental? Como daríamos fundamentos materiais diferentes à nossa liberdade sem antes trazer abaixo as barreiras mentais e as fronteiras do pensamento que nos mantêm encarcerados num si de seita ao invés de abertos à desconstrução do eu num infindo processo de outrar-se?
Com esta enxurrada de questionamentos inauguramos este texto-travessia que tenta abrir outros caminhos para quem quer filosofar fora da gaiola e pensamento fora da caixa. Comecemos pelo óbvio: é preciso problematizar e confrontar a tradição filosófica dominante, nascida de uma matriz européia, quando esta serve como ferramenta para instaurar uma fratura entre os povos que filosofam (supostamente superiores) e os coitados dos povos desprovidos de filosofia (e por isso degradados a um status de inferioridade).
Este viés etnocêntrico pode e deve ser desconstruído com o auxílio de pensadores de múltiplas áreas do conhecimento e provenientes das mais variadas latitudes e conjunturas sócio-culturais, caso contrário a filosofia pode se ver degradada a uma espécie a mais de ferramenta para o imperialismo cultural eurocêntrico.
Por que, nas aulas de filosofia, seja no ensino médio, no EJA, nas graduações ou na pós, prosseguimos prendendo estudantes em uma grade curricular que os encerra nos estreitos limites de uma filosofia européia? Como é possível que não se descortinem horizontes mais amplos, que não se fale de filosofia oriental, africana, ameríndia…? No Brasil, esforços significativos tem sido feitos em prol da confluência entre Filosofia e Macumba (vide o Dossiê da Revista Cult) e em favor de um respeito ampliado pelo Pensar Nagô (para mencionar o excelente livro do prof. Muniz Sodré).
Neste artigo, na companhia de pensadores como Viveiros de Castro, Oswald de Andrade, Maria Cristina Ferraz e Friedrich Nietzsche, iremos sondar caminhos para uma radical descolonização da filosofia que estique seus horizontes para além dos cárceres em que certas elites culturais desejam prendê-la. Com o auxílio de pitadas de psicodelia, iremos explorar teses acachapantes sobre a História, a Filosofia e um real polvilhado de perspectivas inumeráveis.
NIETZSCHE: A POTÊNCIA DE UM PENSAMENTO MULTIPLICADOR DE PERSPECTIVAS
É recomendável ao filósofo-artista, diz Nietzsche, interessar-se por outras perspectivas, abrindo outros olhos para além dos costumeiros. O conhecimento é tão mais completo quanto mais olhos pudermos mobilizar para observar um objeto, um problema, uma questão:
“Talvez seja indispensável, na formação de um verdadeiro filósofo, ter passado alguma vez pelos estágios em que permanecem, em que têm de permanecer os seus servidores, os trabalhadores filosóficos; talvez ele próprio tenha que ter sido crítico, cético, dogmático e historiador, e além disso poeta, colecionador, viajante, decifrador de enigmas, moralista, vidente, “livre-pensador” e praticamente tudo, para cruzar todo o âmbito dos valores e sentimentos de valor humanos e poder observá-los com muitos olhos e consciências, desde a altura até a distância, da profundeza à altura, de um canto qualquer à amplidão.” (NIETZSCHE, Além de Bem e Mal, #211)
O “ideal” epistemológico nietzschiano não faz um ídolo de qualquer Verdade com v maiúsculo, que fosse considerada como totalmente desvelável pelos poderes da razão, mas consiste, ao contrário, em mobilizar em nós a vontade de saber – ou seja, o anseio pelo conhecimento que se torna o mais forte dos afetos! – de modo a enxergar pelo máximo possível de pontos-de-vista diferentes aquilo que nos propusemos a compreender.
É como diz o Saramago em Janela da Alma: quando você vai a um museu e se depara com uma escultura, o melhor a fazer não é ficar plantado na frente dela como uma árvore imobilizada no solo, mas sim dar um giro a seu redor, espiando tudo por vários vieses. Ninguém conhece a estátua a contento só olhando-a pela frente, é preciso espiá-la pelos fundilhos, seria até mesmo desejável olhá-la de cima, como um olhar de falcão (ou de drone….), e depois tocá-la, para sentir em nossa pele o material de que é feita, e quem sabe até mesmo lambé-la para sentir na língua seu sabor…
Estou exagerando no exemplo, a ponto de pintar uma situação bizarra, e que muito provavelmente causaria uma intervenção do guardinha do museu que nos levaria direto para uma consulta psiquiátrica, mas o que eu queria era destacar a noção de que perspectivas múltiplas – aí incluídas as diferenças experiências sensoriais (aquilo que os gregos chamavam de stésis) – fazem parte do processo do conhecimento autêntico, segundo Nietzsche.
Quem tem sede de saber, fome de conhecer, vontade de aprender, sabe que o processo em que embarcamos nada tem de estável, que há nele muito de experimentalismo, de um deslizamento em areias movediças, ou mesmo de um surfe nas ondas fluidas do real em que estamos nadando.
Nietzsche cria em Zaratustra um ícone mítico para uma certa leveza lúdica do sátiro dionisíaco que rompe com o pesadume das correntes costumeiras e adquire novos olhos, indo para além das limitações que confinam as mentes dos contemporâneos: estes aprisionados pássaros na gaiola do enrijecido e grava pensamento filosófico dominante sempre tem seus feudos defendidos por manadas de “pensadores normais” (e normalizadores), avessos a qualquer aventura dita heterodoxo, e que vesgos só sabem olhar, submissos, para as produções de um velho patriarca chamado Europa. Assemelham-se assim a pessoas que, dotadas de dois olhos, preferissem fechar um deles ao invés de se esforçar para abrir um terceiro, e um quarto, e um quinto…
“É preciso ser muito leve, a fim de levar sua vontade de conhecimento a uma tal distância e como que acima de seu tempo, a fim de criar para si olhos que abarquem milênios e, além disso, um céu puro nesses olhos! É preciso haver se livrado de muita coisa que justamente a nós, europeus de hoje, oprime, inibe, detém, torna pesados…” – Nietzsche, A Gaia Ciência, §380
Convêm acordar para o fato básico, mas que vale a pena ser re-afirmado, de que a nossa perspectiva “pessoal” atual convive com uma multiplicidade de outras perspectivas. Estou falando aqui da virtude, ou do valor diretriz, da atenção à vida em sua intrínseca multiplicidade, isto é, uma consciência clara de que com convivemos com organismos psicofísicos muito diversos dos nossos. Nestes infindos alhures que há cada para eu, sempre há em profusão, para qualquer um de nós, a Outridade, ou a Alteridade, como um convite não só para o conhecer, mas para o comunicar e o colaborar.
De modo que cada um pode até estar enraizado num aqui-agora, num lócus e numa época existencial que nos agarrar como se fosse uma teia inescapável, condenando-nos assim a uma perspectiva limitada. Mas a partir deste lócus espaço-temporal vivemos também como organismos abertos e porosos, abríveis à percepção maravilhante de um mundo “polvilhado” de olhos, repleto de uma estonteante diversidade de consciências. Este tema tem sido explorado com brilhantismo por alguns dos melhores pensadores contemporâneos, a exemplo de Thomas Nagel (The View From Nowhere), Daniel Dennett (Kinds of Minds) e Alex Watts (Out of Your Mind).
É algo nesta vibe que me é sugerido pelas ilustrações do “artista visionário” Alex Grey (notório psiconauta que usa LSD, DMT e outros cogus e estupefacientes). Acho impressionante a proliferação de olhos que Alex Grey utiliza em seus trabalhos como modo de comunicar algo sobre a profusão de consciências não-humanas que nos arrodeia muitas vezes sem que possamos nos dar conta desta riqueza (não quantificável em termos monetários e à qual muitos espíritos colonizados pelo capitalismo estão completamente cegos).
Gosto da profusão de olhos Alex Greyanos também porque os olhos transcendem os humanos, não são privilégio do homo sapiens, e além do mais os nossos são olhos meia-boca, bem incompetentes em comparação com os olhos tão melhores de falcões e águias. O cosmos que Alex Grey descortina em suas obras, após de ter tido acesso a elas a partir da porta dos psicoativos enteógenos, é repleto de consciência s de alta diversidade ôntica. Sinal de um artista-filósofo alerta à multiplicidade de organismos biológicos, possuidores de formas e histórias evolutivas as mais espantosas e diversificadas.
Quem o percebe melhor que o comum dos mortais é esta figura arquetípica, chamada aqui e acolá de xamã, de místico, e que eu prefiro apelidar de cosmonauta. É uma gente que faz uma psiconáutica no cosmos através da abertura audaz de ohos que o comum de nós prefere deixar trancados, com pálpebras pesadas caindo sobre eles. Esta figura xamânica, epifânica, profético-poética, marca presença numa polifonia de povos.
Diante dos “comunicados”, das pinturas, das canções, dos filmes, dos ritmos, das “filosofogens” que nos são legadas por figuras assim, fica mesmo difícil continuarmos a crer que o cosmos não poderia ser, com justiça, reduzido por uma filosofia à monotonia de um descolorido sistema abstrato de ideias humanas, demasiado humanos – e ainda por cima etnocêntricas, demasiado “Europa-centradas”. E marcadas por um tenaz logocentrismo que visa expulsar da experiência humana todas as vivências supra-racionais.
PERSPECTIVISMO AMERÍNDIO: Operador de uma radical descolonização do pensamento
Em culturas ditas “primitivas” (na perspectiva de quem se auto-arroga o título de “civilizado”, e portanto superior…), não haveremos de encontrar alternativas aos nossos modos de conceber as coisas, inclusive no domínio da filosofia, da ontologia, da ética, da metafísica? Não há os voyageurs psicodélicos que exploraram os des-limites da Psyquê e os segredos íntimos do Cosmos (e seu Cronos…) nas mais variadas culturas? Por que não nos abrirmos a este caldeirão da alteridade infinita?
Que existe uma concepção de mundo, denominada perspectivismo ameríndio, característica de certos povos da Amazônia, é algo que nos foi revelado em minúcias pela obra epifânica de Viveiros de Castro. O antropólogo brasileiro – que também é um de nossos mais sagazes filósofos – especializou-se (por assim dizer) em Metafísicas Canibais. “A partir de uma compreensão aguçada do pensamento deleuzeano”, consegue realizar muitas proezas com sua pena pirotécnica (e às vezes até um pouco piromaníaca…) – dentre as proezas de Viveiros, Maria Cristina Franco Ferraz aponta esta:
“Viveiros de Castro desdobra algumas pistas lançadas por Claude Lévi-Strauss acerca do que este chamara de pensamento selvagem dos ameríndios. Viveiros de Castro caracteriza, como próprio aos ameríndios, um perspectivismo multinaturalista que implica a ultrapassagem, como veremos, de pressupostos caros à tradição filosófica ocidental dominante. […] As pesquisas [de Viveiros de Castro] sobre as cosmopolíticas amazônicas estão ancoradas em uma noção de multiplicidade perspectiva intrínseca ao real.” (FERRAZ: 2015, p. 80)
O real, intrinsecamente múltiplo, contêm em seu seio, no bojo ôntico de seu si, uma infinidade de consciências, ou seja, de perspectivas. A Phýsis talvez possa ser descrita somente sob a guarida do processo, da procissão de uma biodiversidade mutante e movente, extinguível e evoluível. Processo sem fim de criação e destruição que os hindus identificam com o deus Shiva e que Heráclito referia como “a grande criança” divina que cria e destrói mundos, numa atividade sem fim. A dança dos elementos na sala de bailado do tempo-espaço infindos…
Mas vamos pôr os pés na lama da História através da seguinte cena descrita por Lévi-Strauss, que tem o mérito de ser bastante emblemática e memorável: narra o confronto de perspectivas que opôs, de um lado, os indígenas das Antilhas, nativos desta terra que viria a ser chamada de América, e de outro lado os conquistadores europeus. Estes últimos invadiram o continente com suas caravelas, escopetas e bíblias provindos da península ibérica renascentista e em eram, em sua maioria, súditos de monarquias absolutistas:
“Nas grandes Antilhas, alguns anos após a descoberta da América, enquanto os espanhóis enviavam comissões de pesquisa para averiguar se os indígenas tinham ou não uma alma, esses últimos imergiam os prisioneiros brancos para verificar, através de uma observação prolongada, se os cadáveres eram sujeitos ou não à putrefação.” (LÉVI-STRAUSS, Race et histoire, citado por VIVEIROS DE CASTRO: 2015,p. 14-15)
Este episódio anedótico revela dois procedimentos, duas perspectivas, em embate:
1ª) os europeus tendiam a considerar os nativos como subhumanos, como meros animais, de modo que a tese “índio não tem alma”, ungida pela água benta da Igreja Católica européia, sacramentará o processo de escravização das populações ameríndias.
2ª) os indígenas do continente invadido teriam suspeitado que os europeus fossem deuses, “até constatarem que seus corpos também apodreciam.” (FERRAZ, op cit, p. 80).
O extraordinário comentário de Lévi-Strauss, que faz um juízo de valor sobre estas atitudes, vale a pena ser levado em consideração: “Ante uma ignorância idêntica, o segundo procedimento [o dos indígenas que observavam se os cadáveres dos espanhóis apodreciam] era certamente mais digno de homens.” (LÉVI-STRAUSS, op cit, p. 15)
Eis uma formidável pedrada na auto-imagem narcísica dos europeus: com este petardo, em Lévi-Strauss, um francês, diz que os índios agiram com mais dignidade do que os conquistadores europeus: “A diferença entre as duas operações repousa na seguinte constatação: os europeus não podiam colocar em dúvida que os índios (como de resto todo o reino animal) tivessem um corpo, enquanto os ameríndios não poderiam sequer imaginar que os europeus não tivessem alma. Com efeito, para os ameríndios, assim como para diversas outras culturas primeiras, tudo tinha alma, inclusive os animais e os espectros dos mortos.” (FERRAZ, op cit, p. 81)
Para entender este estranho embate entre diferentes perspectivas, vale a pena relembrar a chamada Controvérsia de Valladolid (1550-1551), que Ferraz rememora assim:
“A Controvérsia de Valladolid foi um célebre debate entre Las Casas e Sepúlveda acerca da verdadeira natureza dos indígenas americanos. A solução dessa querela, que contrapôs radicalmente o dominicamo Bartolomé de Las Casas ao teólogo Juan Ginés de Sepúlveda, foi fundamental para justificar a colonização espanhola do Novo Mundo, implicando a determinação da legitimidade ou não das sociedades indígenas, com seus costumes, e produzindo justificativas morais e teóricas para a dominação dos ameríndios por direito de conquista. Forneceria, portanto, as bases para o empreendimento colonialista e para o extermínio dos modos de vida das civilizações pré-colombianas.” (FERRAZ, op cit, p. 80)
Os europeus, se terminam por incluir na categoria de animais ou de subhumanos àquela humanidade alternativa com que depararam quando aportaram no El Dorado Americano, logo descobririam o seu próprio poder descomunal de destruição e devastação. Como uma praga de gafanhotos de dimensões épicas, que devasta toda uma horta de verduras em poucos minutos, a invasão européia logo transformou-se em genocídio, pelas armas ou pelas pestes.
As epidemias que matam os nativos em quantidades assustadoras são trazidas no corpo dos europeus; sem defesas imunológicas, pereciam falecidos como moscas. Não é que os europeus tenham espalhado as doenças de propósito; mas talvez isso tenha lhes servido para reforçar ainda mais o racismo e o etnocentrismo que carregavam consigo, fazendo-lhes crer que eram dotados de corpos mais fortes e mais saudáveis do que aqueles “índios fracotes” que morriam com “doencinhas” que qualquer europeu dá conta de sarar…
Podemos falar, como faz Samuel Huntington, em um clash de civilizações? Decerto que sim, mas o interesse da obra de Viveiros de Castro não está numa re-interpretação da tese histórica do clash civilizacional, mas em revelar também o quanto as diferenças culturais também se manifestam em termo de metafísicas diversas, filosofias alternativas.
E isso nos permite descolonizar radicalmente a filosofia. Por que só figuras como Hegel e Kant seriam merecedores de serem ensinados nas cátedras universitárias? Por que os “clássicos” do pensamento se restringem a um bando de caras-pálidas europeus? Por que não poderíamos, como Viveiros de Castro não só preconiza como também pratica, discutir a fundo os conteúdos pedagógicos, éticos, estéticos, metafísicos e políticos riquíssimos que se manifestam em culturas das mais variadas, globo afora.
A filosofia poderia tornar-se enfim madura para assumir seu cosmopolitismo, sua cidadania global, tornando-se algo que não é monopólio ocidental porcaria nenhuma. A filosofia é de todos, já que todos os povos tem sua filosofia, ainda que não a chamem por este nome.
Maria Cristina Franco Ferraz alerta que é preciso muita sutileza, e muito cuidado, ao abordar “o trabalho nuançado e densamente filosófico de Eduardo Viveiros de Castro”, pois “não basta certamente inverter os termos da metafísica ocidental, caso se pretenda aproximar de metafísicas outras.” (op cit, 81)
O RADICALMENTE OUTRO ESTÁ EM TODA PARTE DE QUEM DESCENTROU-SE
Para entendermos Viveiros de Castro, temos que nos embrenhar nos meandros desta tese filosófica, desta doutrina metafísica talvez, hoje conhecido por perspectivismo. E não há um único, o que nos complica a vida: há um perspectivismo europeu (o multiculturalismo) e há um perspectivos ameríndio (o multinaturalismo), se é que não existem ainda outros perspectivismos ainda (em um autor como José Saramago teríamos um bom exemplo…).
Fiquemos, pra que as dificuldades não sejam tantas que nos desanimem, neste clash de perspectivismos. Perguntemos: qual seriam portanto as diferenças entre o “perspectivismo multiculturalista ocidental” e o “perspectivismo multinaturalista dos ameríndios”? Explica Maria Cristina:
“À diferença do multiculturalismo, o multinaturalismo não supõe algo, uma suposta coisa em si que seria ‘parcialmente apreendida pelas categorias do entendimento próprias a cada espécie’ (Viveiros de Castro, 2011, p. 40). Segundo a perspectiva multinaturalista, não existiria esse ‘algo’ idêntico que os humanos veriam como sangue e os jaguares como cauim (cerveja).
Não se trata de um relativismo que pressuporia ‘entidades auto-idênticas’, as mesmas coisas percebidas de maneiras distintas. Não há lugar para um x que seria percebido por uma espécie como sangue, e por outra como bebida. Viveiros de Castro sintetiza: ‘Efetivamente, estamos no sangue ou na bebida, ninguém bebe a bebida-em-si.’ (ibid, p. 40)
Para os ameríndios, não haveria uma referência comum (portanto, nem representação nem equivocidade), mas sempre, e de saída, referências múltiplas e ontologias variáveis. Parafraseando Deleuze, Viveiros de Castro conclui que ‘o multinaturalismo amazônico não afirma exatamente uma variedade de naturezas, mas a naturalidade da variação, a variação como natureza (ibid., p. 42)
Essa visada se esclarece ainda mais quando se compreende que a metafísica amazônica da predação é intrinsecamente relativa e relacional. Enquanto os espíritos e os animais predadores veem os humanos como presas, as presas veem os humanos como espíritos ou como animais predadores. Segundo a perspectiva multinaturalista, os animais e os outros componentes do cosmos partilham com os humanos da condição de pessoas munidas de um mesmo conjunto geral de disposições perceptivas, apetitivas e cognitivas, sendo portanto todos eles, sem exceção, em igual medida providos de uma alma. Cabe lembrar a afirmação de um xamã de Iglulik, ilha ao norte do Canadá, referida por Viveiros de Castro em outro texto: ‘o maior perigo na vida é o fato da comida humana consistir inteiramente de almas’.” (FERRAZ, op cit, p. 82)
Gravura de 1558 de André Thévet retratando a colheita de caju pelos tupinambás para a produção de cauim. (“Cauim é uma bebida alcoólica tradicional dos povos indígenas do Brasil desde tempos pré-colombianos. Ainda é feito hoje em reservas indígenas da América do Sul. O cauim é feito através da fermentação da mandioca ou do milho, às vezes misturados com sucos de fruta.” - https://pt.wikipedia.org/wiki/Cauim.
O chamado animismo dos ameríndios significa que atribuem anima (alma) a todos os animais, de quaisquer espécies, enxergando-os como dotados da “potencialidade ontológica” de “ocupar um ponto de vista” (VIVEIROS DE CASTRO, ibid., p. 21-22): no encontro entre um elefante e um rato, entre um tigre e uma cabra, há embate de perspectivas ontológicas; por que seria diferente quando o humano da Amazônia “tromba” em seu caminho com uma pantera? Por que não teríamos também um encontro entre alteridades de perspectivas igualmente dignas quando encontram-se antropólogo e nativo?
No seguinte parágrafo, Viveiros de Castro oferece um resumo da ópera de uma Phýsis perspectivada e repleta de diferença (e diferonças):
“O perspectivismo, em suma, não é um multiculturalismo trans-específico que afirmaria que cada espécie possui um “ponto de vista” subjetivo (uma opinião) particular sobre um mundo real objetivo, uno e auto-subsistente. O que ele afirma não é a existência de uma multiplicidade de pontos de vista, mas a existência do ponto de vista como multiplicidade. Por outras palavras, o perspectivismo não supõe uma Coisa-em-Si parcialmente apreendida pelas categorias do entendimento próprias de cada espécie; não se imagine que os índios imaginam que existe um “algo = x”, algo que, por exemplo, os humanos vêem como sangue e os jaguares como cerveja. O que existe na multinatureza não são substâncias auto-idênticas diferentemente percebidas, mas multiplicidades imediatamente relacionais do tipo sangue-cerveja. Não há um x que seja sangue para uma espécie e cerveja para outra; há, desde o início, um sangue-cerveja que é uma das singularidades ou afetos característicos da multiplicidade humanos-jaguares.” EDUARDO VIVEIROS DE CASTRO
Pensemos nas posições de predador e presa, por exemplo: é lição simples de perspectivismo, já que, como explica Viveiros, “as posições primárias de predador e presa envolvem necessariamente outros coletivos, outras multiplicidades pessoais em uma situação de alteridade perspectiva.” (ibid., p. 23-24) Quando o lobo e o coelho se encontram, na perspectiva do lobo é o o coelho que aparece como comida, já na perspectiva do coelho… o lobo delineia-se como comedor, perigo moral. Mas, caso dê conta de escapar das mandíbulas cheias de dentes afiados do lobo, o coelho também terá que alimentar-se e verá, sob sua perspectiva, algum outro organismo como presa… O gato é presa na perspectiva do cão, mas é predador na perspectiva do rato…
“Nossa antropologia popular vê a humanidade como tendo sido erigida sobre bases animais, normalmente ocultadas pela cultura (…), mas o pensamento indígena conclui, ao contrário, que, tendo sido outrora humanos, os animais e os outros existentes cósmicos continuam a sê-lo, mesmo se o são de uma maneira não evidente para nós.” (VIVEIROS DE CASTRO, ibid, p. 35)
Seria possível, pois, falarmos, sem cair no ridículo, em uma espécie de “subjetividade animal”, ou seja, na existência de uma vivência pessoal do sapo, da anta, do macaco, de qualquer organismo vivo que se queira, e sempre marcada por uma certa perspectiva? É uma ideia que marca presença também em certos pensadores clássicos da filosofia ocidental quando estes se debruçam sobre o problema da origem dos valores e tentam empreender uma espécie de genealogia do bem e do mal, como faz o filósofo escocês David Hume:
“Se há algum princípio, de entre os que a filosofia nos ensina, em que possamos ter inteira confiança, este me parece poder ser considerado certo e indubitável: que nada é, em si mesmo, valioso ou desprezível, desejável ou odioso, belo ou disforme, pois estes atributos derivam da estrutura e constituição peculiares das afecções e sentimentos humanos. O que a um animal parece o mais delicioso alimento é por um outro considerado detestável. O que enche de deleite a sensibilidade de um é capaz de produzir desagrado em um outro.” – DAVID HUME, “O Cético”, in: Ensaios Morais, Políticos e Literários.
Em outros termos: um macaco, diante da Miss Universo (humana), não enxergará lá muita beleza e preferirá, sem dúvida, a graça tão maior de qualquer macaca. Para a sapa, não há bicho que mais se assemelhe a um “príncipe encantado” do que um sapo. E tem besouro pra quem até bosta é ouro…
Se descambamos para a peraltice, é para que nosso texto enfim possa aproximar-se de novo interlocutor: Oswald de Andrade, cuja obra pode com muita fecundidade serem postas em diálogo com o perspectivismo ameríndio revelado através da pena de Viveiros de Castro. Afinal em ambos parece existir um “gosto de revirar a metafísica pelo avesso”, como aponta Maria Cristina Franco Ferraz, audaz empreendedora da aventura de pensar pontes possíveis entre os estes autores e o pensamento Nietzschiano:
“Na primeira dissertação da Genealogia da Moral, Nietzsche recorre a uma breve parábola – gênero tradicionalmente ligado à palavra evangelizadora e às lições morais – na qual se expressam duas perspectivas: a do cordeiro [Lamm] e a da ave de rapina. Nesse texto polifônico em que o filósofo disseca as estratégias do ressentimento, inventor de valores morais, eis o que o cordeiro diz a seus congêneres: “essas aves de rapina são más; e quem for o menos possível ave de rapina, ou antes o seu oposto, cordeiro – este não deveria ser bom?”
Conforme apontado por Deleuze (1983, p. 136-142), esses cordeiros põem em funcionamento um jogo dialético a fim de erigir simulacros de afirmação de si como bons, a partir de uma operação de dupla negação. Para isso, começam marcando o outro (a ave de rapina, generalizada) como mau. A partir da negação do outro, extraem por meio de duas reduções lógicas (“quem for o menos possível ave de rapina, ou antes o seu oposto, cordeiro”) a conclusão do paralogismo. A conclusão se apresenta, de modo significativo, como uma pergunta para os outros membros do rebanho: “este não deveria ser bom?”
Ressalte-se a genialidade falseadora presente na operação presente na operação intermediária, que consiste em deslizar, sutilmente, da comparação (“quem for o menos possível ave de rapina”) para a violência de um regime de franca oposição (“ou antes o seu oposto, cordeiro”). Não se trata nesse caso de uma simples progressão, mas de um salto astuto, uma vez que a oposição assim obtida secreta o solo comum necessário à invenção de valorais morais dicotômicos e universalmente aplicáveis.
(…) O cordeiro coloca em um mesmo plano duas perspectivas distintas, transformadas então em antagônicas, introduzindo por sob ambas as perspectivas um pretenso substrato comum, neutro, e além disso, dotado de livre arbítrio… Conforme enfatizou Deleuze, esse cordeiro silogístico, expressão do ressentimento, inventa dessa maneira a ficção do sujeito como força neutra, separada de suas manifestações. A essa força assim autonomizada irá se exigir que responda pelo que supostamente escolheu ser. Eis, em suma, o que se encontra em jogo na operação: a instauração de um jogo dual no qual a alteridade é de saída domesticada, neutralizada, reconduzida à categoria mesmo,na figura do oposto ou do contrário. O que era pura diferença se transforma em oposto do cordeiro, e este passa consequentemente a funcionar como funcionar como referência comum, universal. Simultaneamente, por efeito da mesma operação, o outro (ave de rapina) se torna moralmente imputável por ser aquilo… que é. ” (FERRAZ, op cit, p. 85)
Pode-se debater por horas, dias e meses sobre o que Nietzsche fez na Genealogia da Moral, este empreendimento filosófico que procura reinserir o Bem e o Mal no fluxo da história, mostrando suas raízes nos embates de perspectivas. Será que cordeiro e ave de rapina são de fato bons exemplos, paradigmas adequados, ou tentem a “animalizar” um problema humana?
É, de todo modo, um dispositivo de reflexão interessante: Nietzsche pinta a “cordeirice” como uma perspectiva ressentida, do fraco que condena moralmente aquele que é mais forte, e mostra-nos claramente uma outra perspectiva quando faz-nos ouvir a voz da ave de rapina que, com um ar zombeteiro, diz: “nós nada temos contra esses bons cordeiros, pelo contrário, nós os amamos: nada é mais saboroso do que um tenro cordeirinho!”
As figuras nietzschianas do cordeiro e da ave de rapina ilustram bem uma tradição ética para a qual os valores não são absolutos, imutáveis, inscritos desde sempre e para sempre num Céu de ideais incorruptíveis. Sugere que, para entendermos a gênese dos valores morais, precisamos do perspectivismo e da historicidade. Só o procedimento genealógico, apto a captar tudo o que há de processual no real, pode vir a decifrar, ainda que parcialmente, o enigma do que há. Além disso, Nietzsche traz uma reflexão sobre a predação (as relações entre predador e presa), a dominação, a diferença de potência etc.
Em Nietzsche, mas também em Hume ou Spinoza, assim como em Epicuro e Lucrécio, temos uma doutrina ética que vê as valorizações éticas (bom e mau, virtuoso ou virtuoso, nobre ou ignóbil) e estéticas (belo e feio, agradável ou repulsivo) sempre ligadas a uma certa perspectiva desejante. Corpos diferentes, em perspectivas que diferem, terão que divergir nas suas apreciações do que é bom e do que é ruim, do que é lindo e do que é horrível. A criatura que para um ser humano pode parecer a mais horrenda (uma barata, um rato…) com certeza encontra quem lhe ache uma graça irresistível e digníssima de ter sua espécie perpetuada através de novas gerações…
Expondo a diferença entre o cordeiro e a ave de rapina, Ferraz aponta que segundo Nietzsche a cordeirice é a condição daqueles que estão presos a uma valoração moral que é fruto do ressentimento e da negatividade:
“Nietzsche enfatiza de que modo a negatividade, expressão do ressentimento, tornou-se criadora de valores na tradição cultural do Ocidente. Na sequência, o filósofo denuncia de que maneira a ficção dos valores morais e o julgamento dela derivado necessitam se apoiar na crença em um sujeito substancializado e neutro, passível de ser julgado (ou louvado) simplesmente pelo que é. A valoração moral supõe, portanto, o estabelecimento de uma relação com a alteridade apta a destruí-la, na medida em que a insere em um jogo de oposições simétricas e bipolares, regido pela negatividade. Esse meio hegemônico de erigir valores e de produzir modelos de identidade não pode dispensar a ficção de um jogo dialético entre nós e os outros, tão presente em construções políticas e sociais.
O contraponto intervém pela voz da ave de rapina que, sem ter necessidade da opinião dos outros (portanto de qualquer rebanho) e tampouco de fazer complôs, talvez diga para si mesma, com um leve ar zombeteiro: “nós nada temos contra esses bons cordeiros, pelo contrário, nós os amamos: nada é mais saboroso do que um tenro cordeirinho!” Essa outra perspectiva não exala rancor, mas se exprime com ingênua malícia e muito bom-humor. A argumentação lógica do cordeiro dialetizante é colocada em xeque através de um riso franco, leve, salutar. Nenhum traço de rancor ou amargura; em seu lugar, um gosto, um desejo declarado de comer o outro. Reencontramo-nos na relação de predação, ligada aqui não à negatividade mas à expressão direta de um desejo de alteridade, de um movimento de extravio de si para devir outro.” (FERRAZ, p. 86)
A ave de rapina que devora o cordeiro, se formos literais e biologicistas, apenas deseja satisfazer suas necessidades, matar a fome ainda que sob o preço, pago sem grandes escrúpulos morais, de matar o outro para depois comê-lo. Nietzsche, que não tem pendor nenhum pelas ciências exatas ou pela expressão positivista ou matemática, utiliza as noções de forma metafórica – assim como o camelo, o leão, o dragão e a criança, na fábula Das Três Metamorfoses que inaugura Assim Falava Zaratustra, também são metáforas.
A antropofagia de Oswald de Andrade também é conceito bem mais metafórico do que literal. Oswald não é exatamente o apologista do canibalismo, que prega em manifesto que matemos seres humanos para mandá-los, feito churrasco, pança abaixo. Publicado em 1928, o Manifesto Antropófago, explica Ferraz, encara a tarefa hercúlea de abrir novos horizontes para a problemática questão de nossa identidade nesta “terceira margem que é o Brasil”:
“Tal como na perspectiva da ave de rapina nietzschiana, um tom leve, jocoso e alegre percorre o manifesto oswaldiano. Uma afirmação retorna em ritornelo: ‘A alegria é a prova dos nove.’ Essa alegria é diretamente ligada ao desejo pelo outro, formulado explicitamente no texto desde o início: ‘Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago.’ Regido por essa lei, o negativo (‘o que não é meu’) não se confunde com uma negação do outro, com sua redução ao mesmo, tal como aquela efetuada pelo cordeiro moralizante. Resulta, antes, da afirmação e da positividade de um interesse intenso, inelutável. Vale lembrar a etimologia da palavra ‘interesse’: inter esse, ser entre, existir por entre (Viveiros de Castro, ibid, p. 58).
A rigor, já não se trata nesse caso do dualismo eu/outro, mas de um inter-esse, de um entrelugar, de uma flecha desejante lançada em um movimento vertiginoso de perda irreversível de si. Trata-se de outrar-se, verbo cuja existência em nossa língua devemos a Bernardo Soares / Fernando Pessoa. Na afirmação ‘só me interessa o que não é meu’ pode-se ouvir, com pequenas orelhas nietzschianas, a expressão de um desejo de deglutir o outro, implodindo assim a entediante prisão do ‘eu’ e suas coagulações identitárias.” (FERRAZ, p. 87)
A antropofagia de Oswald aparece então como metáfora de uma atitude diante da alteridade, que não é o isolacionismo de uma identidade segura de si, mas uma aventura de outrar-se, devorando o outro e assim metamorfoseando o eu.
Para escapar da prisão do eu, para transcender a jaula de uma pertença identitária demasiado rígida, Oswald fará uso da imagem do animal mítico das tribos tupis: o Jabuti, cuja característica principal seria sua astúcia, sua Métis (Détienne e Vernant, 1974). O Jabuti malandro é bem diferente do cordeiro moralista de Nietzsche, e através deste bicho astuto o que Oswald pretende é oferecer uma versão alternativa para a história da colonização do Brasil.
Escreve Oswald: ‘Não foram cruzados que vieram. Foram fugitivos de uma civilização que estamos comendo, porque somos fortes e vingativos como o Jabuti’. A vingança do Jabuti não se confunde com o rancor secretado pelo cordeiro. O Jabuti é movido por um desejo de absorver o outro, sem ser guiado pela necessidade de dissolver ou de atenuar a tensão inerente a toda relação com a alteridade. Comer, aqui, não implica de modo algum a eliminação do outro; ao contrário, trata-se de se nutrir de alteridade, de deglutir inimigos que se honram, colocando em marcha um dispositivo de variação infinita tanto do outro quanto de si, ambos tragados por uma voragem de outramento.” (FERRAZ, p. 88)
A voragem de outramento é o destino de uma filosofia audaz o bastante para apontar navios rumo ao alienígena, ao estranho, ao diverso, ao queer, ao selvagem, às múltiplas faces do outro. O radicalmente outro está em toda parte para quem soube descentrar-se de si.
Eduardo Carli de Moraes para A Casa de Vidro www.acasadevidro.com/filosofia
BIBLIOGRAFIA
ANDRADE, Oswald. A Utopia Antropofágica. Ed. Globo.
FERRAZ, Maria Cristina Franco. Ruminações. RJ: Garamond, 2015.
HUME, Davi. Ensaios Morais, Políticos e Literários. In: Os Pensadores, Abril Cultural.
LÉVI-STRAUSS. Race et histoire.
NIETZSCHE. Genealogia da Moral; Além de Bem e Mal; Assim Falava Zaratustra.
Este texto é dedicado à minha mãe, Marilia, com quem aprendi a levar a sério o que as plantas dizem.
“Não tenho habilidade pra clarezas. Preciso de obter sabedoria vegetal.” (Manoel de Barros) [2]
“E depois pra me acalmar Suco de maracujá.” (Martinho da Vila e João Donato) [3]
Logo que vim morar no Rio, mais de treze anos atrás, minha mãe me presenteou com um pezinho de dracena vermelha. Dentre as plantas que ela cuidava no quintal da nossa casa em Nova Iguaçu, essa era uma das que eu mais gostava e, pelo que me lembro, a mudinha foi o primeiro presente para o meu então “novo lar”. Não demorei a disponibilizar para ela um vaso bem espaçoso e profundo, posto no ponto mais ensolarado da varanda do apartamento. Queria que ela pudesse se alongar bem frondosa e seu caule crescesse robusto, como as da minha mãe. Ainda que meu parâmetro fosse exigente, afinal não havia como cultivá-la no chão e a céu aberto, acabou que tudo deu certo no vaso. Foi um prazer acompanhar a metamorfose daquele pezinho em o que, ao cabo, parecia uma pequena árvore, até mais alta do que eu! Algumas plantas nasceram e morreram na varanda ao longo da década em que vivi naquele endereço – como foi difícil me adaptar ao cultivo em vasos! –, contudo, lá estava a dracena, cada vez maior, ainda mais bela e imponente com o passar dos anos.
Sua saúde se esgotou apenas quando me mudei de apartamento. A planta, pelo que pude concluir, não gostou do novo espaço em que a pus. Excesso de sol?, muito vento?, ainda não tenho certeza. O que sei é que, a despeito dos meus esforços para recuperá-la, minha dracena companheira acabou secando de vez… já faz uns três anos; o tempo voa. Fiquei tão chateado que demorei muito para voltar a plantar no grande vaso em que ela ficava. Acabou se tornando um “vaso-coringa”, um espaço onde costumava jogar sementes aleatoriamente, sem muito cuidado a não ser uma regada de quando em quando. Entretanto, foi assim que, há uns dois anos, para minha surpresa, brotou um tomateiro – mas que, não durou muito, foi vitimado por pulgões. E também foi assim que, mais recentemente, bem no começo do isolamento social advindo com a pandemia, nasceram brotos do que vim a descobrir, depois, igualmente surpreso, serem pés de maracujá.
Sim, só consegui identificar mais tarde, com as mudas mais crescidinhas. Já vinha jogando no vaso-coringa, fazia tempo, uma variedade imensa de sementes. “Não é abóbora!”, “não é melancia!” – diante dos brotos desconhecidos, era mais fácil enxergar o que eles não eram. É triste e vergonhoso confessar: até aí, eu nunca tinha visto uma muda de maracujazeiro. Sintoma do colonialismo e da globalização: tinha mais familiaridade com um arbusto ornamental de origem asiática, a dracena vermelha, do que com um pezinho de maracujá, planta nativa das regiões tropicais do continente em que habito, e que dá uma das frutas mais comuns no Brasil – o país, vale lembrar, é o maior produtor e consumidor de maracujá do mundo. Sua aparência só se tornou reconhecível, para mim, quando as folhas, já grandes, começaram a tomar o célebre formato tripartido. “É maracujá-amarelo!”, foi então que suspeitei. As gavinhas surgiram e confirmaram: aqueles eram brotos da “planta da tranquilidade” – nascidos, quase como um milagre, neste turbulento ano de 2020.
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Não vou acelerar as coisas – as plantas têm outro ritmo. Voltemos ao princípio. Porque, para quem tinha mais familiaridade com o crescimento verticalizado de uma dracena vermelha, saltou aos olhos o alastramento “desordenado” daquele que, eu ainda não sabia, era um maracujazeiro. Espalhou-se por todo o vaso, feito um pé de abóbora – eis o porquê da confusão inicial. Não dava para encontrar naquele emaranhado um “eixo”, algo que tornasse possível o reconhecimento de uma “parte central” do vegetal. Parecia não haver “sentido” em seu crescimento. Foi então que, com as gavinhas visíveis – identificado, enfim, que se tratava de um pé de maracujá –, compreendi que era preciso lhe dar um esteio, algo fixo em que pudesse se sustentar e se expor mais ao sol.
Sei que, por ser caracterizado pela imobilidade, todo vegetal precisa, antes de tudo, de firmeza, de estabilidade, e essa função costuma ser cumprida pelas raízes, pelo tronco e/ou pelo caule. As raízes do maracujazeiro, no entanto, são mínimas se comparadas ao seu corpo aéreo; o tronco lenhoso da planta demora a se constituir, e seu caule em formação é de aparência fraca e flexível, próprio de uma trepadeira. Impossível para uma planta aparentemente tão frágil, horizontalizada, instável e leve, ter a capacidade de crescer até o estágio de produzir e sustentar frutos grandes e suculentos como o maracujá, sem recorrer justamente a isso: um apoio.
É preciso lembrar que, sem poder se mover, e sem contar com os sentidos da visão e da audição, o que resta às plantas é se abandonarem ao ambiente. O que é ainda mais imperioso para aquelas que não têm fixidez própria, como o maracujazeiro. As plantas, principalmente os brotos, transbordam confiança em relação ao que as cerca. Não há opção: é assim que elas devem viver. Toda vida vegetal não deixa de ser uma manifestação de coragem – uma coragem “heroica”, desmedida para os nossos assustados olhos animais. “Não seria esta a condição de toda a vida: confiar nos outros e contar com eles?”; era isso que me indagavam, sem palavras, as gavinhas do maracujazeiro, tateando o entorno, à própria sorte, em busca de amparo.
“Na hora do milagre existo e não existo com uma segurança total”, as gavinhas pareciam recitar, insistentes, essa linda frase de Leonardo Fróes [4]. Porém, minha admiração chegou a ser substituída por um receio: poderiam elas, num encontro imprevisto, “sufocar” outra planta próxima? Descobri, então, que é algo bem difícil de ocorrer: o enlace das gavinhas do maracujazeiro é do tipo suave. É como se elas soubessem que não há por que oprimir quem está lhe dando suporte. Embora haja vegetais que se comportem como “parasitas” e até como “predadores”, o “heroísmo” das plantas quase nunca se coloca no horizonte da competição e da guerra. A coragem do maracujazeiro alcança seu ponto mais alto num abraço. Um abraço – com “uma segurança total” – dirigido ao desconhecido.
A relação entre planta e alteridade vai muito além do comportamento fraterno das gavinhas de um milagroso pé de maracujá. Em suas publicações mais recentes, o filósofo italiano Emanuele Coccia vem insistindo que os vegetais, mais do que seres passivamente adaptados a um meio, são, na realidade, os produtores ativos disto que chamamos “ambiente”. E não apenas por serem capazes de transformar, por meio da fotossíntese, a energia solar em biomassa, em matéria digerível para outros organismos [5]. É sobretudo o outro produto gerado por eles no mesmo processo, o oxigênio, o que torna os vegetais seres tão imprescindíveis para a existência da vida como conhecemos [6].
As plantas, em suma, são co-criadoras da atmosfera, bem como do “jardim” – e não do “zoológico” – onde vivemos [7]. Nosso horizonte é vegetal. Os animais, por nosso turno, inspiramos oxigênio exalado pelas plantas e expiramos gás carbônico – o exato gás que elas absorvem para a síntese daquele mesmo oxigênio que vamos respirar. Nesse ciclo ininterrupto, partilhamos, todos, juntos, enquanto vivos, do mesmo sopro [8]. Spiramus ergo sumus– respiramos, logo existimos. Juntos.
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Repito – quem respira não para de repetir–spiramus ergo sumus– respiramos, logo existimos. Basta respirarmos – em conjunto – para existirmos. Há um apelo silencioso que emana das plantas – um apelo que nos obriga a rever – se levado a sério[9]– toda a ideologia que fundamenta a dita “modernidade”. “Cogito ergo sum” – “penso, logo existo” – ainda que tenha sido escrita no longínquo século XVII – e mesmo que venha sendo alvo de inúmeras “críticas”, passados quase quatrocentos anos – a sentença de René Descartes continua a estruturar o nosso presente. Permanecemos “cartesianos” – por mais que respiremos. Ainda queremos sanar a “dúvida” – “eu existo?” – com base nessa coisa (nebulosa) chamada “razão científica”. Não basta respirarmos – eu preciso pensar – para existir. Mas – não seria agora? – quando atravessamos uma pandemia? – que ataca exatamente nossas vias respiratórias?… Não seria agora? – quando assistimos, sem ar, aos incêndios criminosos que devastam a Amazônia e o Pantanal? – cobrindo nossos céus de fumaça tóxica?… Não seria agora? – esse agora tão sufocante!… Não seria agora? – quando a luta é para respirarmos – em grupo – para existirmos?… Não seria agora? – o momento mais que oportuno para – juntos – fazermos, enfim, a pergunta mais que óbvia?
– O que raios conseguiria pensar, sozinho, monsieur Descartes, caso não pudesse, ele mesmo… respirar e estar no mundo?
É muito por culpa dela que estamos nos sufocando, dessa “visão cartesiana” da existência. Uso o termo “cartesiano” por pura preguiça: sei que a cisão “eu versus mundo” ultrapassa, em muito, a filosofia de René Descartes, ou mesmo a própria filosofia como um todo [10]. O que importa, aqui, é que, ao submeter toda a vida a um critério individualista (“eu penso, logo eu existo”) e racionalista/cientificista (“penso, logo existo”), o “eu pensante” parece querer que nós não respiremos – que nós nunca tenhamos respirado. Não há possibilidade de vida nessa visão cindida: o que há é um fantasma olhando no espelho. Há, somente, um espectro chamado “eu” que, “refletindo”, quer se projetar como “universal”, achando que vive melhor do que os outros, pois “pensa” – e que “duvida” de tudo, deslegitimando qualquer coisa que não se pareça com ele mesmo.
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Precisamos deixar o “eu” se asfixiar? Como já disse, não vou acelerar as coisas – as plantas têm outro ritmo. Além do problema do “eu”, temos o problema do “homem”. Entretanto, há o apelo silencioso e constante do sopro das plantas. Emanuele Coccia propõe que a “filosofia por vir” busque uma “inspiração botânica”, “que redescubra na vida vegetal o ponto de indiferença entre microcosmo e macrocosmo, entre indivíduo e mundo” [11]. Para compreendermos tanto o mundo quanto a relação entre ele e a vida, Coccia sugere, busquemos o ponto de vista – ou melhor, o “ponto de vida” – das plantas. Abandonemos a perspectiva do “eu” e de seu pai, o “homem”; ouçamos o coral mudo que vem da atmosfera. Trata-se do que Coccia chama de “virada vegetal” do pensamento. “Se esse exercício é necessário, se devemos imaginar o mundo do ponto de vida das plantas”, explica Coccia, “é porque o mundo é literalmente produzido por elas”. Pois “são as plantas que fazem da matéria e do espaço que nos rodeiam um mundo, que reorganizam e rearranjam a realidade tornando-a um lugar habitável e vivível”. São elas, simultaneamente – cosmologicamente – o jardim e o jardineiro, a paisagem e o paisagista [12].
É assim que seres como o maracujazeiro, com suas grandes folhas fotossintéticas e suas gavinhas corajosas, evidenciam que é um embuste a ideia que cinde o mundo em categorias asfixiantes como “eu” e “outro”, “sujeito” e “objeto”, “ser” e “meio”. Os vegetais ensinam que a vida é uma “mistura”, o que Coccia define como um contato íntimo através do qual todo ser vivo é ambiente de si mesmo e dos outros. Na mistura em que estamos todos imersos – nesse aparente “caos” horizontal e sem eixo, como aquele a que pareciam me levar os ignotos brotos de maracujá –, uma vida é um atravessamento de apoios para a construção conjunta do que é comum. “O mundo”, cito de novo Coccia, “não é uma entidade autônoma e independente da vida, é a natureza fluida de todo meio: clima, atmosfera” [13]. A vida que as plantas produzem não se demonstra, mas se vive. O mundo como construção imediata e descentralizada de sopros, esteios e abraços: aqui, sim, podemos respirar. Aqui, sim, basta respirarmos – em conjunto – para existirmos.
Vida como produção conjunta, realidade como artefato: os vegetais desmascaram a farsa de que o mundo natural é incontornável, tragicamente dado a priori, construído como “necessidade”, imutável e independente dos seres que o habitam – aos quais caberia apenas “duvidar” da existência ou, quando muito, “se adaptar ao meio”. O mundo, sob o ponto de vida das plantas, é “um produto cultural dos seres vivos”, como resume Emanuele Coccia [14]. Não há agente externo ou anterior ao mundo: para a planta, ele se autoproduz constantemente, em suas próprias dinâmicas internas.
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Cabe um último comentário, sobre para o destaque que dei, acima, para a palavra “dinâmicas”, entendida como agentes internos de autoprodução do mundo. Meu intuito é resgatar dois sentidos, um tanto correlatos, abarcados no conceito de “dýnamis”, seu étimo grego. O primeiro, menos conhecido hoje, vem de seu uso especificamente botânico: “dýnamis” era um dos nomes para o “suco” ou a “seiva” vegetal. O mundo natural, para os aristotélicos e também para os médicos gregos, estaria cheio de “humores” (ikmás); estes, quando estimulados (pelo calor do sol, por exemplo), agiriam sobre a “seiva” (dýnamis), e seria a partir dessa articulação (estímulo + ikmás + dýnamis)que a planta poderia existir, crescer e se transformar – se autoproduzir.
Porém, é o segundo sentido de “dýnamis” que, embora de aplicação mais geral, me interessa mais neste ponto. É a sua acepção mais filosófica, em seara tanto ontológica quanto política – estamos na Grécia Antiga! “Dýnamis” é a “capacidade intrínseca” que todo ser vivo tem exatamente por estar vivo, ou seja, sua “autonomia para fazer existir a si próprio”. Nesse sentido, “dýnamis” se define em oposição a “krátos”, o “poder que se exerce sobre os outros” – a “força” que, encontrando sua expressão máxima nos deuses olímpicos, se impõe como “princípio regulador” (arkhé) para a “medida” (nómos) da existência. Com o krátos, ao contrário da dýnamis, pressupõe-se uma hierarquia ontológico-política: é o poder que, estruturado verticalmente, categoriza e divide os seres em diferentes graus de valor [15]. A partir daí, sabemos, é História: são muitos os relatos das diversas tentativas de simular o Olimpo cá entre os mortais.
A dinâmica das plantas, autônoma, “anti-crática”, indica que tudo o que existe é uma horizontalidade sem princípio ou medida, sem arkhé e sem nómos. Não há deus – e também não há big bang. Qualquer noção de começo e de contagem do tempo se desfaz na dinâmica da seiva vegetal, pois, em seu fluxo, “o mundo começa sempre no meio, e não para nunca de começar”. É nessa direção que Emanuele Coccia fala não em ponto de vista, mas em “ponto de vida” das plantas. Há uma “coincidência vertiginosa entre estar-no-mundo e fazer-o-mundo”. Na “cosmogonia múltipla e perpétua” que vivemos, “toda forma de vida é também forma do mundo” –para contemplá-la é necessário vivê-la [16]. Com as plantas, não há como, à moda dos “cartesianos”, ávidos pelo ideal da “objetividade”, tomar um ponto de vista distanciado, espacial, “a partir de Sírius”, como ironiza o antropólogo Bruno Latour [17]. Se “o universo vive” – mostrando-se, “em toda escala, um produto do vivente” –, “é somente ao vivê-lo que se poderá explicá-lo, não o inverso”, como conclui Coccia [18].
***
Tudo que venho aprendendo com o maracujazeiro durante a pandemia não passa disso: que quando o contemplo, vivo com ele. Ele me escancara, corajoso, sua formação corpórea – sua somatogênese – e ela se confunde com a própria “origem” da vida – a cosmogonia horizontal e sem começo que construímos, todos, incessantemente, e que nomeamos, enfim: o mundo. O corpo do vegetal não é metáfora, nem metonímia da vida, é formação imediata dela mesma. A somatogênese do vegetal é cósmica. No verde, não há analogia nem lógica – apenas mistura e metamorfose [19]. A lição dos brotos é de confiança e de aliança: como abraçar os outros, como se deixar abraçar. É matéria urgente para um planeta tão cindido e doente, tão isolado e apartado.
O que imagino com o ponto de vida do pé de maracujá, meu professor, é que, para vivermos, precisamos lembrar que somos nós mesmos que construímos, juntos, o horizonte. Cá embaixo, misturados na terra, um sendo esteio para o outro, imersos no comum que nos atravessa. Somos mais do que o “eu” e o “homem”: somos atmosfera. Nesse dinamismo autoprodutor e autônomo, nós existimos porquerespiramos do mesmo sopro. Spiramus ergo sumus– respiramos, logo existimos. Do sufoco em que estamos, dessa batalha pelo ar – e pela água, e pela terra… –, sairemos quando reaprendermos a respirar em coro.
Vou finalizar fazendo uma confissão: por mais que as lições que venha aprendendo com o pé de maracujá sejam belas e pareçam simples, quase óbvias, devo registrar que fui, até aqui, um aluno bem dificultoso. Nem me refiro à gafe inicial de não reconhecer o professor – que afoito, que preconceituoso, que vergonhoso sair por aí dizendo que um maracujazeiro se parece com um pé de abóbora! Refiro-me, mesmo, à dificuldade que tive, como animal humano, de ter lições com um vegetal: de compreender seu silêncio explícito, de ter de reaprender a respirar junto com sua imobilidade dinâmica… “Talvez fosse um bobo e um covarde, mas quase todo mundo é uma coisa ou a outra, e a maioria das pessoas é as duas coisas”: serve bem para mim a caracterização que James Baldwin faz de um de seus personagens [20]. Mas, prometo, não vou acelerar as coisas – as plantas têm outro ritmo. Como explica o grande Leonardo Fróes, nesses versos do poema “Terapia dos brotos [21]”:
e, em se tratando de plantas,
é a imersão na afonia.
O silêncio, sua carga
de interior teimosia,
e a capacidade lenta
de entregar cada fatia.
A natureza é engraçada,
dá sem trégua e principia
a gerar tudo de novo,
avessa à monotonia.
NOTAS BIBLIOGRÁFICAS
[1] “Respiramos, logo existimos”. Trata-se de um trocadilho para a mais conhecida frase latina da filosofia moderna: “cogito, ergo sum”, de René Descartes, traduzida tradicionalmente como “penso, logo existo”. Procuro mostrar neste texto que: (1) muito antes da faculdade de pensar (“cogitare”), é a capacidade de respirar (“spirare”) que nos define como seres vivos; e (2) a definição de vida só é possível no plural inclusivo (“spiramos” – “nós respiramos”; sumus” – “nós somos”, “nós existimos”), jamais na primeira pessoa do singular.
[2] BARROS, Manoel de. Poesia completa. São Paulo: Leya, 2010. p. 340.
[3] Versos finais da música “Suco de maracujá”, parceria de Martinho da Vila e João Donato, faixa do álbum “Brasilatinidade”, de 2005.
[4] FRÓES, Leonardo. Vertigens. Obra reunida (1968-1998). Rio de Janeiro: Rocco, 1998. p. 149.
[5] COCCIA, Emanuele. A virada vegetal. Tradução de Felipe Augusto Vicari de Carli. São Paulo: N-1 Edições, 2018. pp. 6-7.
[6] Ver: COCCIA, Emanuele. A vida das plantas. Uma metafísica da mistura. Tradução de Fernando Scheibe. Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2018. pp. 39-56.
[7] COCCIA, Emanuele. A virada vegetal. Tradução de Felipe Augusto Vicari de Carli. São Paulo: N-1 Edições, 2018. p. 5.
[8] Ver: COCCIA, Emanuele. A vida das plantas. Uma metafísica da mistura. Tradução de Fernando Scheibe. Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2018. pp. 57-67
[11] COCCIA, Emanuele. A vida das plantas. Uma metafísica da mistura. Tradução de Fernando Scheibe. Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2018. p. 12.
[12] Ver: COCCIA, Emanuele. A virada vegetal. Tradução de Felipe Augusto Vicari de Carli. São Paulo: N-1 Edições, 2018. pp 4-6.
[13] COCCIA, Emanuele. A vida das plantas. Uma metafísica da mistura. Tradução de Fernando Scheibe. Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2018. p. 52.
[14] COCCIA, Emanuele. A virada vegetal. Tradução de Felipe Augusto Vicari de Carli. São Paulo: N-1 Edições, 2018. pp. 9-10.
[15] De “krátos”, não custa lembrar, veio o morfema “-cracia”, presente em diversos nomes modernos para “tipos” de governo e de poder: “plutocracia”, “democracia”, “burocracia”. Seu sentido é próximo ao de “arkhé”, “comando”, que nos deu a “-arquia” de vocábulos como “oligarquia” e “monarquia”. Sobre as duas acepções de “dýnamis”, ver: DETIENNE, Marcel. Dioniso a céu aberto. Tradução de Carmem Cavalcanti. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988. pp. 106-107.
[16] COCCIA, Emanuele. A virada vegetal. Tradução de Felipe Augusto Vicari de Carli. São Paulo: N-1 Edições, 2018. pp. 112.
[17] Ver, por exemplo: LATOUR, Bruno. Diante de Gaia. Oito conferências sobre a natureza no antropoceno. Tradução de Maryalua Meyer. São Paulo: Ubu Editora, 2020.
[18] COCCIA, Emanuele. A virada vegetal. Tradução de Felipe Augusto Vicari de Carli. São Paulo: N-1 Edições, 2018. p. 11.
[19] Ver: COCCIA, Emanuele. Metamorfoses. Tradução de Madeleine Deschamps e Victoria Mouawad. Rio de Janeiro: Dantes Editora, 2020.
[20] BALDWIN, James. O quarto de Giovanni. Tradução de Paulo Henriques Britto. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. p. 49.
[21] FRÓES, Leonardo. Vertigens. Obra reunida (1968-1998). Rio de Janeiro: Rocco, 1998. pp. 285-286.
Ilustração de abertura: Maria Sibylla Merian, de 1719. Demais ilustrações: Carl Friedrich Philipp von Martius.
Por exemplo, no relato sobre a história do Rock, este esforço descolonizador passa por confrontar o embranquecimento imposto por narrativas que falam em Elvis como “o Rei” mas nem mencionam Sister Rosetta Tharpe como “a Vó da Matéria”. Um bom começo, portanto, é perguntar a sério, ecoando o movimento Afropunk: “o rock’n’roll foi inventado por uma mulher negra e queer?”
Para nos ajudar na tarefa de compreender o rock de uma perspectiva radicalmente anti-puritana e que recuse o conservadorismo cultural, podemos convocar a obra magistral da Barbara Ehrenreich, Dançando Nas Ruas, cujo capítulo 10 é todo dedicado à Rebelião do Rock (Ed. Record, 2010, tradução Júlian Fuks, pg. 251 a 271).
Em 20 páginas incandescentes de um ensaísmo audaz, Barbara enquadra o rock no contexto das batalhas culturais que opõem, através da História humana, o puritanismo e o hedonismo. Estes dois inimigos jurados são essenciais para a compreensão desta efervescência cultural essencialmente anti-puritana, isto é, visceralmente hedonista, que foi o rock’n’roll, filhinho mais novo e rebelde do blues.
Na compreensão de Barbara Ehrenreich, o retorno do reprimido manifesta-se com força descomunal “no final dos anos 1950 e início dos 1960”:
“A cultura anglo-americana foi arrebatada por um surto de ‘histeria’ ou ‘mania’ descrito por observadores alarmados como obsceno, perturbador e até criminoso. Nem os EUA nem a Inglaterra pareciam, em meados do século XX, o cenário provável para esse comportamento irrefreável. Ambas as sociedades carregavam o pesado fardo do legado puritano do século XVI; cada uma havia contribuído para a supressão das tradições festivas e extáticas entre os povos colonizados – ou, no caso dos norte-americanos, escravizados. Mas pode ter sido exatamente esse sucesso em expugnar tradições extáticas ‘estrangeiras’ que aumentou a vulnerabilidade desses países ao chamado, quando ele veio, para levantar-se, mover-se, dançar e gritar.” (pg. 151)
A rebelião roqueira, quando se faz fenômeno de massas, manifesta o retorno do reprimido: e o que é tradicionalmente vítima da repressão puritana é justamente o corpo e seus movimentos mais livres, sobretudo aqueles que erotizam e tornam “irrefreável” o organismo de alguém que passa a ser considerado como possuído pelo demônio do ritmo. Barbara destaca que o rock explodiu no cenário cultural como uma hipérbole da movimentação corporal – do qual a pélvis de Elvis tornou-se o emblema, mas que também tinha representantes fortes em Bill Haley e seus Cometas, Chuck Berry, Bo Diddley, Little Richard, Fats Domino, as Ronettes, dentre outros flamejantes precursores do novo ritmo.
“É claro que os músicos de rock tinham certa responsabilidade pelo comportamento desregrado dos fãs, nem que fosse pelo fato de também se moverem – dançando e pulando ao som de sua própria música de uma maneira que chocava e ofendia os observadores mais velhos. (…) Uma boa parte do frisson do início do rock se devia aos movimentos rítmicos e muitas vezes com conotação sexual dos cantores – mover os quadris, colocar a pélvis para frente, sacudir os ombros, pular e cair no chão… a nova música era inseparável dessa movimentação criativa, livre e ritmada. Elvis Presley foi pioneiro nessa expressividade física, tendo feito com que o programa de TV do Ed Sullivan, voltado para as famílias, censurasse a parte de baixo de seu corpo não mostrando-a na tela.
Bo Diddley, um músico negro, não teve tanta sorte. Seu contrato de 1958 com uma rede nacional de TV estipulava que ele tinha de cantar sem se mexer de maneira a ‘preservar a decência. Uma vez no ar, ele esqueceu a regra ou, mais provável, simplesmente achou impossível separar seu corpo da música e teve que pagar uma multa alta.” (p. 254)
O rock não tem fama de encrenqueiro à toa. O que esquecem de contar sobre este tema é que boa parte da reputação de troublemaker foi construída também pela oposição, ou seja, pela galera anti-rock que quase sempre é apegada a um dogma puritano que ordena à juventude ficar parada e sentada – rebolar a bunda é coisa do Capeta. O livro Anti-Rock: The Opposition to Rock’n’roll de Linda Martin e Kerry Segrave está recheado de exemplos de tradicionalistas-conservadores declarando guerra aos roqueiros e suas bagunças – frequentemente pedindo ajuda à polícia para pôr ordem no caos.
Os fãs de rock e a polícia a serviço do status quo nunca se deram bem – perguntem aos músicos do Jefferson Airplane e eles responderão que “assim que a galera levantavam para dançar… os policiais desligavam os amplificadores”; os Rolling Stones também se cansaram de ver o pau quebrar entre seus fãs e policiais; e são também lendários os discursos de Jim Morrisson, defendendo os “desordeiros” que iam aos shows do The Doors e criticando as barreiras policiais que separavam o público da banda (atitudes assim que lhe renderam alguns baculejos e prisões).
Segundo Ehrenreich, “os fãs queriam ter liberdade de movimento e autoexpressão física que horrorizava o mundo adulto – uma chance de se misturar uns com os outros, de se mover ao ritmo da música e em seguida se afirmar nas ruas…” (p. 253) A autora destaca que os termos utilizados para falar da febre roqueira, frequentemente com uso e abuso de expressões como histeria e mania, demonstra que precisamos de muita Psicologia de Massas para compreender o que se passava nestes capítulos intensos do antagonismo ancestral entre puritanos e hedonistas – no caso, entre disciplinadores de corpos contra os que reivindicavam seu direito à movimentação corporal mais livre.
A mais famosa das manias históricas relacionadas com a Rebelião do Rock revela a extensão da efervescência que tomou conta da juventude: “os adolescentes fanáticos pelos Beatles de fato silenciavam seus heróis com berros frenéticos. Durante turnê pelos EUA, em nenhum momento o grupo conseguiu se fazer plenamente audível em meio aos gritos, o que fez com que seus integrantes abandonassem o palco em um show de 1966, apenas 2 anos depois de sua primeira aparição no país. (…) Quando se tratava de rock, os jovens não estavam mais dispostos a aceitar a forma convencional de espetáculo, em que grandes quantidades de pessoas devem permanecer sentadas e em silêncio enquanto uns poucos e talentosos tocam.” (EHRENREICH, op cit, p. 255)
O rock queria promover um jailbreak dos corpos enjaulados e reprimidos por aquilo que Wilhelm Reich, Marcuse ou Norman Brown denunciavam como a sociedade repressora responsável por envenenar Dionísio, trancafiar Eros e endeusar o ascetismo puritano que está nas origens do “espírito do capitalismo” (segundo a genealogia de Max Weber). A sociedade disciplinar, ascética, que impõe uma ética do trabalho em prol do consumo e da poupança, colonizando corpos e mentes no sentido de atrofiar seus movimentos e gerar em série um caráter “encouraçado”, rígido, dogmático, apegado fanaticamente a dogmas e padrões de comportamento, sofre um abalo com a efervescência roqueira e sua ânsia de participação, de êxtase coletivo, de movimentação expandida.
A Rebelião do Rock não é apenas dos artistas, mas do público: uma “insurgência da geração pós-guerra, entediada e reprimida”, que foi também uma “rebelião que alimentou uma contracultura muito difundida, que em troca ajudou a animar um movimento político de reação à guerra e às injustiças sociais. A rebelião do rock também foi algo mais simples e menos ostensivamente político – uma rebelião contra o papel instituído à platéia. Na história das festividades, a grande inovação da era moderna havia sido a substituição de velhas formas mais participativas de festividades por espetáculos em que a multidão serve apenas como público.” (p. 255)
Em síntese, a Barbara Ehrenreich está dizendo que a platéia passiva, quieta, sentada, comportada, imóvel, apática, é uma invenção histórica recente. Esta platéia foi construída pela hegemonia de uma cultura puritana, calcada no recalque, baseada na repressão. A plateia de um concerto de música clássica, de uma ópera ou de uma peça teatral tradicional serve como paradigma desta platéia “engessada”. Já o rock é uma das facetas do retorno deste reprimido que é o êxtase coletivo, a ânsia de participação, as vontades dos corpos de libertarem-se de inibições, couraças e jaulas invisíveis.
“O rock em geral recebe o crédito – ou é tido como culpado – por desafiar a inibição sexual… nesse sentido, a música serviria apenas para transportar o branco reprimido de classe média a sensibilidade sexual menos inibida dos afro-americanos. (…) Para as mulheres, até o sexo devia ser imóvel e passivo… Nos EUA, o livro mais vendido da época (1960s) a respeito de conselhos matrimoniais alertava contra os ‘movimentos’ femininos durante o sexo… Por isso, em grande medida, o apelo particular para as adolescentes da mania do rock. Elvis e especialmente os Beatles inspiravam um tipo de histeria de massa nas multidões de garotas brancas, que pulavam, gritavam, choravam, desmaiavam e até molhavam as calças na presença de seus ídolos.
Para observadores adultos, a Beatlemania era patológica – uma epidemia que tinha os Beatles como transmissores… Ex-Beatlemaníacas, porém, contam que a experiência proporcionava uma sensação de poder e libertação. Reunidas na multidão, garotas que sozinhas podiam ser tímidas e obedientes romperam barreiras policiais, invadiram palcos e, é claro, por meio de suas ações, fizeram com que aquele grupo de 4 músicos acabasse se tornando a banda mais famosa e bem-sucedida de toda a história.
O rock teve esse impacto tão forte no final dos anos 1950 e início dos 1960 porque o mundo dos brancos em que se disseminou estava congelado e fragilizado – tanto pela imobilidade física quanto pelas repressões emocionais. (…) O rock, com suas exigências de participação física imediata e descuidada, abalou essa frieza, intimou o corpo a agir e tirou a mente desse isolamento e dessa contrição que vinham definindo a personalidade ocidental.
Para o líder dos Panteras Negras, Elridge Cleaver, os brancos que eram fãs de rock estavam tentando recuperar ‘seus corpos depois de gerações de alienação e existência desencorpada’:
“Pulavam, giravam e balançavam seus traseiros mortos como zumbis petrificados tentando recuperar o calor da vida, reacender os membros mortos, o traseiro frio, o coração de pedra, dar às juntas rígidas, mecânicas e em desuso uma fagulha de vida.” (EHRENREICH, p. 260)
PARTE 2: AS BACANTES SEMPITERNAS
O XAMANISMO COM AMPLIFICADORES
Há um capítulo magistral de Dançando nas Ruas (Dancin’ In The Street) em que Barbara Ehrenreich fala sobre as raízes arcaicas do êxtase coletivo. A palavra “arcaicas”, no caso, refere-se não a algo de velho e mofado, já caído em desuso e aposentado da História, mas sim a algo que está na raiz do nosso tempo presente, ainda alimentando com seiva algo vivo e pulsante. Arcaico – é também uma das lições fundamentais de gurus psicodélicos como Terence McKenna e Alan Watts – é aquilo que tem enraizamento em um passado muito distante, mas cuja raiz ainda hoje nutre uma árvore viva e nossa contemporânea, com sua eclosão vivificante de folhas, frutos, sementes.
O tempo arcaico segue agindo no tempo contemporâneo como um rio que flui lá do passado mais remoto e penetra com suas águas torrenciais no território do presente: é um passado que conflui com o agora, conectando-nos ao que passou, vinculados ao que foi ao invés de alienados de qualquer tradição e pertença. Ao conectar com as bacantes e sátiros sempiternos, que atravessaram os tempos em celebração da existência, sentimo-nos Unidos e solidários aos que hoje descansam seus ossos debaixo desta terra. Terra esta onde labutamos e dançamos em aliança diversa, ao invés de trancados na estreiteza de um fluxo nonsense de momentos efêmeros e desconexos, presos na gaiola de um eu solitário e que se ilude com a separatividade. O êxtase congrega, a tristeza isola.
“No antigo mundo ocidental, muitas deidades serviam como objeto de adoração extática: na Grécia, Ártemis e Deméter; em Roma, as deidades importadas: Ísis (do Egito), Cibele, a Grande Mãe ou Magna Mater (da Ásia Menor), e Mitas (da Pérsia). Mas havia um deus grego para o qual a adoração extática não era uma opção, mas uma obrigação… Esse deus, fonte de êxtase e terror, era Dioniso, ou, como era conhecido entre os romanos, Baco. Sua jurisdição mundana cobria os vinhedos, mas a responsabilidade mais espiritual era presidir a orgeia (literalmente, ritos realizados na floresta à noite, termo do qual derivamos a palavra orgia), quando os devotos dançavam até chegar a um estado de transe.
Ainda mais do que as outras deidades, Dioniso era um deus acessível e democrático, cujo thiasos, ou elo sagrado, estava aberto tanto aos humildes como aos poderosos. Nietzsche interpretava esses ritos da seguinte maneira: ‘O escravo emerge como homem livre, todos os muros rígidos e hostis erigidos entre os homens pela necessidade ou pelo despotismo são despedaçados.’
Foi Nietzsche quem reconheceu as raízes dionisíacas do drama grego antigo, ao ver a inspiração louca e extática por trás da majestosa arte dos gregos – que, metaforicamente, ousavam levar a cabo não apenas a imortal simetria do vaso, mas as loucas figuras dançantes pintadas em sua superfície. O que o deus demandava, segundo Nietzsche, era nada menos que a alma humana, liberada pelo ritual extático do ‘horror da existência individual’ e transformada na ‘unidade mística’ do ritmo proporcionado pela dança.” (EHRENREICH, p. 48)
Longe de ser apenas de interesse para helenistas ou estudiosos de religiões antigas, a celebração comunal, vinculada no mundo greco-romano aos cultos a Dioniso e Baco, prossegue ativa em tempos contemporâneos.
O livro de Barbara Ehrenreich é uma das melhores visões panorâmicas da busca pelo êxtase coletivo através da história e tem entre seus méritos uma postura simpática aos fenômenos estudados. Ela não condena, com fúria puritana, os rituais dionisíacos, o vodu haitiano, a capoeira ou o samba afrobrasileiro, os festivais de rock da Geração Hippie etc., mas busca compreender com empatia uma necessidade humana, existente desde tempos imemoriais, de celebração coletiva e de vitória sobre o terrível confinamento na solidão de um eu isolado.
Dançando Nas Ruas, pois, parece-me um livro magistral, de alto potencial libertário, que une-se aos esforços Emma Goldman, pensadora política anarquista célebre por dizer: “Não é minha revolução se eu não puder dançar”.
Além disso, Barbara Ehrenreich realizou uma obra de interesse filosófico, ou mesmo teológico, afirmando que a experiência de re-encontro com o arcaico, de re-ligação com a fonte, é descrita por muitos que a vivenciam como uma revolução em nossa percepção temporal, uma percepção imediata ou insight súbito da eternidade do aqui-agora. Na companhia de gurus como Terence McKenna, Barbara nos convoca a um revival do que há melhor na psiconáutica arcaica.
O livro contribui imensamente para o estudo e a compreensão do misticismo, podendo iluminar e elucidar a leitura de obras cruciais como a de William James, AsVariedades da Experiência Religiosa, e Heinrich Zimmer, Filosofias da Índia, que talvez sejam as mais impressionantes reuniões de testemunhos sobre a experiência mística. Para uma visão mais contemporânea, que vincula a unio mystica ao consumo de substâncias enteógenas, vale sondar as reflexões de Aldous Huxley em Moksha e de Alan Watts por sua obra afora.
Quando transcendemos a prisão do eu, a jaula do isolamento, a percepção falha que nos leva a crer na possibilidade de nossa existência independente e separada do cosmos que a circunda e inclui, aí então podemos abraçar um aqui-agora que têm densidade temporal. Que tem peso de eternidade. “Eternal Now”, como dizia Watts. Aí percebemos – ainda que para ter este insight às vezes necessitemos de muito estudo do budismo, de muita prática da meditação e doyôga, de algumas gotas de um bom ácido lisérgico ou DMT… – que a interconexão é a verdade do real.
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“Wonder”, uma obra de Alex Grey
Não somente somos todos interconexos, ligados a toda a teia da vida; além disso, isto não se esgota no presente imediato. O rio do passado vem regar-nos o presente e vivificar nossa construção comum de um presente futurível (para lembrar um neologismo esperto inventado por Gilberto gênio Gil).
Somos efêmeros contemporâneos da eternidade onde estamos incluídos. A Energia no Universo, garantem os cientistas, pode se transformar mas jamais ser nadificada; os átomos e o vazio, desde Epicuro, são tidos por indestrutíveis! Esta percepção é aquilo que bacantes e mênades buscam – e às vezes acham – em seus rituais musicais, dançantes, psicodélicos: buscam habitar um tempo de êxtase coletivo, de joy na vivência da interconexão. É uma utopia que propõe a re-união e a comum celebração, um hedonismo sábio que propõe que não cortemos todas conexões com o rio do “foi-se e acabou-se”, para então prender-nos em um imediatismo niilista que nos deixaria apenas vagando ao léu, como náufragos agarrados a um pedaço de madeira que flutua no mar após a embarcação ir a pique.
Arcaicas – antigas mas ainda ativas! – são as variadas “técnicas do êxtase”. Esta, aliás, era uma das expressões prediletas que Mircea Eliade usava como ferramenta conceitual crucial para a compreensão e caracterização dos misticismos, do mais variado colorido, reunidos às vezes sob o nome de “xamanismo” e outras vezes sob a alcunha de “paganismo” ou termo semelhante.
No tal do xamanismo, com enorme frequência, as técnicas do êxtase – o caminho que é preciso realizarmos junto até que sejamos uma coletividade capaz de celebração extática e auto-transcendência – são inseparáveis da dança e da música.
Este é um dos argumentos centrais do livro genial de Ehrenreich: êxtase tem tudo a ver com dança, com música, com expansão da consciência, com transcender o eu e abraçar o coletivo. Um ímpeto primaveril que atravessa a História, da tragédia grega de 25 séculos atrás até os festivais hippie à la Monterey e Woodstock. Mostrando que os laços sociais vinculados à busca humana, trans-histórica e trans-cultural, de êxtase coletivo são umbilicalmente vinculados com música, dança e alteração da percepção intelectual-sensível através do consumo de substâncias (naturais ou sintéticas) ditas estupefacientes.
Apesar de toda repressão, de todo o sangue derramado por Inquisições, de toda a perseguição autoritária, de todo o proibicionismo bronco dos carolas, Pan, Baco, Deméter, Dioniso, Shiva e toda a trupe dos deuses dançantes e orixás bailantes seguem vivendo e atuando nos corações e mentes de seus carnais celebrantes.
Aquilo que Ehrenreich chama de collective joy, ou que Durkheim chamava de efervescência coletiva, é aquilo que sente-se no meio da torcida em um estádio de futebol quando explode um gol; mas também o que toma conta da vivência da platéia de um show do Jimi Hendrix Experience ou de Janis Joplin e o Big Brother Co. em pleno “Verão do Amor”. É aquela vivência que nos faz transcender a jaula do ego, rumo à inenarrável e estarrecedora experiência de estar acompanhados sob as estrelas, queimando sob o Sol, “todos juntos reunidos numa pessoa só” (como canta Arnaldo Baptista em canção d’Os Mutantes).
Os viventes precários que somos, que tentam somar e solidarizar-se, porém tanto separam-se e segregam-se, podem estar boquiabertos ou apáticos diante dos mistérios do mundo e de nossos vínculos secretos, com ele mundo e uns com os outros; a dança, a música e os estupefacientes são caminhos, uma espécie de multicolorido e polifônico tao, que servem para delinear como as culturas possibilitam a busca de fazer-acontecer o êxtase comunal. São técnicas para a realização das utopias, e não sua mera espera passiva. São técnicas do êxtase que hoje tem o auxílio da eletricidade, do ciberespaço, dos mega-amplificadores, das salas de cinema digital, de todo o aparato tecnológico-científico ainda tão desperdiçado com a estupidez bélica hi-tech. Invistamos, pois, nas arcaicas técnicas do êxtase!
“A dança grupal é a grande niveladora e conector das comunidades humanas, unindo todos os que participam no tipo de communitas que Turner encontrou nos rituais nativos do século XX. (…) Submeter-se corporalmente à música por meio da dança é ser incorporado por uma comunidade de uma maneira muito mais profunda do que o mito compartilhado ou os costumes comuns podem atingir. Nos movimentos sincronizados com o ritmo da música ou de vozes que cantam, as rivalidades mesquinhas e as diferenças de facções que podem dividir um grupo são transmutadas em uma inofensiva competição de quem é o dançarino mais hábil… “a dança”, como coloca um neurocientista, é a “biotecnologia da formação do grupo.”
Desse modo, grupos – e os indivíduos que os constituem – capazes de se manter juntos por meio da dança teriam possuído uma vantagem evolucionária em relação aos grupos ligados por laços menos fortes. (…) Nenhuma outra espécie jamais conseguiu fazer isso. Pássaros têm suas músicas características; vagalumes podem sincronizar a luz que emitem; chimpanzés às vezes podem bater os pés juntos e balançar os braços fazendo algo que os etologistas descrevem como um “carnaval”. Mas, se quaisquer outros animais conseguiram músicas e se mover em sincronia com ela, mantiveram esse talento bem escondido dos humanos.” (EHRENREICH, 2006, p. 37, trad. Julián Fuks)
A dança e a música, apesar de reduzidas, nas idéias estreitas de muitos de nossos contemporâneos, a meras mercadorias ou a reles entretenimentos, são algo que conecta-nos hoje à arcaica e ancestral peculiaridade humana, no seio da natureza, que é o fato de estarmos em busca de collective joy, êxtase comunal ou coletivo. Este é um fio que atravessa a história da espécie e que é inapagável, inextipável, incapaz de ser assassinado por quaisquer repressões autoritárias. É uma força resiliente, que sobrevive a todos os tiranos, e que têm como um de seus símbolos mais memoráveis, na história da arte, a batalha épico-trágica das Bacantes com o tirano de Tebas, Penteu, na peça de Eurípides.
As Bacantes, mais do que apenas uma obra-prima da dramaturgia universal, pode ser debatida como documento histórico, etnográfico, transmutado em obra-de-arte pelo engenho daquele que foi, com Ésquilo e Sófocles, um dos autores de dramas que sobreviveu a 25 séculos de transmissão histórica, da Grécia de IV a.C. até o Bixiga paulistano deste 2017 depois do Nazareno. Algo há aí, na resiliência de As Bacantes, na sua capacidade de manter-se com um monte a dizer e ensinar aos nossos próprios tempos, que explica como José Celso Martinez Côrrea pôde reativar a potência da peça nestes anos de 2016 e 2017, com os resultados acachapantes e geniais que já nos acostumamos a esperar do Teatro Oficina, Uzyna Uzona.
O Teatro Oficina é uma pérola refulgente neste pântano esmerdeado de nossa lambança nacional. É resistência e celebração – arte reXistente – que ativa um cyber-terreiro, uma arena-dionisíaca, um microcosmo-da-utopia, onde o Brasil mostra ao mundo o que tem de melhor: a exuberância irreverente de um povo que ginga em busca de um êxtase coletivo, traçando seu próprio caminho, no ritmado enraizado que lhe infundiram séculos de miscigenação e convívio entre gente de culturas do mais pluridiverso colorido.
Nas peças do Oficina, aparece sempre – mesmo quando trata-se de adaptações de autores gringos como Antonin Artaud (Para Dar Um Fim No Juízo De Deus) ou Schiller (Os Bandidos) – dá as caras um Brasil que está sempre recaindo em antagonismos, em querelas, em ríspidas lutas e mortíferas guerras.
As bacantes brazucas nunca podem celebrar em paz, pois são, a despeito de suas vontades, empurradas para uma arena de combate (ah, tiranos! elas só queriam beber vinho, dançar, celebrar! Por que cabeças teriam que rolar?!?); as mênades, proto-hippies da paz e do amor, dançantes e cantantes, re-ativadoras da força sempiterna do conatus, chocam-se contra os poderes do autoritarismo puritano e seus braços armados. A resiliência, a capacidade de sobrevivência da peça de Eurípides – vivíssima no Brasil de 2017! – está também na persistência. no nosso processo histórico, da batalha que o aquele fight – Bacantes versus Penteu – simboliza.
PARTE 3: TEATRO OFICINA E A VIVACIDADE DA ANTROPOFAGIA ANTIPURITANA OSWALDIANA
A utopia que vem conectada ao trampo do Oficina ou à antropofagia de Oswald de Andrade, empreendimentos de sintonia íntima, tem a ver com um renascimento do dionisismo, ou seja, de uma cultura onde a celebração coletiva, a alegria dos vínculos estabelecidos sobre as ruínas da egolatria, seja mais potente do que a cultura, imposta de cima pra baixo com a voz grossa e bruta do Patriarcado repressor, que manda sempre postergar todos os gozos, desistir de campanhas inovadoras ou revolucionárias, conformar-se com a monocromia de uma vida cinza, de tédio e monotonia, de servil obediência aos que mandam mortificar a carne e sacrificar o presente, em nome de um tíquete de entrada prum futuro paradisíaco no além-túmulo…
As bacantes – mulheres que saem dos trilhos da cotidianidade, deixando suas posições obedientes na hierarquia de comando masculinista, machista, autoritária… – e vão para a floresta, não só para fugir por um pouco da dureza do dia-a-dia, mas para celebrar a existência e a liberdade, para buscar a força em uma imersão num coletivo que, com forças reunidas, pode muitos, mas muuito mais, do que qualquer indivíduo solitário, por mais fortão e musculoso que seja. A ética e a estética homéricas, que celebram em Aquiles ou Ulisses um heroísmo muito marcado pelas fúrias bélicas, têm nas bacantes, nas celebrantes dionisíacas, nas mênades dançantes e de cabelos esvoaçantes, a celebração da paz, não da guerra; da harmonia e da sincronia, não do antagonismo; do êxtase, não do massacre.
“Friedrich Nietzsche, o clássico indivíduo solitário e atormentado do século XIX, talvez tenha entendido a terapêutica do êxtase melhor do que qualquer outro. Em um tempo de celebração universal do ‘eu’, ousou falar sobre o ‘horror da existência individual’ e vislumbrou o alívio nos antigos rituais dionisíacos que só conhecia por meio de leituras – rituais em que, ele imaginava, ‘cada indivíduo não apenas se reconcilia com o outro, mas une-se a ele – como se o véu de Maya tivesse sido rasgado e só restassem retalhos flutuando ante a visão de uma Unidade mística. (…) Cada um sente a si como a um deus e caminha a passos largos com o mesmo júbilo e o mesmo êxtase dos deuses que viu em seus sonhos.” (EHRENREICH, op cit, pg. 184)
Zé Celso e sua trupe são no país aquelas forças que com mais exuberância servem como porta-vozes destas idéias, entremescla de Nietzsche com Oswald de Andrade, de Artaud com Brecht, e apesar do impiedoso tempo que nos arrasta à velhice e ao inevitável túmulo esta figuraça quintessencial de nossa cultura parece continuar em eterno verão – para citar o título de excelente reportagem e entrevista do El País:
“Um dos grandes mestres do teatro brasileiro está prestes a completar 80 anos. Lúcido, sorridente, atuante. Muitos se perguntam qual é o segredo de José Celso Martinez Corrêa (Araraquara, 1937), o Zé Celso, para preservar tamanha energia e criatividade depois de 58 anos à frente do icônico Teatro Oficina – símbolo de resistência artística (e política) cravado no Bixiga, em São Paulo. Mas a verdade é que desse “xamã do teatro”, como ele gosta de se definir, não há segredos para se arrancar. Na entrevista concedida ao El País com os pés ao alto, em meio a uma nuvem de erva queimada, o dramaturgo vestido de um branco alvo como os fios de seus cabelos mostra que não tem assuntos proibidos, respondendo a esta altura da vida com voz suave tudo o que lhe é indagado. Isso, sim: sem fim, nem começo e pelos caminhos que lhe parecem.
A um desses caminhos ele volta sempre: a encenação de Bacantes, o clássico grego de Eurípedes montado pela primeira vez no Oficina em 1995 (em versão brasileira do diretor, no gênero “tragicomédia orgia”), que reestreou no Sesc Pompeia e logo passou ao Bixiga em outubro de 2016. A peça, de quase seis horas e com 52 atuadores em cena, reconstitui o ritual de origem do teatro na Grécia em 25 cantos e cinco episódios e tem música composta por Zé Celso (que também assina autoria e direção).
Encenada como ópera de Carnaval para cantar o nascimento, morte e renascimento de Dionísio, o deus do teatro, do vinho e das festas, ela tem lotado a casa tanto com habitués, como com novos assistentes – atraídos pela nudez libertária do elenco e às vezes também do público, pela genialidade do diretor, pela história ou por tudo ao mesmo tempo. A ideia é que os espectadores se integrem ao bacanal, e alguns deles terminam despidos pelos atores. Na primeira versão, isso aconteceu com Caetano Veloso. Por causa do sucesso orgiástico de Bacantes, Zé Celso ganhou ainda mais força e voz, voltando à carga em seus temas preferidos: teatro, política e xamanismo – que para ele são um só.
Para Zé Celso, duas coisas podem salvar o país da crise política em que começou a mergulhar em 2014: o xamanismo, claro, e a arte. O que ele procura é juntar as duas coisas, rumo à “revolução cultural” que o ex-presidente uruguaio Pepe Mujica prega como a única saída para esses tempos obscuros.” (MORAES, Camila. O Eterno Verão de Zé Celso. El País.)
“Todas as nossas reformas, todas as nossas reações costumam ser feitas dentro do bonde da civilização importada. Precisamos saltar do bonde, precisamos queimar o bonde.” OSWALD DE ANDRADE, “Contra Os Emboabas” (via Bia Azevedo, p. 68)
Se digo que 2016 não foi de todo um ano catastrófico neste país golpeado e achincalhado por suas escrotas elites canalhocratas, mas teve sim seus esplendores e glórias, é pois a nossa arte e nossos artistas mais relevantes e geniais não nos decepcionaram. Em 16 de Abril de 2016, na véspera da votação do impeachment de Dilma Rousseff na Câmara dos Deputados, então presidida por Eduardo Cunha, estivemos na peça do Teatro Oficina, Para Dar Um Fim No Juízo De Deus.
Saí do teatro de alma lavada e com os ímpetos dionisíacos re-turbinados, orgulhoso dos artistas desta terra e certo de que a política, enfim, não é tudo – que um lamaçal ético sem fim, na Esplanada dos Ministérios, não impede a refulgência de uma contracultura que não se cala, que manifesta-se com exuberância, que abraça a resistência com todo a verve, todo o ímpeto, toda interconexão de uma trupe de mênades e sátiros. E, além disso, saí do teatro com a impressão de ter vivenciado uma imersão não só no universo de Artaud, mas, é claro, no de Oswald de Andrade, constantemente evocado por Zé Celso e sua trupe. Desde os anos 1960, quando encenou O Rei da Vela, o Oficina tem sido talvez o mais resiliente e fiel coletivo que honra o legado da utopia antropofágica oswaldiana.
Também em 2016, caiu no mercado um livro – Antropofagia: Palimpsesto Selvagem, de Beatriz Azevedo – que foi de imediato saudado por Eduardo Viveiros de Castro como “destinado a se tornar referência obrigatória para todo estudioso da obra deste que é, sem a menor sombra de dúvida, um dos maiores pensadores do século XX”.
Viveiros de Castro pode até soar hiperbólico em seu elogio a Oswald como figura crucial no panorama do conhecimento global no século que se acabou, mas isto mostra o quanto este pensamento, longe de ser paroquial ou nacionalista, pode ser também uma espécie de produto de exportação autenticamente original gestado e gerado no solo fecundo da cultura brasileira. Queimando o bode da submissão e da subserviência às civilizações importadas e imperialistas.
Quem enxergou isso muito bem, como lembra Bia Azevedo, foi o Roger Bastide, sociólogo francês, que lecionou na USP e publicou em 1950 o livro clássico Brasil: Terra de Contrastes: “Oswald devora as teorias estrangeiras como a cidade devora os imigrantes, transformando-os em carne e sangue brasileiros.” (BASTIDE, apud Azevedo, p. 70)
O antropófago Oswald “comeu” toda a diversidade das culturas estrangeiras, mas na hora do vamos ver foi lá e criou algo de novíssimo, algo de revolucionário. “O antropólogo Eduardo Viveiros de Castro afirma que ‘a Antropofagia Oswaldiana é a reflexão metacultural mais original produzida na América Latina até hoje. Era e é uma teoria realmente revolucionária.” (VIVEIROS DE CASTRO, apud Azevedo, p. 24)
A antropofagia é descrita como utopia no título de um dos livros de Oswald que a Ed. Globo recolocou no mercado e que traz textos clássicos como A Crise Da Filosofia Messiânica. Filosoficamente, Oswald tinha muitas similaridades e alianças com o pensamento de Nietzsche, e pode-se dizer que a antropofagia dialoga com o “dionisismo” como este aparece na obra do autor de Assim Falava Zaratustra.
Oswald também é um crítico mordaz da civilização ocidental racionalista e repressora, que dá todas as honras a Apolo, a Sócrates, a Descartes, soltando os cachorros de sua feroz repressão contra Dioniso, contra Baco, contra mênades e bacantes, contra feiticeiras e heréticos… Oswald defende o caminho da “valorização do lúdico e da arte”, aproxima-se das teses de Huizinga em Homo Ludens no que diz respeito à presença em todas as culturas, de quaisquer latitudes e longitudes, da “constante lúdica”:
“O inexplicável para críticos, sociólogos e historiadores, muitas vezes decorre deles ignorarem um sentimento que acompanha o homem em todas as idades e que chamamos de constante lúdica. O homem é o animal que vive entre dois grandes brinquedos – o Amor onde ganha, a Morte onde perde. Por isso, inventou as artes plásticas, a poesia, a dança, a música, o teatro, o circo e, enfim, o cinema.” – OSWALD DE ANDRADE, “A Crise da Filosofia Messiânica” (Globo, 2001, p. 144)
Diante do superaquecimento climático e das infecções virais de magnitude planetária, ganham atualidade renovada obras como a de Banksy – em que o “siga seus sonhos” acaba sofrendo a intervenção de um “CANCELLED” (foto que abre este post), grafite no qual há um pouco do eco das melancólicas cantorias de John Lennon, no hino ateu “God”, que anunciavam o descenso do utopismo hippie: the dream is over. O Sonho acabou e Deus não passa de “um conceito através do qual medimos nossa dor…”
Os exemplos poderiam ser multiplicados: do diálogo de Mafalda com o caranguejo, na obra de Quino, à atual proeminência do enredo de Snowpiercer – O Expresso do Amanhã (filme do sul-coreano Bong Joon-Ho que transformou-se num arrasa-quarteirão da Netflix), o clima cultural ou zeitgeist aponta para esta desconfiança no futuro.
O sci-fi distópico expressa à maravilha este zeitgeist através de obras primas como Children Of Men (de Alfonso Cuáron, baseado em livro de P.D. James), onde o colapso da fertilidade humana e a proliferação de autoritarismos totalitários e hightech tornam sombrio e bleak o mundo humano que tenta se defender da extinção… Estas representações do futuro e suas ressonâncias psíquicas não são elas mesmas as causas mas sim os efeitos de uma realidade concreta e objetiva onde o capitalismo se mostra não só uma máquina mortífera (nas mãos de Bolsonazis, explicitamente genocida!), mas também como produtor em massa de epidemias de sofrimento e adoecimento psíquico-afetivo. Um $istema que coloca o sujeito em ansiedade perpétua, quando não o lança ao pânico ou ao suicídio – “será que o futuro é tão ruim que ele está voltando?”, reflete Mafaldita.
Escrevo, neste início de Fevereiro de 2021, tendo no “futuro coletivo” a imagem de um Carnaval que certamente será atípico. E que também seria melhor se nem fosse… A sinistra ameaça com que Gonzaguinha (revivido por Elza Soares no Planeta Fome) brincava, falando ao destinatário de “Comportamento Geral”: “Seu Zé, e se acabarem com seu Carnaval?” – agora se realiza: no Brasil de Fevereiro de 2021, com 300.000 cidadãos transformados em cadáveres pela política irresponsável, negligente e concretamente genocida de Bolsonaro e sua seita, não vai ter Carnaval “normal” p%&* nenhuma! O “ideal” – a que ele se reduziu! – seria que carnavalizássemos através de uma infinitude de Bondes do Isolamento e Blocos do Eu Sozinho… Escolas de samba reunidas pelo Google Meet, cada um sambando no seu quadrado, dentro do próprio dormitório…
Festa triste num país adoecido, e tornado ainda mais doente pelo fascismo social que se esparrama por aí, pelas bolhas do Zapistão e nos antros de doutrinação que são igrejas, templos e casas da Família Tradicional Brasileira que assista à Mídia Hegemônica Nacional…
E muitos de nós vamos entrando para as estatísticas dos adoecidos psíquicos justamente pois colapsa para nós a chance de caminhar na direção do futuro com algum senso de confiança, de propósito, de abertura a algo que pode ser bom. O futuro-melhor parece ter sido cancelado e os necrocapitalistas só colocaram no lugar a ameaça do pesadelo totalitário – o interesse privado de muitos poucos sendo colocados acima dos interesses da maioria da humanidade, enquanto nossa irreflexão e nossa imaginação utópica carcomidas pelo conformismo tornam emblemático da época o dito: “é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo…”
É justamente nesta deterioração do futuro que Mark Fisher, inspirando-se em Franco Berardi, vê a chave para compreender a profusão de adoecimento psíquico que se dissemina na esteira do terrível mote capitalista-neoliberal – não há alternativa. A História acabou, como pregou Fukuyama, contente-se, se possível, com o capitalismo tal como ele se constituiu com Pinochet, Tatcher e Reagan – todas as alternativas a ele eram ilusórias ou colapsaram. Fato? Ou ideologia?
Numa sociedade fraturada e doente, com a infecção viral disseminada a partir de deliberada campanha de desinformação de tamanho federal, o futuro tornou-se pior que apenas incógnita ou mistério: o futuro tornou-se pesadelo. E nossas mentes padecem sobre o peso deste pesadelo distópico patrocinado e praticado por aqueles que parecem querer transformar isto aqui numa imensa Devastolândia…
Desta enrascada só sairemos com terapia coletiva, que inclui necessariamente a cura que concerne à memória – nós adoecemos, como sociedade, por desmemória, por termos feito tão pouco e tão mal uma espécie de Comissão Nacional da Verdade transformada em movimento cívico… Verdade, transparência, direito à memória, entre nossas bandeiras e estandartes: nisso falhamos (por enquanto!), ou melhor, ficou sendo tarefa para nosso porvir – e comecemos já!
Para além da divisão das seitas, da discordância política altamente divisória que tem nos fragmentado, conseguimos concordar, brasileiros, que o Sofrimento Interno Bruto só tem aumentado? E que 250.000 pessoas, nossos concidadãos, perderam a vida neste tsunami da morte? Mas hoje quero falar também do tsunami da Vida – e da implausível mas possível emergência de um ecosocialismo biofílico.
Nosso povo tem sofrido pra caramba nos anos desgovernados pela Bolsocracia: eis uma hipótese que podemos ter consenso em concordar? A dor geral não foi incrementada? As pessoas passaram a sofrer mais do que antes, na crise pandêmica que ora atravessamos (2019 a 2021)?
Perguntar pelo montante de sofrimento psíquico pode parecer uma tarefa irrisória a que se propõe o filósofo entediado em seu tempo de folga entre aulas. Mas expor a tarefa de pensar sobre o sofrimento coletivo é mais do que necessário caso queiramos qualquer tipo de terapia coletiva – em contraposição à privatização das terapias que vemos proliferando. Compre sua terapia no Mercado das Muletas Psíquicas! Te ofertaremos, em parcelas (“Débito ou Crédito, senhorita?”, pergunta uma voz robótica ao consumidor meio-zumbi, a oportunidade de ser são: São Consumidor, compre a cura para a Depressão que o próprio compra-compra causou!
Estamos falando de sofrimento psíquico, da hipótese de que sua quantia tenha tido um ascenso, um papo que parece não levar a nada senão a um fluxo agridoce de uma um pouco aporrinhante “melancolia de esquerda”, como explora o filósofo Enzo Traverso em seu livro… Esquerdista e melancólico: esta a união que deu fio à jornada, à travessia, de um Walter Benjamin – à luz de seu suicídio, como poderíamos ignorar que o psíquico é político? Que a melancolia tem causas sociais? E que Benjamin morto por suas próprias mãos não deixa de ser um crime atroz dos nazifascistas…
Tudo isso pode ofender à mente positivista, que quer tratar apenas do que é quantificável, matematizável, e expele com horror, pra longe de si, o inquantificável peso de todas as depressões, de todas as psicoses, de todos as esquizofrenias, de todas as nóias – quem busca contabilizar isto, perde-se no infinito…
Considerem agora a hipótese de que tudo que é psíquico é político. Este fato de que a saúde mental não é um problema meramente individual se escancara nesta Pandemia de Covid19: milhões de pessoas que nunca se infectaram nem se infectarão com o coronavírus adoeceram de fato, de uma miríade de “condições” que por inércia chamemos de “psicopatológicas” – por conta do impacto psíquico do confinamento e das medidas quarentenárias a que buscaram aderir.
Evidenciou-se, socialmente, sobretudo no Brasil sob a batuta enlouquecida dos “profissionais da violência”, uma desgovernança trágica. Que aliás está em pleno desenrolar de sua fúria homicida enquanto traço estas mal traçadas. O Bolsonarismo é o capitalismo neoliberal in extremis entrando em estado de necrose. Querendo pôr a Doutrina do Choque Pinochetista de novo em cena – tanques e bancos em prol de um neo-colonialismo servil ao Tio Sam (ou melhor, à sua fração Trumpista…).
Que isto é um pesadelo idiota, e não um projeto de país, é claro e evidente a qualquer cidadão que exercite os miolos em prol do senso crítico e enfrente mentalmente a tarefa de julgar as ações de nosso governo. Sendo fiéis à máxima de La Boétie – “sejamos resolutos em ser insubmissos!” Pois decerto a última coisa que eles merecem é nossa submissão, e fizeram por merecer nossa revolta.
O falecido filósofo e escritor Mark Fisher tem visões interessantes sobre a insubmissão: ele clama pela “conversão do descontetamento privatizado em raiva politizada” (p. 141), contra a “submissão fatalista” às políticas econômicas de “austeridade”, apontando que é preciso “reinventar a solidariedade” e afrontar a “privatização do estresse” (p. 153).
Atacando as falácias da meritocracia, Fisher fala aos deprimidos do mundo a partir do lugar-de-fala de quem lutou a vida inteira contra esta condição (a que finalmente sucumbiu): não acreditem na lorota de que a depressão é um problema pessoal, que você como indivíduo veio com “defeito de fabricação” – pois a depressão é evidentemente um problema sócio-político. Porém, Fisher sabe que “os indivíduos culparão a si mesmos antes de culparem as estruturas sociais” – é que a ideologia convida-nos à “convicção subjacente” de que “somos todos exclusivamente responsáveis pela nossa própria miséria e portanto a merecemos.” (p. 140)
Na verdade, precisaríamos que os deprimidos se convertessem em revoltados, numa conversão Camusiana do absurdo à solidariedade? Que cessarem de culpar-se por estarem infelizes, para perceberem a raiz e a causa de seus males fora deles?
Um dos mais importantes ensinamentos de Mark Fisher, talvez, seja a noção de que nem a “doença mental” (o que prefiro chamar de adoecimento psíquico) nem o clima atmosférico podem hoje ser considerados “naturais”. Devemos considerar Brechtianamente que “nada deve parecer impossível de mudar”.
Saúde mental: campo em que a relação ou vínculo inextricável entre indivíduo e coletividade se manifesta (em uma miríade de formas, desafiando nossa compreensão e nossa ação). O que chamamos de enfermidades psicológicas, afirma Fisher, tem origem social, como é evidente, mas a ideologia hegemônica e sua ‘ontologia’ recalca e esconde:
“Em vez de atribuir aos indivíduos a responsabilidade de lidar com seus problemas psicológicos, aceitando a ampla privatização do estresse que aconteceu nos últimos 30 anos, precisamos perguntar: quando se tornou aceitável que uma quantidade tão grande de pessoas, e uma quantidade especialmente grande de jovens, estejam doentes? A ‘epidemia de doença mental’ nas sociedades capitalistas deveria sugerir que, ao invés de ser o único sistema que funciona, o capitalismo é inerentemente disfuncional, e o custo para que ele pareça funcionar é demasiado alto.” (FISHER, Autonomia Literária, 2020, p. 37)
Ou seja, como escrevem Victor Marques e Rodrigo Gonsalves no posfácio , “na medida em que antigas formas de solidariedade institucional e amparo comunitário são desfeitas, o resultado é a privatização do sofrimento e a individualização da angústia” (p. 185). O Bolsonarismo é uma das piores expressões desta doença: propõe o Estado Mínimo neoliberal à maneira Pinochetista, ou seja, com um Estado Máximo em sua expressão penal-policial – “liberal na economia, mas autoritário conservador nos costumes”, lançando mais lenha na fogueira do “cada um por si” e explicitando, sobretudo nas atitudes do Ogro-em-Chefe Jair Bostossauro, um desprezo pela vida humana típico de um psicopata capaz de dizer “e daí?” para dezenas de milhares de mortes evitáveis, num delírio nefasto de irresponsabilidade e negacionismo.
BOLSONARISMO: A DOUTRINA ZUMBI DO CAPETALISMO NEOLIBERAL EM ESTADO DE NECROSE
O Bolsonarismo é uma espécie de zumbi, uma encarnação do capetalismo neoliberal que leva o colapso da ética tão fundo que parece colocar todo o sistema político em estado de necrose. Devemos, em prol da saúde cívica e do vigor intrínseco das democracias autopoéticas que coletivamente construímos, fomentar a atividade de reimaginar o futuro e as práticas para construi-lo enquanto futuro radicalmente outro – fora da esfera necrocapitalista que o Bolsonarismo tão mal expressa.
É que o Bolsonarismo produz uma espécie de zumbilândia repleta de milícias de mortos-vivos, incapazes de reflexão, com os dedos no gatilho e muitos dogmas a vomitar por dentro das bolhas sectárias. Uma criatura bestial chefiada por um monstro moral que cultiva a idolatria a estrupícios morais e anões éticos como Ustra ou PInochet (em linguajar jurídico, são criminosos-contra-a-humanidade), o Bolsonarismo representa uma elite que quer gozar de pleno senso de irresponsabilização geral e irrestrita… É o prepotente Chefão Macho que quer rir e gozar enquanto o povo passa fome aos milhões e morre à míngua, desassistido em meio ao desmantelamento da “rede de proteção social” – isto que economistas neoliberais desprezam com o nome de Nannystate, o Estado Babá.
Ora, o que se revelará neste artigo são vislumbres da crise psíquica global que vem na esteira da pandemia, numa perspectiva que enxerga como inextricáveis os elementos individuais e coletivos – por exemplo, o modo como lidamos com a noção de lockdown, muitos de nós que somos anti-autoritários, de diálogo franco e aberto com os anarquistas, julgamos que é preciso por emergência sanitária a imposição de medidas restritivas para contenção da pandemia. O paradoxo do governo Bolsonaro é que ele não escolheu a via do autoritarismo sanitário, exatamente, mas sim pela política de mandar a cambada trabalhar pra não parar a “Roda da Economia”!
O que adoece tanta gente, nesta conjuntura, é a vivência nova, traumática, de um Estado que não é Babá, mas sim uma fera bestial que mordisca um churrasquinho e bebe uma cerveja enquanto sobe sobre uma pilha de crânios humanos dizendo “e daí? eu não sou coveiro…” e etc. Como multidões não adoeceriam diante de uma tão flagrante presença pesada daquilo que pensávamos já aposentado da História, já varridos para fora do palco histórico pela tsunami lulopetista! O gorila da Ditadura re-desperta em 2018, frauda uma eleição voando na cyberasas da Mentira Viralizada, e acaba se revelando o pior governo entre 98 nações analisadas pelo Löwy Institute da Austrália…
O #FiqueEmCasa, registre-se para a História, foi uma mobilização cidadã com muito mais afinidade à maré cívica do #Ele Não (2018) e do #TsunamiDaEducação. As pessoas que se mobilizaram para interromper atividades institucionais – como no IFG, onde interrompemos atividades docentes e discentes em Março de 2020, condição que perdura há 11 meses… – estavam sendo responsáveis. Estavam imaginando o futuro com a devida lente de uma clarividência científica, de uma mente treinada nos procedimentos da ciência. Mas não fomos capazes de gerar nenhuma mobilização de massa que pudesse fazer frente à máquina comunicacional do governo Bolsonaro e sua impressionante maquinaria de conquista de “súditos” que ainda lhe tratam à maneira idólatra, “mito!”
Enquanto escrevo estas linhas, a Holanda queima com riots da galera que protesta contra o lockdown, os enfurecidos com as medidas restritivas da liberdade e ir-e-vir, e talvez até possamos achar analogias com atitudes mais Black Blockers aí – mas se trata de um Black Blockismo capturado pela Direita, que ofende gratuitamente os profissionais da ciência, os trabalhadores da saúde, os que estão na linha de frente do combate à pandemia…
Nosso sofrimento psíquico – se ouso falar em “nosso” nome, é justamente por me sentir incluído entre aqueles que tiveram seus tormentos psíquicos incrementados pelo contexto pandêmico e que está fazendo esforços para encontrar respostas robustas e soluções coletivas pra este caos onde se delineia a nova edição da BANALIDADE DO MAL…
Não quero enveredar por comparações entre Seu Jair e Adolf Eichmann – meu foco aqui é na elucidação do que venho chamando de negacionismo em cascata, de efeitos práticos catastróficos: Bolsonaro, uma pessoa isolada, não seria tão nefasto caso não encontrasse legiões de cúmplices: propagadores de suas mentiras, papagueadores de sua doutrinas, negacionistas práticos e teocráticos tripudiando sobre os cientistas, servindo obedientes e submissos às mãos do títere populista, em seu delírio de fama e poder, o Excrementíssimo, inaugurando tendência enquanto genocida ostentação – ostentando irresponsabilidade, despreocupação e urros machões contra os “maricas” que usam máscaras… O Ogro-Em-Chefe e seus Gorilas poderia ser uma boa banda pra eles formarem…
Como se surpreender que tal situação sócio-política seja tão tamanhamente INSANIZANTE?… Já que não há fim em vista pra essa insânia social ultra-disseminada, a depressão de instaura e propaga na sombra que faz a pesada montanha do NÃO HÁ ALTERNATIVA.
Voltem, seus hippíes de merda, pra tumba de Woodstock! Agora aqui é neoliberalismo-com-tanques, e quem discordar a gente manda, com um cabo e um soldado, pro pau-de-arara e pra “ponta da praia”! Que isso tenha podido triunfar, ainda que de maneira provisória (mas quanto tempo ainda durará?), já é um indício de que a sociedade brasileira já estava doente antes da ascensão de Bolsonaro. O presifake psicopata só aproveitou uma onda forte de psicose de massas que foi insuflada por Grande Mídia e pelo Judiciário espetacularizado de Moros, Dallagnols e Cia Lava Jatística – o antipetismo foi uma feroz campanha destinada a destruir reputações, nada comprometida com respeito a verdades factuais, repleta de lawfare em sua ânsia condenatória sintetizada às maravilhas pelo Power Point dos que “não tem provas, só convicções”…
Talvez estejamos vendo, durante a pandemia, o potencial de insanizante de massas que possui o eclipe de um futuro melhor… O necrocapitalismo Bolsoeugênico ora em atuação na República das Milicias chefiadas pela famiglia Bolsonaro é a encarnação da distopia. Talvez nenhum ficcionista de sci-fi brasileiro tenha escrito algo que prenunciasse isto que estamos vivendo – o Brasil real é mais surreal do que a nossa capacidade de processá-lo e expressá-lo em obras de ficção… Este ‘eclipse do futuro’ tem a ver com o peso desta ideologia, Tatcheriana, do NÃO HÁ ALTERNATIVA.
Se o sujeito sentisse que alternativa há, que o “futuro não tá escrito” (Joe Strummer), se tivesse esta utopia compartilhada, e se fosse assim ansiando, cotidianamente construindo na companhia de concidadãos e amigos, a construção deste “ideal” no “real”. Sempre ciente da pouca força que há na pessoa solitária, e na força tremenda que há coletivo (massa pode ser poder) – convivas na forja concreta e criativa de sociedades melhores e convívios mais sábios…
Esta utopia é que parece ter um pouco colapsado entre nós, ter sumido da cultura mainstream para o consumo de massas, e a vacina, ainda que seja massificada, não traz resolução, mas insere uma nova complexidade neste labirinto. E os negacionistas da vacina? Os que deliberadamente irão sabotar as campanhas? Os que podem até mesmo vir a atacar estoques e refrigeradores de insumos?
O que quero dizer é que o sofrimento psíquico tende a montante, mesmo com a vacinação, pois a esperança de imunização pode levar a certo alívio psíquico, porém há o prosseguimento da angustiosa apreensão de um porvir que se afigura ameaçador. Assim ensina a experiência: põe a dor no caminho para que a gente aprenda, e de preferência para que tenhamos a sabedoria de, abelha forjando o mel a partir do néctar das flores, fazermos florescer nossa própria justa colméia!
Outro elemento do adoecimento tem a ver com o “pessimismo”, uma condição psíquica em que somos dominados por afetos tristes provindos da imaginação de possibilidades terríveis que o mundo real e atual parece delinear como plausíveis. Faço aqui, talvez por interesse próprio, uma defesa do pessimismo, que pode ser perfeitamente legítimo, acredito, caso a lúcida mente do sujeito tenha concluído que as coisas vão mal e podem vir a se tornar ainda piores… Que o pior esteja no espectro do possível é uma tese ontológica que me parece bastante válida e implica em sua esteira consequências éticas e estéticas tremendas.
Quero dar um exemplo: um sujeito, altamente noiado, fica pensando no número “19” que acompanha o nome da doença, repete mentalmente “covid dezenove”… a peste nascida em 2019! – até que desperte para o fato de que pode haver uma covid45, uma covid89, ou seja, que o futuro está grávido de catástrofes. O boletim climático adiciona outras faíscas para este caldeirão que ameaça se tornar ansiedade perpétua – e ouso afirmar que muitos pessimistas sofrem esta condição.
Mark Fisher ensina: não acreditem que esta ansiedade é “natural”, pois é socialmente produzida; não se culpem pessoalmente por senti-la, pois através delas se manifesta o condicionamento social ao qual somos convocados a, num levante, trazer abaixo para reconstrui-lo em outras bases. A depressão é a condição médica mais atendida pelo aparato de Saúde Público do Reino Unido, afirma Fisher, ou seja, no “SUS” de lá, no Sistema Único de Saúde inglês, a depressão já se tornou uma espécie de condição massificada. O necroliberalismo está fabricando depressão em massa e está gozando com os lucros estratosféricos que faz vendendo remédios, enquanto gasta outros bilhões no militarismo brucutu e acéfalo que suporta o aparato policial-carcerária calcado na Lei proibicionista. Fume um baseado diante da viatura, vá parar no Carandiru (talvez o Estado até te conceda, grátis, a chance de ser chacinado!) – porém, tome Rivotrils e antidepressivos de Pfeizers e Bayers, tá beleza, Troféu Joínha!
Não quero aqui também fazer defesa, como se este texto fosse um palanque e vocês a assembléia de uma cybercongregação, diferida no espaço-tempo, mas capaz de soltar imprevistas faíscas, não quero defender o otimismo barato, nem pregar que a crença em happy end seja terapêutica – e que se danem os que querem consumir smiley faces e emoticons em cascata como se fosse o marshmallow digital da salvação afetiva universal… Não tô nessa pelos coraçõezinhos de Instagram, apenas de sentir também o inédito de nossa condição geracional: as redes sociais são termômetros de nossa “popularidade”, de certo modo são mecanismos de aferição de poder.
Quantos você consegue afetar em sua “bolha social digital”? Um senso de impotência acompanha milhões e milhões dos usuários fissurados nos gadgets e apps vomitados pelo mundo afora a partir da indústria Big Tech do Vale do Silício… A Internet está repleta de informação sobre as mudanças climáticas ou a sexta extinção da biodiversidade planetária, mas a cacofonia das bolhas impede a maioria de ouvir… de compreender esta mensagem… Em massa, deprimidos, semi-zumbis do necrocapitalismo que fracassa mas não morre, nos enfurnamos na Caverna dos Dogmas e o resultado aí está…
Uma catástrofe humanitária, no Brasil, sob Bolsonaro, não está sendo impedida por forças cidadãs durante o período pandêmico – movimentos sociais atados, organismos internacionais em polvorosa diante das violações de Direitos Humanos, denúncias sendo acolhidas pelo TPI e de Haia, e os espectros ainda tímidos de restauração de um Estado Democrático de Direito neste país tão golpeado – e hoje desgovernado por um partícipe e beneficiário do Golpe parlamentar de 2016 que depôs Dilma Rousseff.
Em síntese, a época coloca a tarefa que urge: reinventar nossa capacidade de conceber um futuro pós-capitalista, uma alternativa à civilização monstruosa que agoniza sem que a nova possa ainda nascer, e seremos tão mais “sadios” em nosso psíquico quanto mais percebermos que não há soluções individuais para problemas coletivos, que Prozac não é panacéia, que Rivotril não é redenção, que o problema não está na bioquímica cerebral ou na falta de serotonina ou num pequeno “erro genético” – como ensina Fisher, “a bioquimicalização dos distúrbios mentais é estritamente proporcional à sua despolitização.” (p. 67)
“Considerar as enfermidades psicológicas como um problema químico e biológico individual é uma vantagem enorme para o capitalismo. Primeiramente, isso reforça a característica do próprio sistema em direcionar seus impulsos a uma individualização exacerbada (se você não está bem, é por conta das reações químicas do seu cérebro). Em segundo lugar, cria um mercado enormemente lucrativo para multinacionais farmacêuticas desovarem seus produtos (podemos te curar com nossos inibidores seletivos de recaptação de setononina). É óbvio que toda doença mental tem uma instância neurológica, mas isso não diz nada sobre a sua causa. Se é verdade que a depressão é constituída por baixos níveis de serotonina, o que ainda resta a ser explicado são as razões pelas quais indivíduos em específico apresentam tais níveis, o que requereria uma explicação político-social. A tarefa de repolitizar a saúde mental é urgente se a esquerda deseja desafiar o capitalismo realista.” (p. 67)
Repolitizemos nossa angústia! Sejamos solidários no tormento! Reabramos à força as alternativas que nos estão sendo negadas! Façamos juntos um futuro onde seremos resolutos em ser insubmissos e em construir nosso próprio coletivo auto-governo, bem longe da tirania insanizante de genocidas irresponsáveis e desumanizantes como o Coiso e seu séquito de fanáticos virulentos. Não há cura psíquica sem ação revolucionária, nem outro mundo possível para a Mente sem uma outra realidade que devenha “lá fora” – onde cada um de nós está enraizado, em teia de interdependência incontornável, “fios na teia da vida”, e o que quer que façamos à teia será feito a nós mesmos.
Eduardo Carli de Moraes Fevereiro de 2021 A Casa de Vidro Goiânia, Brasil
D-Generation are highly influenced by ’60s mod and freakbeat. This Manchester trio took their name from The Eyes’ “My Degeneration”, a parody of The Who’s anthem. D-Generation love the psychedelic/psychotic intensity of freakbeat bands like The Eyes, John’s Children, The Creation, but they don’t want to recreate it. Psychedelia means abusing technology, they argue, and today that means fucking with samplers and sequencers, not guitars.
Unlike These Animal Men and Blur, D-Generation haven’t forgotten that mod was short for modernist. The original mods wanted to fast-forward into the future, not replay lost golden ages. So D-Generation’s “psychedelic futurism” draws on ambient and jungle–music that’s absolutely NOW, absolutely BRITISH. And instead of the usual iconography of swinging London or English whimsy, D-Generation pledge allegiance to a “dark, deviant tradition” of Englishness that includes The Fall, Syd Barrett, Wyndham Lewis, Powell/Pressburger and Michael Moorcock.
D-Generation’s atmospheric dance is like a twilight-zone Ultramarine–lots of English imagery, but instead of bucolic bliss, the vibe is urban decay, dread and disassociation. On their EP “Entropy In the UK”, “73/93” rails against the “Nostalgia Conspiracy”, using Dr Who samples of “no future”. D-Generation call their music “techno haunted by the ghost of punk” and on ‘The Condition Of Muzak’ that’s literally the case, as it samples Johnny Rotten’s infamous taunt: ‘ever get the feeling you’ve been cheated?”. Originally, the target was rave culture itself, but this has widened out, says band ideologue Simon Biddell, “to implicate the entire culture of cynical irony.” Then there’s “Rotting Hill”, a stab at “a ‘Ghost Town’ for the ’90s”; Elgar’s patriotic triumphalism is offset by samples from the movie Lucky Jim–“Merrie England? England was never merry!”.
D-Generation, says Biddell, are dismayed by the way “young people are content to embrace a rock canon handed down to them, and seem unable to embrace the present, let alone posit a future.” But they’re optimistic about the emergence of “a counter-scene, bands like Disco Inferno, Bark Psychosis, Pram, Insides, who are using ambient and techno ideas but saying something about the ‘real world’, not withdrawing from it”.
Add D-Generation to the list of this nation’s saving graces.
Vivemos tempos tão sinistros que precisamos reivindicar o óbvio: cada uma das vidas perdidas nesta pandemia não equivale a um número, era uma pessoa em carne viva, que teve seus sonhos e planos brutalmente interrompidos, e que agora alguns querem fazer sumir por detrás de uma estatística. Cada um deles e delas morreu contra a sua vontade, nenhum era um suicida: todos adoeceram e não puderam convalescer, todos perderam a contragosto o bem básico que fundamenta todos os outros bens e males, a vida.
O projeto Inumeráveispretende ser um memorial para todas as pessoas que perderam suas vidas para a covid19 no Brasil e em seus posts do Instagram – um perfil com quase 100.000 seguidores – a mesma frase sempre encerra o meme: “não é um número”. E o meme carrega a responsa de uma tarefa impossível: a tentativa de síntese de um destino humano em apenas uma frase. Nomeia também o nome da vítima, apontando que, perdida a carnalidade da pessoa, resta ainda o vestígio do verbo, a resistência de uma narrativa, a insurgência da beleza contra a brutalidade de uma ideologia política – o Bolsonarismo – que nos desune e nos desumaniza.
Há uma questão que tem ecoado em minha mente, entoada por Renato Russo em “Fábrica”: “de onde vem a indiferença temperada a ferro e fogo?” O presifake, chefe supremo da “República das Milícias”, parece determinado a inaugurar a era da Indiferença Ostentação: diante da pilha de cadáveres inumeráveis que sua criminosa negligência e seu negacionismo genocida ajudou a produzir, pergunta com frieza de psicopata: “vão ficar chorando até quando?” Ele é o machão viril que manda parar de frescura e mimimi. É isto os que imbecis desumanizados chamam de “Mito”?
Indignados diante de tal conduta, não só indigna de um estadista mas que aponta para o grave quadro de retardo moral de Jair Bolsonaro, nós temos aderido ao costume um pouco mórbido de sacarmos – com uma certa justiça – o número dos mortos evitáveis causados pelo desgoverno. A imprensa tenta dar concretude à magnitude da tragédia e fala, por exemplo, em“3 Maracanãs lotados” de vidas ceifadas após 1 ano de pandemia no Brasil, como fez a BBC. Os números de infectados e de mortos não pára de crescer, assim como nossa necessidade de tentar manter viva a empatia e a solidariedade em um contexto onde o minúsculo e mitomaníaco “líder” neofascista desdenha do sofrimento humano e cospe sem dó sobre o luto de dezenas de milhares.
Se eu morrer, não me tratem como número – um desejo assim talvez pulse em cada um de nós. O mínimo que precisamos para estar morrendo minimamente consolados é saber que algo de nosso trajeto existencial será biografado, deixará rastros, será narrado e escapará do esquecimento completo. A brutalidade do Bolsonarismo consiste também em nos negar, em massa, o direito a uma boa morte. O projeto Inumeráveis é uma insurgência contra isto e atende à vontade humana, legítima e inextirpável, de que possamos escapar da putrefação da carne através do veículo da palavra animada pela memória alheia, pela lembrança dos que ficam e sobrevivem, nutrindo a chama da lembrança do que fomos, fazendo de nossa passagem passageira por este mundo algo que possa, mesmo que minimamente, ecoar.
A atitude de Jair Bolsonaro, tendo isto em mente, parece francamente desumana, e o digo literalmente – se é humano desejar que a morte seja “vestida” e “adornada” com tudo aquilo que possa atenuar sua inerente brutalidade, no caso do presifake fraudulento do Brasil há a ostentação do vício, a propagação deliberada de uma “indiferença temperada a ferro e fogo” – ele nem mesmo faz a tentativa de imitar a virtude. Jair Bolsonaro nem mesmo consegue ser hipócrita (“A hipocrisia é uma homenagem que o vício presta à virtude”, dizia La Rochefoucauld) – diante de Brumadinhos e pandemias, não tem nem mesmo a dignidade fingida de homenagear os mortos com lágrimas de crocodilo.
Alguns o elogiam de “autêntico”, mas como elogiar isto quando a falta de empatia e a crueldade é que são assim autenticamente expressadas, sem nenhuma máscara? Este senhor cruel ainda tem a pachorra de se declarar cristão e de usar, para seu populismo barato, o slogan “Deus acima de todos”. Se cristianismo é isto, estaríamos de fato melhor, enquanto sociedade, se fôssemos todos ateus.
Os números, porém, são importantes num certo sentido e estão envolvidos numa reivindicação cívica que já está se tornando uma das principais tarefas históricas desta geração: a reativação da Comissão Nacional da Verdade e a revelação da verdade sobre a extensão da tragédia sanitária que hoje atravessamos. Sabemos que os números oficiais de óbitos, no Brasil, são tão fake quanto a suposta competência logística do General Pezadello, aquele “penetra” que hoje ocupa o Ministério da Saúde e é cúmplice da catástrofe que hoje vivenciamos e que tem no “Capitão Cloroquina” seu principal perpetrador.
O grau de subnotificação é tão obsceno, tão grotesco, que ficamos estarrecidos com a cara-de-pau de Bolsonaro: segundo a expressão de Vladimir Safatle, ele “se acha capaz de esconder os mortos”. “Esconder os mortos” era um dos esportes prediletos de muitos dos milicos chumbo-grosso que Bolsonaro idolatra e que perpetraram atrocidades pela América Latina no período sombrio de terrorismo de Estado: no Brasil, no Chile, na Argentina, no Uruguai, na Guatemala, dentre outros países do continente, a palavra desaparecidos políticos tem um sentido oculto muito assustador… trata-se de um eufemismo que esconde o fato de que os “desaparecidos” foram vítimas de crimes de assassinato seguido por ocultação de cadáveres. Rouba-se aos familiares o direito de enterrar o ente querido. Condenava-se os sobreviventes a nunca completarem a elaboração do luto.
Outro elemento desta equação sinistra: a doença moral de que Bolsonaro é o hospedeiro, e que contagia seus Bolsocrentes a ponto de gerar uma pandemia de retardo moral, tem tudo a ver com aquilo que Rebecca Solnit chama de “Masculinistão”.
Bolsonaro e os de sua seita consideram-se machos pra cacete, ao estilo de Rambos durões, quando demonstram indiferença pela morte em massa, quando ostentam apatia diante do sofrimento alheio, quando dizem “e daí?” diante do luto de milhares que choram a perda de entes queridos. São hospedeiros do vírus da masculinidade tóxica. Pra eles, chorar é coisa de mulheres frágeis ou de veados afeminados.
Cada vez que abre a boca, Bolsonaro infecta o ambiente com sua macheza tóxica, dizendo a mulheres que algumas delas não merecem ser estupradas pois são muito feias, ou ensinando aos pais que um filho que toma muita porrada desde cedo não fica viadinho. Esta macheza tóxica é tanto pior quanto mais busca justificar-se com argumentos religiosos, como se o próprio Deus Pai pintudo fosse o instituidor originário de um status quo onde o princípio masculino deve tiranizar a sociedade – nisto Bolsonaro não difere muito da “lógica Taleban”:
“Os homens que tentaram assassinarMalala Yousafzai, de 14 anos, por falar sobre o direito das mulheres paquistanesas à educação, estão tentando silenciar e punir as mulheres por reivindicarem voz, poder e o direito de participar. Seja bem-vindo ao Masculinistão…” (SOLNIT, Cultrix, p. 46).
É legítimo perguntar se os assassinos de Marielle Franco, e também seus mandantes ainda impunes, não são também eles membros do clube que eu chamaria de Milicianato Masculinista. É verdade que a presunção de inocência é um dos mais básicos itens jurídicos em um Estado Democrático de Direito, e que não é justo acusar a família Bolsonaro deste crime apenas com convicções desprovidas de prova (como fez a Lava Jato na fraude de lawfare contra Lula, que feriu de morte a legitimidade das eleições de 2018). Mas os indícios são inúmeros de que o homicídio perpetrado contra Marielle só pôde acontecer devido a um mindset típico do Bolsonarismo, esta doentia ideologia que turbina as patologias masculinistas e armamentistas.
Com Trump e Bolsonaro entramos numa era bizarra que torna South Park um desenho animado realista, quase um documentário de nossos tempos históricos nos EUA e no Brasil neo-colonziado pelo Império Yankee: são presidentes trolladores com a idade mental de Eric Cartman. Ao invés de governar, twittam sadismos. Ao invés de proteger vidas através de políticas públicas sensatas, ostentam pica-grossa no Zapistão. Mas quando se trata de debate político ao vivo, sabemos que Bolsonaro se mostra o maior dos covardões.
Na campanha eleitoral de 2018, ficou com o c* na mão, morrendo de medo de enfrentar Fernando Haddad nos debates – e dá-lhe atestados médicos para justificar sua “fuga”, decorrentes de uma providencial facada (de fato, aquela faca-fake deve ter sido uma intervenção divina destinada a impedir os telespectadores de perceberem o pigmeu cognitivo e o retardado moral que é Jair Bolsonaro em comparação com aquele que foi Ministro da Educação do presidente Lula por 7 anos e que conquistou 47 milhões de votos nas urnas naquele mesmo 2018…).
Os Bolsonaristas posam de machões, odeiam estes ímpetos feminis, este chorôrô e este mimimi que consiste em lamentar vidas perdidas, mas no fundo são a encarnação da covardia. Não tem um pingo da coragem ética elementar que consiste em assumir a responsabilidade pelos nossos atos diante da coletividade. Vejam a arrogância insuportável de Bolsonaro, sua boca-de-esgoto vomitando atrocidades na certeza da impunidade: ele tem certeza de que é inimputável, está convicto de que agir com a máxima irresponsabilidade é o caminho para que nunca seja responsabilizado.
É a nova face da banalidade do mal – ao discurso do criminoso nazista Eichmann de que “eu só seguia ordens” (e “ordens são ordens”, como cantava ironicamente a Legião Urbana em “Metrópole), agora chegamos a este cúmulo da covardia: “eu não assumo responsabilidade nenhuma por nada que tenha acontecido de mal durante o meu governo!”
Estatístcas da Covid19 em 12 de Março de 2021: o Brasil contabiliza 275.000 mortes e 11 milhões de casos.
O Anjo da História de Walter Benjamin olhava para o passado e via uma montanha de escombros se acumular e subir até o céu. Nós, no Brasil de 2020-2021, vemos a pilha de cadáveres subindo até alcançar as nuvens de fumaça da Amazônia em chamas. A tarefa que o tal do Anjo se colocava, enquanto um vento soprado do paraíso o impelia de costas no rumo do futuro, era acordar os mortos e reconstituir algum sentido e alguma coesão a partir da montanha de ruínas.
Acredito que nossa resistência humanitária contra a barbárie reinante passa hoje por um trabalho necessário com os mortos – não só no sentido mais literal e concreto possível, ou seja, para o evitar colapso funerário e contaminação de solo, alimentos e e lençol freático, como alertou Miguel Nicolelis, mas no sentido mais alegórico e metafórico, para evitar que o cortejo dos vencedores covardes tratem mortes evitáveis e vidas perdidas como se nada fossem (e “parem de mimimi”)
Esta é a nossa tarefa, de nós que queremos ser a resistência contra a barbárie e que por isto temos que ser os resolutos combatentes contra a civilização masculinista, teocrática, heteropatriarcal e necrocapitalista: não permitir que os mortos da covid19 sejam reduzidos a números, subsumidos a estatísticas, esquecidos por detrás de uma enxurrada de dados – não podemos ser “frios e calculistas”, mas devemos, como fez Chico César em sua interpretação da canção de Braulio Bessa, cantá-los e comover os sobreviventes a relembrá-los. Os crimes de Bolsonaro não serão esquecidos desde que sigamos pondo lenha na memória destes inumeráveis, transformando-os, na medida dos nossos possíveis, em inesquecíveis.
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Esta resistência que resiste a permitir o esquecimento das vidas perdidas, ou a minimização da magnitude das perdas, passa também por uma das coragens mais difíceis e esquivas, uma coragem de que talvez não sejamos psiquicamente capazes em meio aos desafios extremos que a conjuntura pandêmica coloca à nossa saúde mental: a coragem da empatia radical. Ser solidário com o outro implica ir com ele aos cumes do desespero, sentir o que ele está sentindo em seus piores momentos e enquanto atravessa as crises mais extremas.
Devemos evitar transformar as vidas em carne-e-osso, que agonizaram sem conseguir leitos de UTI, que não puderam mais respirar por falta de oxigênio, em números descarnados, com os quais poderíamos lidar de maneira fria e calculista, limpando de afetos incômodos a nossa consideração do problema. Negar a extensão do sofrimento dos doentes pois ainda estamos sadios também consiste num modo comum de negacionismo. A psiquê humana, é natural, é avessa a imaginar a experiência subjetiva, as dores físicas e os tormentos psíquicos de cada uma dessas pessoas que agonizaram sem volta e morreram de covid.
Há uma solidão quase impenetrável na experiência subjetiva daqueles que morreram, distantes de familiares e amigos, testemunhados em seus últimos suspiros por médicos e enfermeiros, e quase ninguém deseja fazer a experiência de empatia radical quando esta consiste em tentar compreender e sentir as sensações de “afogar no seco” que o colapso respiratório covídico implica para suas vítimas.
É mais fácil colocar entre nós e as vítimas, agonizando em sua asfixia, vítimas da negligência criminosa do Estado bolsonarista, o anteparo dos números. É mais cômodo não empatizar e assim tentar manter, na medida do possível, o alto-astral, o gosto de viver, alguma espécie de narcisismo salutar: “ainda bem que não aconteceu comigo, e não vou ficar sofrendo pelos outros!” A questão é: não estaremos assim colaborando com o opressor e seu desejo de apagar os rastros de destruição, não estaremos assim fazer o jogo daqueles que produziram esta carnificina? Aqueles que morreram a contragosto, ceifados da vida nesta pandemia, não merecem de nós que nos esforcemos por lembrá-los, em suas carnalidades e biografias, em suas singularidades e em seus sofrimentos? Ao invés de serem relegados ao escuro silêncio de túmulos onde a justiça apodrece junto com os cadáveres, enquanto os perpetradores do morticínio seguem empoderados?
Sobre o tema, Emil Cioran escreveu, no “Breviário de Decomposição”, as palavras mais fortes que conheço, um autêntico tratado de psicologia humana que indica a dificuldade extrema deste tipo de empatia que envolve um compadecimento de que somos, em larga medida, psiquicamente incapazes – pois, se fôssemos de fato radicalmente compassivos, o sofrimento do mundo, invadindo os estreitos limites da nossa subjetividade, perigaria nos explodir por dentro por excesso de dor:
“Quem chegasse, por uma imaginação transbordante de piedade, a registrar todos os sofrimentos, a ser contemporâneo de todas as penas e de todas as angústias de um instante qualquer, esse – supondo que tal ser pudesse existir – seria um monstro de amor e a maior vítima da história do sentimento. Mas é inútil imaginarmos tal impossibilidade. Basta-nos proceder ao exame de nós mesmos, praticar a arqueologia de nossos temores. Se avançamos no suplício dos dias, é porque nada detém esta marcha, exceto nossas dores; as dos outros nos parecem explicáveis e suscetíveis de ser superadas: acreditamos que sofrem porque não têm suficiente vontade, coragem ou lucidez. Cada sofrimento, salvo o nosso, nos parece legítimo ou ridiculamente inteligível; sem o que, o luto seria a única constante na versatilidade de nossos sentimentos. Mas só estamos de luto por nós mesmos. Se pudéssemos compreender e amar a infinidade de agonias que se arrastam em torno de nós, todas as vidas que são mortes ocultas, precisaríamos de tantos corações quanto os seres que sofrem. E se tivéssemos uma memória milagrosamente atual que conservasse presente a totalidade de nossas penas passadas, sucumbiríamos sob tal fardo. A vida só é possível pelas deficiências de nossa imaginação e de nossa memória.” — CIORAN, ‘Breviário de Decomposição’
Jair Bolsonaro é certamente um retardado moral, além de um deficiente cognitivo, mas talvez nisto esteja boa parte de seu poder de sedução de massas: ele libera os piores demônios de nossa natureza, convida a pensar que se pode ser rico e poderoso jogando no lixo quaisquer escrúpulos, estende a nós atração de uma irresponsabilidade que estamos sempre prontos a acatar. Pois aceitar a responsabilidade é um fardo, faz com que viajar pela vida seja mais difícil, como um viajante que leva bagagem mais pesada: seus valores, seus princípios e a reiterada necessidade de refletir, diante das encruzilhadas, sobre quais as decisões mais sábias.
Jair Bolsonaro cospe em tudo isto. Se houvesse possibilidade de aplicar um exame de ética e quantificar a virtude em uma nota, ele estaria muito próximo de tirar um zero. O problema com isto também está na tendência que temos, nós que o repudiamos e resistimos à sua nefasta influência, a nos sentirmos moralmente superiores a ele – o que não deixa de ser verdade, mas que pode conduzir a algo grave, a satisfação com uma vitória meramente moral. Não podemos nos contentar com uma vitória moral sobre este retardado ético que tem se mostrado uma das pessoas mais nefastas do século. Nossa vitória precisa ser política e não ocorrerá sem a empatia radical fundamentando nossa solidariedade social.
E parte da solução para a superação da lamentável “captura de massas” que sua insensibilidade produziu está numa radical re-sensibilização: a empatia radical é um afeto revolucionário. Mas a revolução não é nenhum picnic. Ouso pedir: tenham a coragem de sofrer com os outros, de chorar pelos mortos e doentes, de partilhar angústias e revoltas, de nunca fingir que está tudo bem! Tenham a coragem de sempre repudiar aqueles que querem transformar uma tragédia brutal tão lamentável como esta, tão digna de choro e de rebeldia, em apenas frescura e mimimi. O luto e a luta não são impossíveis de conjugar. A indiferença ao sofrimento alheio e a capacidade de revolucionar o sistema social que produz este sofrimento são sim inarmonizáveis e nunca conjugáveis. Faremos uma revolução, se a fizermos, com lágrimas nos olhos e a indignação aflita queimando nos nossos coração – sendo os aliados dos mortos inumeráveis, que precisamos transformar também em inesquecíveis, e que, como alertou Walter Benjamin, “não estarão em segurança se o inimigo vencer”:
“O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer.” (BENJAMIN, 6ª Tese Sobre o Conceito de História)
Eduardo Carli de Moraes 13 de Março de 2021 www.acasadevidro.com/inumeraveis
APRECIE TAMBÉM:
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BENJAMIN, Walter. Teses sobre o Conceito de História.
BESSA, Bráulio; CÉSAR, Chico. Inumeráveis. Poema, canção e materiais audiovisuais derivados.
CIORAN, Emil. Breviário de Decomposição.
SAFATLE, Vladimir. Entrevista à Agência Pública.
SOLNIT, Rebecca. Os Homens Explicam Tudo Para Mim.
Há um futuro possível em que o 1% levanta o dedo médio para os 99%, liga o foda-se para a ralé e desdenha de um planeta devastado pela farra capitalista. Afinal de contas quem precisa se preocupar com o aquecimento global quando pode comprar um apartamento de luxo com ar condicionado?
Neste plausível porvir, a elite econômica dá seu jeito para curtir privilégios e confortos em meio ao extermínio em massa: enquanto multidões de humanos morrem como moscas e a biodiversidade do planeta colapsa, os megaricos comem caviar e investem capitais e esperanças em Ellon Musks ou outros “visionários” que levarão os bem-nascidos para viver em outro astro do sistema solar.
Este tema da luta de classes sob as condições do Antropoceno, que traz novas variáveis para A Condição Humana analisada por Arendt, é também um dos temas mais quentes da arte contemporânea. Tanto que pulsa no cerne de obras-primas de um dos melhores cineastas em atividade, o sul-coreano Bong Joon-Ho, realizador de Parasita, O Hospedeiro, Okja, Snowpiercer.
Quem assistiu aos filmes de Bong não terá dificuldades em aceitar uma tese que Godard sempre afirmou: “o cinema pensa, e dá a pensar.” Como esclarece o psicanalista Enéas de Souza, “um filme traz e contém em si, como uma doação, a presença de um pensamento” (ou vários):
“”O cinema pensa com o quê? O cinema pensa com o plano, com o que está dentro do enquadramento e com o que está fora dele… Pensa com o que seleciona para filmar e com o que deixou de lado. Pensa com a duração do plano, definida pelo corte, (…) e pensa com o movimento da câmera modificando o próprio plano, através de travellings, planos-sequência ou panorâmicas. Pensa com os atores, com o seu rosto, com os seus gestos, com os seus cabelos e com os seus olhos (o cinema é a melodia do olhar, dizia Nicholas Ray). Pensa com a roupa que os intérpretes usam. Pensa com os diálogos dos personagens, com a geografia dramática do cenário, seus abismos, seus bloqueios, suas rugosidades, suas planícies, suas montanhas, suas ruas e seus apartamentos. Pensa com o diálogo e com o duelo das imagens e do som. No entanto, o cinema pensa tudo isso em seu conjunto, porque a montagem é a determinação do todo’. Assim não falava Zaratustra, assim falava Gilles Deleuze.” [3]
Os pensamentos de que a arte contemporânea está repleta, em romances, filmes, canções, graphic novels, séries, dentre outras produções culturais, merecem a atenção de qualquer cidadão que se sinta responsável pelo advento de um futuro vivível – e que não se sinta apenas como espectador do que está por vir. Um espectador não é, aliás, nenhum cidadão no sentido pleno do termo. Mas seria tosco e limitado qualquer cidadão que pretendesse, para se orientar politicamente no que diz respeito à ação coletiva, ignorar completamente o que pensam e expressam os artistas, focando exclusivamente nas ciências sociais. Contra tal hiper-especialização limitante, é preciso abrir horizontes para abarcar tudo aquilo que a arte pode nos ensinar e nos provocar a pensar.
Para exemplificar mais a fundo o que quero dizer, falemos sobre Quatro Futuros(Autonomia Literária, 2020), livro do editor da revista Jacobin, Peter Frase. O autor procede como se não houvesse nenhum abismo intransponível entre as ciências humanas e a ficção especulativa. Ignorando as proibições usuais que tentam confinar o pesquisar um enclave acadêmico específico, Frase fica saltando com audácia da obra de pesquisadores sociais para romances e filmes sci-fi, dando atenção tanto aos jornais do dia quanto às previsões de futurólogos:
“Em uma exploração emocionante e divertida das utopias e distopias que poderiam se desenvolver a partir da sociedade atual, Peter Frase argumenta que o aumento da automação robótica e uma crescente escassez de recursos, graças às mudanças climáticas, transformarão profundamente o mundo como conhecemos.
Neste livro, Frase segue os preceitos daquilo que Max Weber chamava de “tipos ideais” para tentar imaginar como esse mundo pós-capitalista pode parecer, empregando as ferramentas da sociologia e da ficção especulativa para explorar o que o comunismo, o rentismo, o socialismo e o exterminismo podem realmente acarretar.
O ponto de partida de toda a análise é a certeza de que o capitalismo vai acabar, e que, como disse Rosa Luxemburgo diante da I Guerra Mundial, ou a sociedade “entra em transição para o socialismo, ou regride para a barbárie”. Misturando ficção científica, teoria social e as novas tecnologias que já estão moldando nossas vidas, Quatro Futuros é um balanço dos socialismos que podemos alcançar se uma esquerda ressurgente for bem-sucedida frente à barbaridade que encontraremos se esses movimentos falharem.” [4]
Em uma “Terra distópica no ano 2154, uma pequena elite – o 1%, se você preferir – partiu para uma estação espacial e lá desfruta de conforto e lazar em vidas aparentemente eternas, devido ao acesso à milagrosa tecnologia da Med-Bay. Enquanto isso, de volta à Terra, o resto da humanidade vive em um planeta superpopuloso e poluído, governado por uma força policial robótica. O enredo está centrado em torno de Max (Matt Damon), um membro da ralé presa à Terra, envenenado por radiação, que tenta penetrar no santuário de Elysium e acessar suas maravilhas médicas.” [5] (Frase, 2020, p. 135)
Apartados das ralés fedorentas, os super-ricos gozam de seus Campos Elíseos: uma área VIP (só para pessoas muito importantes, isto é, very wealthy people) onde um crânio esmagado pode ser reconstruído com uma impressora 3D e um câncer pode ser curado em segundos através de um re-arranjo atômico-celular produzido por mega-máquinas de cura.
A própria morte parece ter sido transcendida em Elysium, com uma potencial imortalidade posta à disposição dos ricaços na figura de uma tecnologia capaz de consertar sem fim o organismo humano, aumentando indefinidamente a expectativa de vida.
Em Elysium, as elites globais exiladas na estação espacial podem gozar da fina flor da medicina enquanto na wasteland em que a pobre Terra se tornou os humanos seguem morrendo como moscas e se trucidando uns aos outros com armas-de-fogo em meio ao distópico caos que os bilionários quiseram deixar pra trás.
Já havíamos visto algo semelhante no sci-fi Zardoz (1974, U.K.) de John Boorman, onde os habitantes do privilegiado Vortex não morrem mais, enquanto os pobretões que estão excluídos deste enclave do privilégio não só morrem: morrem como moscas.
O filme mostra que não tem graça não-morrer dentro de um pequeno paraíso, rodeado por hordas de humanos incultos e violentos que idolatram um deus das carnificinas. Este deus Zardoz, representado por uma imensa cabeça de pedra capaz de voar (uma montanha voadora! como não seria isto a obra de uma poderosa divindade) na verdade não passa de um disfarce e uma máscara para um “mago” à la Oz. Um pastor de rebanhos humanos, desejoso de manter o controle sobre as massas “primitivas” e botá-las para serem eterna bucha de canhã e eterna mão-de-obra barata.
Já a elite no Vortex tem uma vida de luxo e ociosidade, em que a medicina – à semelhança do que se passa em Elysium – agora permite que se viva até 300 anos de idade. Um tempo de vida incrementado não impede as pessoas de caírem sob as garras de várias condições psicopatológicas, a exemplo da profunda apatia que acomete alguns cidadãos do Vortex, tão insensíveis e indiferentes a todos que parecem mergulhados numa meia-vida catatônica.
As elites Vortexianas também bolaram um sistema penal baseado em castigos diferentes daqueles a que estamos acostumados – prisão, tortura, cadeira elétrica (isto é coisa de bárbaros!) de envelhecimento: de acordo com seu crime, você pode ser punido com 5 ou 7 ou 15 anos de idade adicionados ao seu corpo.
Brincando com “O Mágico de Oz”, o filme revela que esta “magia” imortalista não gerou paraíso algum e coloca esta elite na mira de uma chacina – uma autêntica “invasão de bárbaros” – daquela ralé que, lá fora dos enclaves do privilégio, foi ensinada a idolatrar o deus Zardoz, que adora carnificinas produzidas com armas-de-fogo. Os crédulos em Zardoz são como Bolsominions, infectados com raiva, dotados com armas em excesso e cérebro em falta, correndo como ogros enfezados rumo às matanças ordenadas por aqueles que ficam seguros por detrás das redomas invisíveis do Vortex…
Vivemos numa época em que se fala cada vez mais do advento da era do apartheid climático. As consequências catastróficas do aquecimento global serão desigualmente distribuídas: CEOs poderão ficar tranquilos em seus resorts com ar condicionado enquanto os miseráveis de Bangladesh morrem à míngua ou são lançados aos milhões à condição de refugiados apátridas. Além disso, a própria produção da catástrofe é muito mais atribuível aos 20% dos cidadãos globais mais ricos do aos 80% que estão na base da pirâmide. Filmes como Zardoz e Elysium provam que seus realizadores pensaram a fundo sobre as tendências de seus respectivos tempos presentes e imaginaram um futuro delineado a partir do que hoje se expande.
Um excelente exemplo, citado por Peter Frase, vem de Lagos, na Nigéria, uma megalópole à beira-mar que tem tudo para sofrer tremendos impactos com a subida dos níveis do oceano. Ali, nasceu em uma ilha o enclave “utópico” Eko Atlantic, uma cidade privada, só para V.I.P.s, servindo como emblema de um Elysium do planeta real.
Matéria do The Guardian escrita por Martin Lukacs. [6]
Há quem descreva a Eko Atlantic como uma “utopia”, mas ao seu redor estaria uma multidão de milhões de humanos abandonados à mais cruel miséria (agravada pelo efeito estufa) – na Nigéria, cerca de 100 milhões de pessoas (em uma população total de 170 mi) vivem com menos de 1 dólar ao dia, como revela a reportagem do The Guardian, crítica desta “nova e privatizada cidade africana” que serve como emblema do “apartheid climático” que cessou de estar no horizonte de nosso porvir para se tornar uma tendência de nosso presente.
Se a ilha Eko Atlantic nigeriana é análoga à Elysium do filme-sci sul-africano, talvez o ponto de contato mais explícito entre ambos seja o elemento de apartheid que ambas as utopias implicam. Isto sinaliza para um porvir em que não nos veremos livres de tudo aquilo which tears us apart. Peter Frase explana isto muito bem em Quatro Futuros, auxiliado pelas obras dos sociólogos Bryan Turner e Christian Parenti.
“O sociólogo Bryan Turner tem defendido que vivemos em uma SOCIEDADE DO ENCLAVE. Apesar do mito da mobilidade crescente sob a globalização, nós na verdade habitamos uma ordem em que ‘governos e outras agências procuram regular espaços e, quando necessário, imobilizar fluxos de pessoas, bens e serviços’ por meio de ‘cerceamentos, barreiras burocráticas, exclusões legais e necessidades de registro’.
É claro aqui que são os movimentos das massas que permanecem restritos, enquanto a elite segue cosmopolita e móvel. Alguns dos exemplos que Turner reúne são relativamente triviais, como salas de recreação para passageiros aéreos frequentes e quartos privados em hospitais públicos; outros são mais graves, como comunidades fechadas (ou, em casos mais extremos, ilhas privadas) para os ricos e guetos para os pobres – sendo a polícia responsável por manter as pessoas pobres fora dos bairros ‘errados’.
Quarentenas biológicas e restrições de imigração levam o conceito de enclave ao nível do Estado-nação. Em todos os casos, a prisão aparece como o último enclave distópico para aqueles que não obedecem, seja a penitenciária federal ou o campo de detenção em Guantánamo.
Comunidades fechadas, ilhas privadas, guetos, prisões, paranoia terrorista, quarentenas biológicas – isso equivale a um GULAG GLOBAL invertido, onde os abastados vivem em pequenas ilhas de riqueza espalhadas por um oceano de miséria.
Em ‘Trópico do Caos’, Parenti mostra como essa ordem é criada nas regiões em crise ao redor do mundo, à medida que as mudanças climáticas trazem o que ele chama de ‘convergência catastrófica’ de mudanças ecológicas, desigualdades econômicas e falência de Estados.
Na sequência do colonialismo e do neoliberalismo, os países ricos – juntamente com as elites dos países mais pobres – têm facilitado a desintegração em violência anárquica, enquanto várias facções tribais e políticas lutam por recompensas cada vez menores de ecosistemas deteriorados.
Diante dessa realidade sombria, muitos dos ricos… se resignaram a erguer barricadas em suas fortalezas, a serem protegidos por drones não-tripulados e empreiteiros militares privados. A mão de obra de guarda, uma característica da sociedade rentista, reaparece em uma forma ainda mais malévola, conforme um pequeno número de sortudos são empregados como capatazes e protetores para os ricos.” [7] (FRASE, op cit, p. 145)
A militarização da força policial, uma tendência fortíssima em países como EUA e Brasil, além do encarceramento em massa conexo a uma lei de drogas proibicionista, são temas de livros recentes importantes como Rise of the Warrior Cop, de Radley Balko, e Golden Gulag, de Ruth W. Gilmore.
Caso o futuro humano esteja ainda raptado pelos capitalistas e pela tirania do 1%, o que podemos esperar é um cenário que o sci-fi distópico já denunciava: um mundo repleto de Robocops, como no filme de Paul Verhoeven (1987) situado numa Detroit distópica, em que as SWATS TEAMS ou Tropas de Elite tocam o terror sobre a população guetificada e empobrecida, impondo um controle tão brutal quanto o exército de Israel faz nos territórios ocupados da Palestina.
Um mundo onde a vigilância onipresente faz pensar num Estado policial-carcerário com elefantíase e capaz de punir os crimes antes mesmo que sejam cometidos, como em Minority Report (de Spielberg, adaptando obra de Philip K. Dick). Tudo isto edificando um novo apartheid em que grandes corporações, como a Vivos, vendem megabunkers protegidos de radiação e de tsunamis, compráveis por 3 milhões de euros numa montanha da Alemanha, onde os milionários podem aguardar o apocalipse com muito conforto.
A obra de Frase, apontando para a possibilidade concreta de um futuro comunista, que ele tenta prefigurar em minúcias, não deseja contribuir para o fatalismo, ou seja, para a resignação às tendências que hoje se mostram hegemônicas. Deseja, muito mais, ajudar na superação da deprimente sensação expressa à perfeição na emblemática frase de Mark Fisher: “é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo.”
A frase Fisher não pode ser mal compreendida: o fato de ser mais difícil imaginar o fim do capitalismo do que o fim do mundo não torna esta tarefa menos urgente e necessária, isto apenas significa que nossa tarefa histórica não é fácil e que a revolução não é um jantar de gala.
Precisamos urgentemente não só imaginar o fim do capitalismo mas enterrá-lo de fato, superado por algo melhor, caso queiramos que o mundo humano como o conhecemos tenha outro destino que não um catastrófico fim em uma agonia de séculos, onde Elysiums utópicas proliferarão em enclaves-do-apartheid rodeados pelo caos distópico fomentado por ideologias exterministas como o Bolsonarismo.
Na Jacobin, em um artigo chamado “O Conforto da Distopia”, Frase critica a esquerda catastrofista e inerte, que profetiza o apocalipse mas nada faz no sentido da ação coletiva em prol de alternativas:
“Uma das coisas com as quais tenho me debatido, como escritor, é a tendência dos meus escritos mais especulativos de despertar uma linha de quietude apocalíptica na esquerda radical. Para mim, a história que estou contando é toda sobre esperança e ação: o futuro está aqui, só que mal distribuído, e apenas através de luta poderemos realizá-lo de maneira mais adequada.” [8]
A imagem de abertura deste post é uma obra atribuída ao grafiteiro Banksy que mostra um aparato militarizado de segurança defendendo um carro-forte cheio de capitais que carrega no seu teto um mega Donut.